Luto na advocacia

George Tavares não falava, perorava, dando calor a seus pontos de vista

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2 de agosto de 2014, 12h02

"Discurso proferido na Sala de Sessões do Conselho Seccional da OAB-RJ em 28 de julho de 2014"

Benção, George Tavares.

Recebi, como especial deferência, a indicação para falar em honra e memória do saudoso e exemplar advogado George Tavares.

Falar sobre sua atuação, sua inconfundível personalidade, a paixão pelo exercício da profissão, a bravura e a coragem que sempre caracterizaram sua postura altiva e intimorata, é dizer sobre o óbvio, tão inseparáveis tais qualificações de sua conduta diuturna, fazendo lembrar que o George não falava, pois, as mais das vezes, perorava, dando calor a seus pontos de vista, como se na Tribuna estivesse, ela que sempre por assim dizer o acompanhava simbolicamente, em todos os momentos, quiçá até mesmo dormindo, pois certamente seus sonhos contemplavam a defesa dos que dela necessitassem.

Não carecia George de qualquer juízo ou tribunal, seja aqui, ali ou acolá, dada sua capacidade de transformar qualquer encontro, formal ou informal, em espaço de indignação e de luta por liberdade, sendo sua vida totalmente marcada por tais características, sempre indissociáveis do seu ser.

Não bastasse, em sua fala, ao lado do que estivesse verberando, em sua sempre candente argumentação, com a face ruborizada, além de inconfundível gesticulação, nunca lhe faltou o encantamento da poesia, conhecendo, não poucos de seus camaradas, estórias desde o Colégio Militar, uma delas lhe valendo o apelido daquela época, como atestam os que compartilharam com nosso homenageado naqueles tempos já distantes, nos bancos escolares, de “Coveiro”, tudo em razão da morte de um passarinho.

Em última análise, ao rigor e energia somavam-se-lhe os atributos do gosto pela palavra doce e suave, a sedução pelo que se pudesse dizer com graça e beleza, capaz de declamar, com entusiasmo, escritos marcantes a tocar os corações, as almas e as mentes daqueles que com ele conviveram.

A linguagem do coração também se revelava no afeto por seus colegas de profissão, com os quais compartilhava os ônus, as vicissitudes do ofício, como também os êxitos que são marcantes em sua destacadíssima atuação em favor daqueles que solicitavam sua proteção, em face da volúpia acusatória e do rigor desmedido de alguns magistrados, incapazes de perceber que, para se fazer justiça, deve-se — antes de mais nada — compreender os dramas e as angústias humanas, daí porque para sua realização indispensável a presença da emoção, que sempre sobejou na vida, nas lides e em todos os momentos de sua profícua e inesquecível existência no mundo terreno.

Perpassando os vários episódios de sua atuação, George conheceu a violência de um sequestro, em razão de sua atividade como defensor de perseguidos e presos políticos, e olhando-se a realidade dos dias atuais, constata-se a falta que ele nos faz para o enfrentamento de um Estado que abusa no campo repressivo, que agride as garantias fundamentais, que usa os ergástulos e as masmorras como forma rasteira e primária para aplicação do direito penal, muitas vezes mais severo e danoso do que os crimes que pretende reprimir.

Encontrei na música e na poesia a melhor imagem para traduzir a importância de sua passagem entre nós, gerando a luz que haverá de irradiar-se de lá para cá, ao lado de outros bravos advogados que, como ele, já se foram, mas nunca desfaleceram, pois combateram o bom combate e guardaram para sempre a fé.

Refiro-me ao belíssimo samba da benção, de Vinicius de Moraes, em parceria com Baden Powell. De sua letra, colho o que leio:

“Feito essa gente que anda por aí.
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer e não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem,
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida”!

Pois bem, para o George a vida não foi brincadeira não, foi para valer e se tem uma só ele a viveu muito bem.

Porém, a certeza que fica é outra. Não é possível que George tenha passado e que tenha nos deixado.

Não.

George não nos deixou.
Do lugar onde está, daqui poderemos pedir-lhe a benção:

A benção, George Tavares, advogado, professor e poeta.

Com a benção que lhe pedimos, estamos ganhando sua proteção.

Lutador incansável pela liberdade e pelos direitos fundamentais.

George não estará neste momento nos dando a benção sozinho.

Não, não é do seu feitio.

Benção, pois a você, George Tavares. Pedimos também aos outros de sua altura, que por sua elevação também merecem lembrança e reverência.

Eles, os oficiais do mesmo ofício que já partiram, aplaudiram sua chegada e ouviram seu vozeirão, dizendo: aqui cheguei e estou com vocês para inspirar os que haverão de nos suceder na mesma pugnacidade, com a mesma coerência, com a mesma postura, com a mesma altivez, em favor da luta por justiça e por liberdade.

Benção, George Tavares,
Benção, Evaristo de Moraes,
Benção, Raul Lins e Silva,
Benção, Evandro Lins e Silva,
Benção, Sobral Pinto,
Benção, Heleno Fragoso,
Benção, Augusto Sussekind de Moraes Rego,
Benção, Wilson Lopes dos Santos,
Benção, Lino Machado Filho,
Benção, Humberto Telles,
Benção, Ronaldo Machado,
Benção, Paulo Sabóia,
Benção, Augusto Thompson,
Benção, Marcello Alencar,
Benção, Oswaldo Mendonça,
Benção, Alcione Barreto,
Benção, Paulo Goldrajch,
Benção, Ramiro Motta,
Benção, Raul Chaves,

Benção a tantos outros, menos conhecidos ou quase anônimos, mas que trilharam o mesmo caminho coerente de luta por justiça e liberdade.

E assim voltando à musica, Samba da Benção, de Vinícius de Moraes e Baden Powell, apropriando-me de um de seus versos, repetindo suas palavras, finalizo:

Saravá! A benção que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus!

Nunca adeus, e sim até um dia, em que nós daqui estaremos com vocês aí.

E aí, então, os nossos filhos, os filhos dos nossos filhos, os nossos amigos, os filhos dos nossos amigos, estarão por aqui, para que a liberdade nunca pereça, para que a Justiça triunfe, para que a advocacia seja prestigiada, a partir do exemplo de George e daqueles que formam no seu escrete, na verdadeira seleção nacional da advocacia da liberdade.

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