Diário de Classe

Retorno sedutor do complexo de Nicholas Marshall no processo penal brasileiro

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2 de agosto de 2014, 8h00

Spacca
O complexo de Nicholas Marshall é cada vez mais presente no Poder Judiciário. Deixo claro, com L. F. Barros, que essa é uma crítica de ficção em que, como em todas as outras do gênero, quaisquer semelhanças com situações e personagens reais foram cuidadosa, meticulosa e intencionalmente planejadas. Todas as dessemelhanças com a bizarra realidade dos personagens e teorias aqui apresentados devem-se apenas à falta de habilidade descritiva do autor.

Dizia Nicholas Marshall na abertura do seriado Dark Justice: "Como policial perdi muitos casos devido a truques jurídicos, mas eu acreditava no sistema. Como promotor perdi muitos casos para advogados corruptos, mas eu acreditava no sistema. Como juiz eu procurei seguir a lei ao pé da letra, porque eu acreditava no sistema… até eles destruírem minha família. Daí eu parei de acreditar no sistema e passei a acreditar na Justiça." 

A ideia do Estado-juiz é a de terceiro sem interesse objetivo e/ou subjetivo na condenação ou absolvição de ninguém. Não faz segurança pública, faxina higienista, nem participa de conluios com o Ministério Público e agências de segurança. O lugar de juiz na democracia deveria ser alheio. Quando não sabe o lugar que ocupa, mesmo cheio de boas intenções, não raro ocupa o lugar do charlatão.

A magistratura charlatã acontece, então, porque se sabe que seu lugar e função não deveria ser de jogador/parte processual, em associação com interesses de acusadores, investigadores, policiais, mas justamente de garantir o fair play[1]. Mas é muito pouco. O sujeito precisa ver e ser visto, mostrar que está cumprindo com sua ação para paz social[2]. Em sociedades loucas por higiene, quem representa a sujeira não pode ter outro destino que não a eliminação. Acrescente-se que o modelo puritano de fachada vigora nos princípios da imensa maioria dos foros, os quais vivem na perspectiva de um mundo ideal, alienados dos processos de criminalização. A charlatanice sem fronteiras em nome do bem dos homens de bem esconde o programa de eugenismo, executado por exemplares profissionais técnicos, como Eichmann era. A vontade fanática de impedir qualquer desordem traz o juiz para o lugar tenente de censor (Pierre Legendre). Elisabeth Roudinesco afirma que “o charlatão é, portanto, um ser duplo: endossa a sanção, mas é também condição de toda sanção. É tanto aquele que proporciona a cura com a ajuda de suas poções milagrosas como quem distribui a poção. Envenenador ou reparador, tirano e miserável, o charlatão é o outro da ciência e da razão, o outro de nós mesmos.”

 Era uma vez 2003, época em que escrevi um artigo denominado “O Juiz e o Complexo de Nicholas Marshall’. A atualidade do texto faz com que possa ser invocado. Talvez muitos não se recordem do juiz Nicholas Marshall e, assim, vale recordar que foi uma série produzida pela americana CBS entre os anos de 1991-1993, cujo protagonista (Nicholas Marshall) era um respeitável e honrado magistrado durante o dia, cumprindo as leis em vigor, dos prazos processuais, dos direitos dos acusados. No entanto, no período da noite, longe do tribunal, camuflado de justiceiro, com roupas comuns e cabelos soltos (já que os tinha compridos), decidia “fazer Justiça”. O seriado, por isso, denominava-se Justiça Final. Pretendendo o bem da sociedade e, antes das vítimas evidente, procurava por todas as formas aniquilar, matar e resolver os casos criminais (leia-se “criminosos”) que conhecia, ao arrepio da lei, claro. Acreditava que a Justiça ordinária era incapaz de “dar a devida resposta aos criminosos” e, então, por suas mãos, enfim, aplicava a (sua boa) Justiça. Era um espécime que mesmo exercendo funções estatais, preferia, esgueirando-se no submundo, protagonizar a função de Justiceiro incontrolado, movido por paixões pessoais.

Esse seriado retirado do fundo baú faz surgir uma reflexão importante atualmente: considerando que os resultados de controle social da atuação como Juiz não resultam no que se espera, será que está justificada a atuação como vingador social?

A resposta é negativa! O preço de se viver em democracia é o respeito pela diferença e a proibição da vingança privada. O Estado é quem assume a legitimidade para aplicar qualquer sanção, mediante um juiz imparcial, não se podendo admitir a vingança pessoal, sob pena de configuração de crime (Código Penal, artigo 345). Todavia, diante da ineficiência dos mecanismos de controle existentes, muito em decorrência do modelo repressor adotado, o qual reproduz a injustiça social reinante — valendo por todos a crítica formulada pelo saudoso professor Alessandro Baratta — acabam surgindo aqueles que “sabem o que é melhor para sociedade” e buscam aplicar as penas pelas próprias mãos: surgem os juízes justiceiros, inspirados no herói Nicholas Marshall. Cuida-se, no fundo, do “complexo de Nicholas Marshall”. Esse complexo atua na maioria dos casos de forma inconsciente na busca legítima de se cumprir o papel jurisdicional. A manipulação retórica e os espaços de mantras sagrados, como, por exemplo, da escalada da violência, gravidade da infração, possíveis crimes futuros, acabam servindo de instrumento para pseudo-legitimação de práticas autoritárias, baseadas no arrepiante critério da “bondade” do órgão julgador a aplicação da lei.

O problema é saber, como diz Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “qual é o critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas”.

Resultado disso é que os vingadores sociais, muitos deles usurpando da parcela de poder estatal que lhes é conferida como juízes, ou seja, no dever constitucional de garante dos Direitos Fundamentais e Humanos, nem precisam tirar suas becas para ceder espaço ao “Complexo de Nicholas Marshall”; o fazem em suas decisões, mediante recursos retóricos aceitos pelo senso comum teórico (Warat), em meras aplicações de lógica dedutiva no âmbito penal. Dentre estes existem dois, os quais classifico utilizando a boa dogmática (não resisto): o doloso, que conhece a teoria do delito, imputação objetiva, tipo do injusto, culpabilidade, dentre outras discussões contemporâneas, mas mesmo assim acredita que somente desta forma se faz Justiça e, portanto, é uma das faces do charlatão. E o segundo, o culposo que, por incapacidade teórica e de vontade, acaba reeditando o raciocínio dedutivo em nome da “manutenção da paz social”, sendo incapaz de discutir seriamente quaisquer das questões antes indicadas. É o juiz papagueador (aprende para repetir, somente).

Talvez se possa entender um pouco mais sobre os dilemas contemporâneos do processo penal eficiente quando se é acusado, a saber, ao se colocar na posição de acusado. Pergunta Amilton Bueno de Carvalho: Qual o juiz que se pretende ver julgando-nos? Se fôssemos os juízes poderíamos dizer que seríamos garantistas? Ou a garantia somente interessa quando formos acusados? O que não se pode é continuar aceitando as “novidades” legislativas sem uma profunda reflexão de qual é o nosso papel, nem os efeitos que nossas posições podem engendrar no coletivo. Os limites democráticos precisam ser recompostos. Tudo humano, demasiadamente humano, diria Nietzsche. Mais dia, menos dia, todos precisaremos de juízes garantistas… basta conseguir ficar vivo.

De sorte que aqui o ‘narcisismo do juiz’ é adubado pela estrutura. É que, primeiro, ocupa um lugar de portador da palavra do outro; depois, assume o papel de ‘inquisidor’ na gestão da prova, em busca da ilusória ‘verdade real’, e, ainda, pela maneira como se engaja, acaba acreditando que é o escolhido, o mandatário Divino capaz de conceder — com as implicações psicanalíticas do termo — a segurança jurídica, até a aposentadoria, claro. Adjetivar a verdade, com real[3], talvez possa ser um ato falho. Porque se a verdade indicada é a grega, não há distinção possível. Mas como eles possuem a certeza, própria da paranoia, de que estão absolutamente corretos, a eles o real apresenta-se normal. Não fosse o real, de fato, impossível. Lacan deixou evidenciado que o real está para além da cadeia significante, de impossível acesso. Por isso, dizemos sempre a verdade irreal, com estrutura de ficção. O poder, todavia, precisa legitimar a intervenção e seu furor sanandi nos ditos ‘criminosos’.

Então, a verdade real acaba atendendo a interesses ideológicos de quem pensa a estrutura e de ‘mecanismo paliativo de desencargo’ (Miranda Coutinho) para os demais neuróticos clivados, fiéis cumpridores das regras jurídicas. Embora uma certa parcela, ainda, ao assumir a função de juiz no processo, cuja herança inquisitorial se faz presente, no seu lugar de todo poderoso, gozem por imaginariamente serem… Talvez seja um ‘Complexo de He-Man.’ Talvez seja gente precisando, urgente, de auxílio. O problema principal é que, de regra, sofrem de ‘Normalpatia’ (L.F. Barros), cuja cura é impossível. Assim é que descobrir a Verdade Real se aproxima, muitas vezes, da esquizofrenia, onde o inconsciente fica a céu aberto. Os outrinhos, objetificados, por sua vez, se viram no absurdo que o processo gira, sem rumo. Nesse pensar, juízes se sentem (e precisam se sentir) membros natos, guardiães da verdade ligada à certeza; substituição cartesiana que veio preencher o vazio da verdade verdadeira, mas que não rejeitou seu lugar fundante.

O concurso, pelo qual muitos serão os chamados e poucos os escolhidos, agrava a situação. Neste pensar, o outro, por seus porta-vozes, diz mais ou menos o seguinte: a verdade real existe e pode ser conseguida no processo, desde que seguido um método interpretativo próprio, conforme lhes ensinarei. Legendre tinha razão ao vindicar o caráter messiânico dos ‘juristas de ofício’, sempre lotados das ‘melhores das intenções’, evidentemente. Mas como ‘eles não sabem o que fazem’ (Zizek), alienados que estão pelo que simbolicamente se erigiu em face de seu locus, fomentada desde a graduação, prestam-se a funcionar como ‘juristas do ofício’ que, para os platônicos, não poderia ser nada mais digno (Gerivaldo Neiva).

E, ao final, a pergunta que remanesce é a formulada por Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons (juízes Nicholas Marshall)?. Cuidado ao pisar no tapete… Se for o caso de se arriscar, quem sabe, use camuflagem antirreconhecimento do Vision Dazzle.

 


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

[2] ROUDINESCO, Elisabeth. O Paciente, o Terapeuta e o Estado Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 31: “A partir do final do século XIX, as políticas higienistas de saúde pública tiveram dois componentes: um, progressista, humanista e racional, visava melhorar a saúde das populações pelo rastreamento e tratamento das grandes doenças orgânicas; o outro, francamente reacionário, oculto e mortífero, desembocará no eugenismo, isto é, numa ideologia da eliminação da ‘raça’ ruim, dita ‘doente’, em prol da boa, dita ‘saudável’.”

[3] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

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