Livro Aberto

Os livros da vida do procurador de Justiça Lenio Streck

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29 de abril de 2014, 8h25

*Depoimento concedido a Livia Scocuglia.

Spacca
Foi na escola que tive o primeiro contato com a leitura. Li e reli a cartilha que contava o cotidiano de Olavo e Élida e seu cachorro Bodoque. Depois vieram os livros do Monteiro Lobato, que falava do personagem Jeca Tatu. O livro era Urupês, com várias narrativas. Jeca era a representação do sujeito abandonado pelo Estado, um lumpen sujeito à enfermidades tropicais e explorado ao extremo. Claro que eu não entendia isso na época.

Paradoxalmente, ao lado do realismo de Lobato, ao mesmo tempo me deliciava com a figura do caboclo idealizado, retratado pelas músicas sertanejas. Lia todos os livrinhos que tinham as letras das músicas das duplas caipiras, como Jacó e Jacozinho, Liu e Leo, Tião Carreiro e Pardinho, Silveira e Silveirinha, Tonico e Tinoco e mais duas dezenas de duplas. Meu tio Leonel fazia dupla com seu amigo Xará. Tudo o que existia de caderninhos de letras ele tinha. As músicas caipiras, em muitos casos, contam tragédias, como que a repetir o que as óperas retratam. Mas ópera só vim a conhecer depois que casei. Tenho até hoje uma vitrola para escutar vinis.

Ainda menino, durante o ensino fundamental, devorava a Revista do Esporte e o jornal da época que meu pai assinava (e que vinha atrasado), o Correio do Povo. Lá onde eu nasci, na Várzea do Agudo, onde o mato não tem fecho, como diria Guimarães Rosa, tudo chegava tarde. Acho que até eu, porque muito cedo me mudei para tentar a sorte na cidade.

Na escola, o livro que mais de influenciou foi o Compêndio de Historia do Brasil. Ele me influenciou tanto que, terminada a graduação em Direito, fiz dois cursos de pós-graduação em História, uma da América Latina e outra do Rio Grande do Sul.

Um pouco mais velho, passei a me interessar mais por gibis. Tinha inveja dos meninos que tinham coleções de gibis. No colegial morava com minha irmã e era obrigado a ser o primeiro da classe. Lia o que os professores indicavam. No colegial, lia sobre a história do Brasil além de José Lins do Rego e Machado de Assis.

Eu cursei a Faculdade de Direito com meia dúzia de livros. Era o que se tinha, além das xerox que desbotavam. Cursei Direito com muita dificuldade. Ouvi falar de Kelsen quando fiz pós-graduação em Teoria Geral do Direito, antes do mestrado. Larguei o futebol para estudar e trabalhar. O Direito pareceu-me adequado ao que eu pensava sobre a sociedade, a ditadura militar. Achava que o Direito era o modo de enfrentar isso. E, claro, de ganhar algum dinheiro. Quando eu era criança, meu pai me ensinou a dizer, em alemão, que eu queria ser advogado para tirar o dinheiro dos trouxas. Em todo lugar, ele me chamava e perguntava: o que tu vais ser quando crescer? E eu declinava a ladaínha. “Quando eu for grande…”. Decorei e era mais ou menos assim: Wenn ich gross bin, möchte ich ein Avokat sein, zu die Dummen das Geld abnehmen. Dizia “Avokat” em vez de Anwalt. E a frase nem estava bem correta. Mas foi a que decorei.

Pelo meu interesse pela política estudantil, desde cedo fui atrás de livros sobre filosofia, ciência política, sociologia, muita coisa ligada ao marxismo. Muitos livros sobre a União Soviética, Cuba, Argelia. Terminando a faculdade me enfronhei mais com a literatura latino-americana, a produção da Cepal e literatura que denunciava o autoritarismo. Tudo isso quase me custou a entrada no Ministério Público. Anos mais tarde, encontrei nos arquivos do MP informações prestadas “sigilosamente” por autoridades de Santa Cruz do Sul apontando o perigo que seria um sujeito como eu, "com ideias vermelhas", ser Promotor de Justiça. Tudo isso antes da Constituição, é claro.

Entre tudo o que estou lendo hoje, está A Civilização do Espetáculo, do Vargas Llosa, que mostra bem a fragmentação pós-moderna; A Guerra das Salamandras, de Karel Kapel, uma literatura fantástica nos dois sentidos da palavra; e Psique e Techne, de Umberto Galimberti. Esse não é literatura. E também o novo livro do Ernildo Stein, Nas Voltas da Metafisica. Nos últimos seis anos, li mais de 200 livros, incluídos contos. É que, além do deleite, apresento o programa Direito e Literatura. A primeira fase do programa, que durou seis anos, teve 215 edições, sempre um livro ou um conto de cada vez. Esses programas estão disponíveis em no site da Unisinos. Agora o programa está em nova fase, com uma hora de duração. Não é mais autoral e, sim, temático. Os convidados discutem o tema a partir de um livro de literatura. O programa está no ar na TV Justiça e a revista eletrônica Consultor Jurídico apresenta semanalmente um dos episódios.

A literatura narra o mundo melhor que o direito e a própria história. A certidão de nascimento do Brasil é um texto literário, A Carta de Pero Vaz de Caminha. E quem poderia contar melhor o Brasil que Machado de Assis, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato? Como entender o Direito Penal sem ler o conto Suje-se Gordo, de Machado? Ou entender o patrimonialismo e o estamentismo sem ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, cujo maior feito foi o de não ter deixado herdeiros, de tão pilantra e patife que era? E quantos Conselheiros Acácios, personagem de Primo Basílio, de Eça de Queiroz, encontramos por ai todos os dias? Sua máxima: “As consequências vêm sempre depois”! E quando vemos neonéscios por ai, como explicá-los sem ler A Teoria do medalhão, de Machado, em que o pai dá conselhos ao filho com inópia mental, como “Em vez de fazer um tratado sobre carneiros, compre um e asse para os amigos que você quer influenciar”. É demais, não? Livros "à mancheias”, como dizia Castro Alves. Quer estudar hermenêutica? Como não, para tanto, Medida por Medida, de Shakespeare? E a noção de imaginário, adiantada em 100 anos por Machado de Assis, com o conto Ideias de Canário?

Tenho os meus livros favoritos, como Antígona, de Sófocles, onde se discute pela primeira vez a relação “lei-direito”; Hécuba, de Eurípedes, em que se mostra a tragédia da guerra pela voz das mulheres; Oresteia, de Ésquilo, onde aparece pela primeira vez a autonomia do Direito; O Nome da Rosa, de Umberto Eco, em que podemos aprender o papel do nominalismo e da semiótica; O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, maior romance do século XX, que mostra, antes de começar, o declínio do homem na era da técnica; As Vinhas da Ira, romance político de engajamento de John Steinbeck; As Aventuras de Gulliver, de Swift, pelo qual podemos aprender a relação regra-princípio; Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll, em que o personagem Humpty Dumpty é a própria encarnação do juiz solipsista — que decide pela própria vontade. A Novela do Curioso Impertinente, de Cervantes. Por ali podemos apreender o que é a verdade real, na qual acreditava o personagem Alcelmo, buscando uma espécie de “fidelidade essencialista”. Veremos, ali, a “trampa” que é a tal “verdade real”. E gosto de todos do Bertolt Brecht, especialmente A Santa Joana dos Matadouros e o Círculo de Giz Caucasiano. E quem resiste a Cem Anos de Solidão? “Naquela pequena Macondo, as coisas ainda eram tão recentes, que, para dirigirmo-nos a elas tínhamos que apontar com o dedo, porque ainda não tinham nome.”

Li várias vezes o livro 1984, de George Orwell, para entender o papel do passado, presente e futuro e o valor da linguagem. Além desse, também tive de reler O Senhor das Moscas, de William Goldwin, para revisitar a teoria contratualista de Hobbes e O Nome da Rosa, de Eco, para entender o nominalismo e de como este é uma forma de positivismo, que por sua vez é uma forma de pragmaticismo.

Tenho muito interesse por filosofia. Acho que não há mundo sem filosofia, e não há Direito sem filosofia. Os juristas acham que é possível estudar direito blindando-o da filosofia. Tem até autores importantes como Alexy que, ao que parece, acredita ser possível fazer teoria do direito sem filosofia. Mas não dá.

Gosto também de poemas. Meus preferidos são Manoel de Barros e cito de cor um pedaço de O Apanhador de Desperdícios: “Uso as palavras para compor meus silêncios; não gosto das palavras fatigadas de informar; queria que minha voz tivesse um formato de canto; porque eu não sou da informática; eu sou da invencionática: só uso as palavras para compor meus silêncios”. Não é lindo? E o que dizer de Stephen Georg: “Que nada seja onde fracassa a palavra”, de onde eu tirei uma espécie de poema meu, em que digo: “A palavra é pá-que-lavra, porque vai abrindo sulcos na imaginação, onde nascem as sementes da significação”.

Gosto também de Hilde Domin, que diz: "Palavras e coisas jaziam juntos, tinham a mesma temperatura". E eu acrescentei: "E depois se separaram e nunca mais se encontraram". O próprio Heidegger tem poemas, como: “A linguagem é a casa do ser, nessa casa mora o homem, os poetas e os pensadores são os vigilantes dessa morada”. Ou T.S. Eliot: “Em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo”.

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