Passado a Limpo

O estudante que criticou a República no exame de madureza

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

24 de abril de 2014, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy - 21/11/2013 [Spacca]Respondendo a um aviso do ministro da Justiça e Negócios Interiores, o consultor-geral da República opinou, em 1907, a propósito de suposta injúria cometida por estudante em exame de madureza. Questionou-se a legalidade de aplicação de regra do Código de Ensino então vigente que penalizava um estudante por ter insolentemente se referido à República, em desfavor do Império, ao responder a questão proposta em exame de madureza.

Como se lerá no parecer, o estudante ao dissertar sobre o alcance social da proclamação da República havia escrito que no Império havia caracteres, e que na República não os havia. E que no Império a moralidade era representada na figura respeitável do Imperador, enquanto que na a República vingava o regimento da imoralidade, do filhotismo, da sem-vergonhice e da ladroeira.

O estudante fora reprovado com base no argumento de que faltara com respeito e atenção para com a banca examinadora.

No entanto, entendeu o parecerista, deveria se provar objetivamente que os examinadores teriam sido desacatados ou injuriados, pessoalmente, pelo aluno que se reprovou.

Reconheceu-se que as frases lançadas na prova eram de fato insólitas. Porém, não atingiam diretamente aos professores que aplicaram o exame. Evidenciou-se tratar-se de juízo apaixonado sobre formas de governo. Não havia, na compreensão do parecerista, a pessoalidade do tratamento injurioso, que a penalização reclamava. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor Geral da República. Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1907. 

Sr. Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores. 

Respondo a consulta formulada no Aviso desse Ministério n. 1.860, de 12 do mês findo e papéis que o acompanham, sobre saber se foi legal a aplicação, em ato regido pelo Código do Ensino e pelo Regulamento do Ginásio Nacional, do dispositivo penal consignado nas Instruções de 23 de novembro de 1901.

O estudante Leven Vampré, prestando exame de madureza no Ginásio da Capital do Estado de S. Paulo, na prova escrita de português, que versava sobre o tema “A proclamação da República e seu alcance social”, escreveu o seguinte:

“No Império havia caracteres, na República não os temos. O Império era a moralidade representada na figura respeitável do Imperador, a República é o regimento da imoralidade, do filhotismo, da sem-vergonhice, da ladroeira”. 

Em virtude disto, conforme informou o delegado fiscal respetivo, foi aquele examinando reprovado, fundamentando a mesa examinadora esse ato no dispositivo do art. 64 das instruções aprovadas pelo decreto n. 4.247, de 23 de novembro de 1901, que é redigido nestes termos:

“Os candidatos que forem encontrados com livros, apontamentos ou quaisquer notas particulares, serão excluídos do exame e considerados como reprovados. Na mesma disposição incorrerão os que não se portarem com o devido respeito e atenção.” 

Ora, as referidas instruções regulam os exames parcelados, e porque as penalidades estabelecidas nessas instruções são restritamente imputáveis aos candidatos a tais exames, seria exorbitante aplicá-las a examinandos de outra natureza, e que tem a sua lei nas disposições do Código do Ensino e Regulamento do Ginásio Nacional, onde nada se dispôs sobre o assunto.

Quando, porém, se pudesse aplicar aos examinandos de madureza o preceito do citado art. 64, ainda assim não teria razão de ser a imposição da pena de que se trata, porque seria necessário provar que a mesa ou os examinadores houvessem sofrido desacato ou sido injuriados. Ora, para que se verifique desacato ou injúria a autoridades ou corporações oficiais é indispensável que o ultraje ou ofensas sejam dirigidos a pessoas que representem a autoridade pública, no exercício de suas funções. E outro não pode ser o sentido das expressões empregadas naquele artigo.

Portanto, ainda que se considerem insólitas as frases escritas na prova pelo examinando, desde que tais frases não tenham por fim ofender os professores, não havendo o animus, isto é, a intenção dolosa, mas apenas um juízo apaixonado sobre formas de governo, que são coisas abstratas, sem personalidade em que recaia a ofensa, segue-se que os examinadores deviam ter julgado as provas pelo seu valor histórico-científico.

Penso, pois, que o recurso merece provimento para ordenar que as provas sejam julgadas segundo o seu valor científico. — T.A. Araripe Júnior.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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