Processo Novo

Nem sempre doutrina estrangeira serve para nossa realidade

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  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

21 de abril de 2014, 8h00

Spacca
Diz-se, no livro do profeta Jeremias, que é maldito o homem que confia no homem e dele faz seu braço forte.[1] Entendo, a partir desse trecho, que o problema não é apenas confiar no homem:[2] a questão é ter o homem como seu único apoio. Dito de outro modo, e para o que interessa neste texto, a questão está em como nos apoiamos no outro, confiando cegamente, por exemplo, na palavra de “a” ou “b”, para resolver os problemas da vida. Veja-se o que ocorre entre nós, que lidamos com o Direito, caro leitor. Dependemos da lei, é evidente. Mas, para compreender a lei, dependemos da doutrina e da jurisprudência.

Tenho lido textos de muitos juristas brasileiros e estrangeiros, que respeito muito, apoiando-se na doutrina de autores do quilate de Ronald Dworkin, Robert Alexy, Jungen Habermas, apenas para citar alguns exemplos. Mas outros juristas criticam esses mesmos autores. E há os juristas — respeitabilíssimos! — ainda, que criticam outros juristas exponenciais, afirmando que estes criticam sem ter entendido nada do que Dworkin, Alexy e Habermas disseram… Para completar, ouço um professor que respeito muito, e que esteve, há poucos meses, em dada universidade estrangeira, dizendo que tal autor mudou de opinião e está escrevendo a respeito, e que estamos nos baseando, por aqui, em algo escrito há “x” anos, que não representa mais o que aquele autor pensa.

Entendo que interpretar e aplicar o Direito não é tarefa simples. Mas é incumbência do jurista tentar explicar como isso deve ser feito, se não facilitando — talvez esse empreendimento seja destinado ao fracasso — ao menos amenizando as dificuldades que se colocam aos advogados, juízes, promotores de Justiça, professores e alunos. Quando uma determinada linha doutrinária é, por si só, fonte de dificuldades, tornando os problemas da vida mais complexos do que eles já são, talvez ela não deva ser nosso “braço forte”. Temo quando, por exemplo, para se decidir se um paciente terminal deve receber do Estado um determinado medicamento, invoca-se a doutrina de um autor estrangeiro, que desenvolveu suas teorias sobre democracia em uma época de prosperidade europeia. Se é para buscar ajuda na experiência estrangeira, em alguns casos talvez seja mais adequado ver como se resolveu tal problema, por exemplo, na África do Sul, e não nos Estados Unidos da América.

Por enquanto, fiquemos com o que temos por aqui. A dificuldade em determinar os limites de atuação do Supremo Tribunal Federal em relação ao Legislativo, por exemplo, não pode se limitar a um embate do tipo “procedimentalistas versus substancialistas” nos moldes estrangeiros. É indispensável considerar a realidade brasileira.[3] É inadmissível que se ignore fenômenos como presidencialismo de coalizão ou democracia delegativa, que inevitavelmente determinam o “funcionamento” dos atores que criam as leis entre nós.[4] O Supremo Tribunal Federal deve se esforçar em aplicar a Constituição resolvendo os problemas brasileiros à luz da realidade brasileira.

Faríamos muito — talvez não o suficiente, mas já seria um avanço — se nos limitássemos a respeitar o que diz a Constituição e nossas leis. A doutrina (brasileira!) tem um importante papel a desempenhar nesse sentido, mas o tem, também, os Tribunais: os juízes estão na mídia, mais que a doutrina. É preciso tomar cuidado. Argumentos de autoridade baseados em doutrina estrangeira construída à luz de outro direito para resolver problemas de lugar ou época diferentes nem sempre podem (eu diria, até, que em muitos casos não devem) ser observados para se resolver dilemas jurídicos brasileiros.

O que nos resta? Estudar o direito com humildade, esforçando-nos para justificar, com honestidade, o sentido que atribuímos aos textos constitucional e legal, tendo sempre como propósito aprimorar nossa democracia. Que não contemos, para isso, com um braço forte de alguém que, talvez, não conheçamos — mas que, certamente, não nos conhece. Minha homenagem àqueles que assim agem, ainda que em meio a dúvidas e cientes de sua imperfeição humana, e tentam, com sua atividade, aprimorar o direito e melhorar a vida das pessoas.


[1] O texto bíblico vai mais longe, referindo-se àquele que se apoia no homem, e não em Deus.
[2] Um sistema é arruinado quando nele impera a desconfiança. Por essas e outras razões, tenho insistido, em vários textos desta coluna, na ideia de que devemos construir uma jurisprudência íntegra.
[3] O texto escrito recentemente por Saul Tourinho (disponível aqui, para assinantes), embora escrito sob outra perspectiva, foi direto ao ponto.
[4] Refiro-me ao tema na obra Constituição Federal comentada, 3. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2014.

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