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Falta de relação com Congresso atrapalha juízes, diz deputado

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16 de abril de 2014, 7h43

Os sistemas legislativo e judiciário parecem viver em universos distintos. Mas não é assim. Ambos convivem com sistemas processuais, atracam-se em casos concretos, têm a lei e a Constituição como matéria prima e, cada vez mais, têm a opinião pública como referência. Claro: juízes reclamam tanto da qualidade das leis quanto legisladores reclamam da qualidade de decisões.

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Arnaldo Faria de Sá [Reprodução]Em cada legislatura, um pequeno grupo de parlamentares serve de ponte entre os intérpretes da lei e seus formuladores. Um deputado, em especial, integra esse circuito integrado há sete mandatos sem ter esse mérito reconhecido publicamente: o paulista Arnaldo Faria de Sá (foto), do PTB. Embora tenha se tornado famoso pelas questões relacionadas à Previdência, Faria de Sá é um personagem dotado de uma habilidade que o torna valioso em qualquer matéria — ele é um dos principais regimentalistas do Congresso, aquele personagem que viabiliza ou inviaviliza uma votação sem precisar de maioria para a decisão.

Já os representantes do Judiciário, mesmo acostumados a leis e ordens, costumam tropeçar quando o assunto é política ou elaboração legislativa. E capacidade de negociação, com paciência e catimba, são qualidades imprescindíveis no ambiente parlamentar. Por isso, não é raro que propostas orçamentárias do Judiciário sejam cortadas na carne. E têm o mesmo de outros projetos que impliquem custos, como reajustes, criação de varas, de cargos de juiz ou instalação de fóruns.

Aos 68 anos, Faria de Sá está está há quase trinta anos na Câmara dos Deputados. Antes da política, foi contabilista, radialista, professor e advogado especializado em Direito Previdenciário. Chegou a concorrer à Vice-Prefeitura de São Paulo. Arnaldo Faria de Sá foi um dos coordenadores da campanha de Fernando Collor em São Paulo e acabou indicado vice-líder do governo na Câmara. Em 1991, rompeu com o então presidente e se filiou primeiro ao PFL e, depois, ao PPB. Entre 1993 e 1994, durante a administração de Paulo Maluf na Prefeitura paulistana, foi secretário municipal de Esportes.

“Arnaldo Faria de Sá é o deputado mais presente nos encontros da Justiça. Vai a todos os eventos”, admira-se o presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região no biênio 2012-2014, Newton De Lucca. O atual chefe do TRF-3, desembargador Fábio Prieto, é outro que não poupa elogios à capacidade do parlamentar. Faria de Sá festeja: “Nos eventos, o Prieto costuma dizer que eu não sou o representante do Legislativo nas cerimônias do Judiciário, mas o representante do Judiciário no Legislativo”, gaba-se o deputado.

A aproximação com a Justiça se deu pelo interesse como advogado previdencialista. Não à toa, uma de suas primeiras contribuições foi com a criação dos Juizados Especiais Federais, em 2001. A Lei 10.259 instituiu os Juizados. O Conselho da Justiça Federal limitou sua competência para ações previdenciárias e de assistência social, além das questões penais. O desembargador Márcio Moraes era o então presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. “Na época, não tínhamos condições de instalar [Juizados] para todas as matérias. Não tínhamos orçamento, prédio, funcionários, computadores. Optamos por dar preferência ao jurisdicionado mais carente da Justiça Federal, que é o segurado da Previdência Social. Ele não pode esperar o processamento de uma ação em uma vara comum, que leva anos para julgar”, contou em entrevista à ConJurclique aqui para ler. “Lá instalamos, inclusive, autos sem papel, com a criação de um programa pelos próprios funcionários do tribunal, ganhador de um prêmio Innovare em 2006.”

Os Juizados são a menina dos olhos do deputado, que também ajudou na aprovação da lei que aumentou o número de Turmas Recursais, segunda instância desse ramo. A Lei 12.665, sancionada em 2012, criou 75 Turmas com cargos fixos de juiz, função que antes era desempenhada por julgadores com mandatos temporários. “O projeto foi uma luta minha. Muita gente no Congresso não sabia sequer o que era um Juizado, apesar de eles existirem há mais de dez anos. Foi difícil explicar”, lembra Faria de Sá. Sua atuação foi crucial para que a 3ª Região passasse de cinco para as atuais 11 Turmas Recursais.

A luta pelos Juizados não termina no Congresso. Faria de Sá insiste, gestão após gestão, com os presidentes do TRF-3 para que eles multipliquem as varas principalmente no interior. As duas últimas administrações da corte, comandadas pelos desembargadores Roberto Haddad (2010-2012) e Newton De Lucca (2012-2014), foram as que mais deram passos nesse sentido, com 18 Juizados e seis Turmas Recursais inaugurados, praticamente o dobro das gestões anteriores. Isso sem contar as ampliações de competências feitas por De Lucca. Onde havia uma vara, foi instalado também um Juizado e vice-versa, de forma a otimizar o aproveitamento da estrutura. Foram feitas 16 transformações dessa natureza.

“O exemplo dos Juizados em pouco tempo vai acabar se espalhando pelo Brasil”, aposta. Ele confirma o relato do desembargador Márcio Moraes e lembra que a informatização dos processos na primeira instância começou nos Juizados Especiais Federais de São Paulo. “O processo eletrônico, de que tanto se fala hoje, nasceu lá, desenvolvido por funcionários da própria Justiça, sem nenhuma empresa contratada.”

Varas federais comuns também estão entre as prioridades. Em 2009, a Lei 12.011 aumentou o número em 230 — com dois juízes e 35 funcionários cada uma —, das quais 43 a serem instaladas na 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) até o fim de 2014. Segundo Faria de Sá, um dos defensores da expansão, o objetivo eram 400 ao todo. “A proposta estava travada na Comissão de Finanças e Tributação [da Câmara] porque o hoje senador José Pimentel (PT-CE), na época deputado, era contra. Uma promessa de criação de vara no Ceará não tinha sido cumprida e ele cobrava a fatura. Mas negociamos e conseguimos aprovar. A contribuição da Ajufe [Associação dos Juízes federais do Brasil] foi fundamental”, conta.

O deputado também intercedeu pela Justiça estadual. Chegou a se reunir com o então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori, para encontrar uma solução para o custo que processos federais geram para a Justiça estadual devido à competência delegada. Assim que assumiu o comando da corte, em 2012, Sartori propôs cobrar da União uma fatura de R$ 1,5 milhão gastos anualmente com a tramitação de processos ajuizados em locais onde não há vara federal, mas que têm o governo federal e seus órgãos como parte. A Constituição Federal prevê que, em tais situações, a competência federal seja delegada aos juízes estaduais. Sartori estima esse volume em 10% do movimento do 1º Grau paulista.

“É um pedido justo”, reconhece Faria de Sá. Segundo ele, porém, o debate terminou juntamente com o mandato do antigo presidente, no começo deste ano, antes que houvesse um anteprojeto de lei escrito. “Mas isso deve ser retomado em breve.” O desembargador Ivan Sartori reconhece a boa vontade. “Ele sempre se colocou à disposição, estava disposto a ajudar. Mas nada se conseguiu”, lamenta.

Via de mão dupla
Segundo Faria de Sá, é justamente a falta desse tipo de relacionamento que cria dificuldades para o Judiciário convencer os parlamentares. “Foi o motivo de a PEC dos Recursos não vingar. O ministro Cezar Peluso fez um projeto solitário e o entregou ao senador Ricardo Ferraz (PMDB-ES). Achou que seria suficiente”, diz. A mesma crítica vale para o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa. Mas ele elogia presidentes anteriores, como Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Nelson Jobim. “Só não perdoo o Jobim porque ele, juntamente com o Renan [Calheiros] (PMDB-AL), inventou a PEC do Calote. E agora nem o Supremo consegue sair do imbróglio que ela causou”, afirma, se referindo à demora da corte em fixar índices de correção e a vigência da declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62/2009, fruto da PEC.

A modulação dos efeitos das decisões, inclusive, é uma violação à separação dos Poderes, ele diz. “É uma manifesta vontade do Supremo em substituir o Legislativo, e isso não pode”, crava. “O STF pode declarar uma lei inconstitucional, ou até mesmo mandar fazer uma outra PEC, mas modular, não.”

Por outro lado, ele reconhece os bons efeitos da ameaça do Supremo em publicar uma súmula vinculante quanto à inconstitucionalidade de benefícios fiscais concedidos por leis estaduais sem o aval do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). “A sinalização do Supremo foi exemplar. Avisou que vai editar a súmula obrigando as empresas a pagar o imposto retroativamente. Isso obriga o Congresso e as empresas a resolver o assunto politicamente para evitar o pior. E se o Congresso deixar de fazê-lo, não terá mais razão para acusar o Judiciário de legislar”, avisa. 

O Superior Tribunal de Justiça também merece elogios, segundo o deputado. Faria de Sá conta que o presidente da corte, ministro Felix Fischer, tem organizado frequentes encontros e cafés da manhã com parlamentares, a fim de estimular o relacionamento. O mesmo vale para os desembargadores Roberto Haddad, Marli Ferreira, Diva Malerbi, Anna Maria Pimentel e Jorge Scartezzini, todos ex-presidentes do TRF-3, os dois últimos já aposentados. “A vantagem desses desembargadores é que tinham paciência. Haddad e De Lucca, por exemplo, foram até o Congresso para que eu os apresentasse ao relator da Comissão de Orçamento, ao presidente da Câmara, aos deputados”, lembra o deputado.

Por isso, segundo ele, há pelo menos oito anos o TRF-3 tem sido destino de emendas de bancada. Diferentemente das emendas parlamentares, essas dotações dependem do convencimento de um maior número de congressistas, mas têm a vantagem de não serem limitadas por um teto. Foi uma emenda de bancada, por exemplo, que permitiu o término da construção do fórum Ruy Barbosa, prédio da Justiça do Trabalho em São Paulo pivô de um escândalo de R$ 170 milhões. A descoberta dos desvios atribuídos a figuras como o juiz Nicolau dos Santos Neves e o ex-senador Luiz Estêvão em meio à construção paralisou a obra. Seu término só foi possível graças à iniciativa da desembargadora Maria Aparecida Pelegrina, então presidente do TRT. “Muita gente não sabe, mas foi ela quem salvou aquele prédio. Foi atrás de recursos e se expôs, já que qualquer coisa a respeito daquela obra era negativa e havia restrições do Conselho Nacional de Justiça. Se não fosse ela, o prédio seria um fantasma até hoje”, diz Faria de Sá, que afirma ter sido o autor do pedido de emenda.  

Trincheira legal
Legislador experiente, Faria de Sá sabe escolher as batalhas. Não entra, por exemplo, na de eleições diretas para presidentes dos tribunais, bandeira dos juízes de 1º Grau contra o direito exclusivo dos desembargadores de escolher os chefes das cortes. “Essa não passa. A Emenda Constitucional 45, quando acabou com os tribunais de alçada, aumentou o número de desembargadores ao incluir os antigos juízes de alçada. Quando juntou tudo, cresceu o universo representativo dos desembargadores. Hoje, seria difícil ampliar isso”, diagnostica.

O mesmo fim deve ter a demanda dos juízes federais por mais vagas nos Tribunais Regionais Eleitorais e pela presidência dessas casas, segundo o deputado. “Eles afirmam que essa é uma Justiça federal na qual quem manda são os juízes estaduais. Mas quando a Justiça Eleitoral foi criada, a Justiça Federal não era tão pulverizada quanto é hoje. É preciso um juiz eleitoral para cada comarca e ainda não há juízes federais suficientes para isso. É uma briga que não vai dar em nada.”

No entanto, Faria de Sá já se prepara para entrar na briga contra proposta de emenda à Constituição que pretende tirar da Justiça estadual a competência para julgar acidentes de trabalho. O texto já está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. “É uma burrada sem precedentes. As varas estaduais especializadas trabalham muito bem, com resultado positivo. As varas federais já estão abarrotadas. Não vejo lógica nisso, e a proposta sequer veio da Justiça”, critica.

Batalha financeira
A parceria com o Judiciário não fica só no quesito “leis”. Político profissional, Faria de Sá é o desafogo dos presidentes de tribunais quando a questão é conseguir verba federal, como testemunha o desembargador Newton De Lucca, ex-presidente do TRF-3: “Eu não conhecia quase ninguém no Congresso. Aquilo era uma peregrinação. Tantos anexos, túneis… Eu chegava a me perder. Foi o Arnaldo quem me abriu as portas para discutir recursos e leis de interesse do tribunal”, conta.

Uma das histórias foi a da construção de um prédio para o fórum federal em Santos (SP). Por uma questão de horas a obra quase não sai do papel. Orçada em R$ 2,1 milhões, seu valor demandava emendas de pelo menos três parlamentares. A menos de 24 horas do prazo final, no dia 31 de dezembro, De Lucca tinha o compromisso de apenas dois. “Fui até o Arnaldo, que me pegou pelo braço e me levou aos gabinetes”, comemora o desembargador. Tudo caminhava para um final feliz quando, em cima da hora, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) retirou seu apoio. E a nova correria só terminou quando os senadores Antonio Carlos Rodriges (PR-SP) e Aloisio Nunes (PSDB-SP) aderiram ao projeto e empenharam suas emendas.

Outros prédios contaram com a ajuda de deputados com eleitores nas cidades onde a Justiça Federal queria instalar as varas. “São emendas setorizadas. Para a cidade de Santos, os indicados são os deputados Beto Mansour (PRB-SP) e Márcio França (PSB-SP); em Marília, é o Abelardo Camarinha (PSB-SP); em Bauru, Milton Monti (PR-SP). Eu dava esses direcionamentos”, conta Faria de Sá.

Hoje, a briga é para repassar o prédio da sede da Telefonica à Justiça Federal. O edifício de 23 andares na Rua Martiniano de Carvalho, em São Paulo, era da antiga Telesp, privatizada em 1998 e comprada pela companhia espanhola. O TRF-3 espera que o imóvel seja considerado um bem reversível — ou seja, que seja devolvido ao fim do prazo de concessão, em 2015 —, já que não há registros de domínio emitido pela Secretaria de Patrimônio da União em favor da operadora. “Estamos tentando resolver essa questão na SPU, porque o prédio estava abandonado. A empresa fez um aparente uso do prédio, mas ela não tem título de domínio”, diz o deputado.

Ele também pede ajuda ao Judiciário. Atualmente, tenta convencer os desembargadores a pressionar o governo federal para aumentar os repasses de verbas para Requisições de Pequeno Valor. As RPVs são emitidas quando a Justiça decide a favor de um credor contra o Estado. Diferentemente dos precatórios, não entram numa fila interminável, mas podem ser quitadas imediatamente pela Justiça — o que depende de quanto o governo destina do orçamento aos Judiciários. “Depois que o valor atinge o teto, é preciso conseguir crédito extra, que o governo demora para mandar”, critica.

Segundo o deputado, uma estratégia para isso pode ser o sequestro de verbas federais pela Justiça. “Quando os Juizados começaram, o INSS se recusava a pagar as condenações. Bastou a desembargadora Marisa Santos [coordenadora dos Juizados Especiais Federais na 3ª Região], na época, ameaçar de prisão os gerentes e superintendentes, que o dinheiro começou a aparecer.” E para Faria de Sá, a Justiça precisa retomar a pressão psicológica.

Faria de Sá é favorável ao uso da mesma estratégia para objetivos corporativos dos juízes. Segundo ele, é legítima a greve branca por aumento de salários. “Quem atravanca o Judiciário é a União. Se os juízes pararem de julgar processos de interesse do governo federal, podem conseguir mudar esse quadro”, ensina.

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