Direito Comparado

Os 200 anos da Ordem constitucional nos Países Baixos (II)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

16 de abril de 2014, 19h51

Spacca
Otavio Luiz Rodrigues - 20/06/2012 [Spacca]Os 200 anos da ordem constitucional dos Países foram objeto da coluna da semana anterior (clique aqui para ler: http://www.conjur.com.br/2014-abr-09/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-reino-paises-baixos) e, nesta semana, conforme anunciado, far-se-á o estudo dos principais pontos da bicentenária constituição holandesa.

A base da atual constituição encontra-se no projeto de 1815, que, por sua vez, alterou a Constituição de 1814 para incluir as províncias católicas do Sul, correspondentes ao atual Reino da Bélgica. Com o fracasso dessa união forçada entre católicos e protestantes, o que resultou na secessão territorial e no nascimento da Bélgica, o texto constitucional foi modificado para se adequar à nova realidade política, o que se deu em 1840.

Outro momento histórico relevante para a história constitucional holandesa foi o ano de 1848, conhecido como a “esquina do mundo”, porque nele se concentraram os mais violentos levantes populares na Europa desde a Revolução Francesa. Salvo no Reino Unido da Grã-Bretanha e poucos estados europeus, a maior parte do continente foi sacudida por revoltas violentíssimas, que contestaram o arranjo político decorrente da Convenção de Viena, que restaurou o status quo do Antigo Regime, após a derrota de Napoleão Bonaparte.

Nos Países Baixos, não foi diferente. Com o povo nas ruas, o rei Guilherme II (1792-1849), filho do fundador do reino e herói da Batalha de Waterloo, antecipou-se à contestação de seus direitos dinásticos e do regime monarquiano e tomou para si a liderança da reforma da ordem constitucional. Seus vizinhos em França, a dinastia Orleans, que havia sucedido seus primos Bourbon após a Revolução de 1830, foram derrubados e proclamou-se a república. Esse foi um enorme estímulo para que o chefe da Casa de Orange-Nassau dissesse que passou de conservador a liberal em uma só noite.

O encarregado de elaborar o anteprojeto de reforma da constituição do Reino dos Países Baixos foi Johan Rudolph Thorbecke (1798-1872), líder liberal, professor de relações internacionais na Universidade de Leiden e um crítico da Constituição de 1815. Thorbecke publicou um estudo, em 1839, quase dez anos antes da reforma de 1848, no qual propunha a adequação da lei fundamental à nova realidade política de seu tempo. Com esse trabalho, ele ganhou notoriedade e espaço na cena partidária holandesa.

Com a crise de 1848, não foi surpresa a designação real de Johan Rudolph Thorbecke para a chefia do comitê para a revisão constitucional. As principais mudanças foram a mitigação do voto censitário; a instituição de um regime parlamentarista democrático; as eleições diretas para a Câmara Baixa e a outorga de poderes para que o Parlamento modificasse as proposições legislativas do Poder Executivo. Outro ponto digno de nota foi a instituição de um pequeno catálogo de direitos fundamentais, que contemplava as liberdades de crença, de educação, de reunião e de organização religiosa, além do sigilo de correspondência.

O resultado dessa reforma foi extremamente favorável para a monarquia e para os Países Baixos. As graves consequências e o morticínio de 1848 foram evitados e as anteciparam-se as reformas que outras nações europeias, como a Rússia, a Alemanha e a Austria-Hungria não fizeram e, por isso, conheceram a fúria de seus povos no início do século XX.

Como resultado de sua bem-sucedida reforma constitucional, que entrou em vigor em 3 de novembro de 1848, o professor Johan Rudolph Thorbecke converteu-se em uma figura política preeminente nos Países Baixos durante as próximas duas décadas e meia. A luta de Thorbecke pela modernização das instituições políticas holandesas contou com um visceral opositor: o novo rei Guilherme III (1817-1890), que ascendera ao trono em 1849. Sua luta foi bem sucedida e seus passos podem ser detectados nas reformas constitucionais da segunda metade do século XIX, algumas delas aprovadas mesmo após sua morte, ocorrida em 1872, em pleno exercício das funções de chefe do Conselho de Ministros. O voto censitário foi praticamente abolido, a separação total entre Igreja e Estado implementou-se e o Senado passou a ter membros eleitos.

A Primeira Guerra Mundial e os efeitos da Revolução de Outubro (a Revolução Russa de 1917) foram causas deflagradoras de novas reformas constitucionais. O sufrágio universal foi adotado sem mitigações e fez-se uma reforma eleitoral.

Após um flerte com o corporativismo na década de 1930, o que demonstra o apoio de amplos setores da sociedade holandesa aos movimentos radicais que campearam pela Europa, como o fascismo, o nacional-socialismo e suas variantes. Com a invasão alemã e a fuga da Família Real e do Governo para o exílio em Londres, a Constituição foi suspensa. O Exército Real dos Países Baixos continuou a lutar nas colônias, especialmente contra os japoneses, e por meio de seus aviadores e marinheiros, baseados em Londres.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o problema constitucional mais emergente era a resolução da questão colonial. No entanto, a independência dos territórios ultramarinos mostrou-se inevitável e a intervenção do Direito revelou-se inútil.

Nos anos 1980, ocorreu uma drástica revisão constitucional, na qual praticamente todos os artigos do texto de 1815 foram alterados, suprimidos ou aditados.

Sobrevivem na ordem constitucional holandesa, até hoje, elementos de direito consuetudinário, ao exemplo dos procedimentos de formação do Conselho de Ministros e a regra não escrita da impossibilidade do bloqueio do processo legislativo pelo Senado.

Interessa agora fazer uma análise do texto da Constituição dos Países Baixos em sua redação atual:[1]

a) Catálogo de direitos fundamentais. O primeiro capítulo da constituição é um catálogo de direitos fundamentais, que, à semelhança de muitos textos dessa natureza, assegura a igualdade entre os sujeitos, bem como o direito a não discriminação por razões religiosas, de crença política, de opinião, sexuais, raciais e de qualquer outra natureza. São ainda reconhecidos os direitos de petição; de liberdade de crença e de culto; de liberdade de expressão; de não censura dos meios de comunicação; de associação e de reunião; de privacidade; de acesso a dados pessoais; da inviolabilidade pessoal; de sigilo de correspondência, de comunicações telefônicas e telegráficas; de propriedade e de justa indenização em caso de atos expropriatórios pelo Estado; de liberdade; de ser representado juridicamente em processos administrativos e jurídicos, de entre outros.

Os direitos sociais integram os direitos fundamentais. Caberá ao Estado, nesse contexto, assegurar a saúde, o pleno emprego; a proteção aos direitos trabalhistas e de seguridade social, além do ao acesso à cultura e à educação.

b) Estrutura do Governo. O segundo capítulo da constituição holandesa é dedicado ao “Governo”, no qual se integram duas seções, dedicadas, respectivamente, ao Rei e ao Rei e seus Ministros.

O monarca dos Países Baixos deverá ser um descendente do rei Guilherme I, príncipe de Orange-Nassau. É possível que, por um ato do Parlamento, alguém seja expressamente excluído do direito de ascender ao trono.

No art. 42, diz-se textualmente que “os ministros, e não o rei, devem ser responsáveis pelos atos de governo”. A chefia das funções do Gabinete caberá a um primeiro-ministro, indicado por decreto real.

c) Os Estados Gerais. Com essa curiosa nomenclatura, que remonta ao período pré-constitucional, os “representantes de todo o povo dos Países Baixos” reúnem-se nos Estados Gerais (art. 50), que se compõem da Câmara Baixa (com 150 membros) e da Câmara Baixa (com 75 membros), com legislaturas que duram 4 anos. Os deputados elegem-se por voto direto e secreto de todos os súditos. Os senadores são escolhdiso pelos membros dos conselhos provinciais.

d) Outras instituições nacionais. A constituição holandesa manteve um órgão que é tradicional nos países influenciados pelo modelo francês: o Conselho de Estado, que tem funções consultivas em matéria legislativa e de tratados internacionais. Os conflitos administrativos também podem ser resolvidos pelo Conselho de Estado, cuja presidência é atribuída ao rei.

Existe também um Tribunal de Contas, encarregado de analisar as receitas e despesas do Estado. Seus membros são vitalícios e indicados pela Câmara Baixa.

O Ouvidor Nacional é outra instituição nacional holandesa. Sua indicação é feita pela Câmara Baixa, por um período definido pelo Parlamento, e sua função é investigar as autoridades do Estado ou delas exigir providências administrativas que se considerem necessárias para o cumprimento de suas atribuições.

e) Administração da Justiça. No capítulo sexto, não há um título sobre o “Poder Judiciário”, mas sim sobre a “Administração da Justiça”. A solução dos conflitos em matéria civil é de responsabilidade do Poder Judiciário. As questões alheias ao Direito Civil deverão ser resolvidas por atos do Parlamento ou por tribunais não administrativos, segundo métodos específicos, definidos congressualmente. Uma vez mais se identifica a influência francesa nesta parte da constituição holandesa, com a separação entre matérias cíveis e administrativas e com o rompimento do monopólio jurisdicional do Poder Judiciário.

Os Países Baixos têm um Tribunal Supremo, cujos membros são nomeados a partir de uma indicação feita pela Câmara Baixa dos Estados Gerais. Sua função é cassatória e também a de julgar autoridades com foro especial, ao exemplo dos atuais e antigos membros dos Estados Gerais, dos ministros e secretários de Estado, em razão de crimes cometidos no exercício de suas funções.

Ainda aqui a tradição francesa mais antiga foi observada: o art. 120 da Constituição proíbe que as cortes judiciais se pronunciem sobre a constitucionalidade dos atos do Parlamento ou dos tratados internacionais.

Esses são, em síntese, alguns dos mais importantes comandos constitucionais dos Países Baixos. A multissecular história dessa nação, as influências profundas do Direito Público francês e a evolução do constitucionalismo europeu do pós-guerra ditam suas grandes linhas e, de um modo curiosamente harmonioso, conseguiram tornar esse Estado um dos mais ricos, desenvolvidos e estáveis de toda a Europa.

Seus 200 anos de ordem constitucional merecem realmente ser comemorados. Mais do que o exemplo de um “patriotismo constitucional”, que se tem muito apregoado nos últimos tempos, os holandeses forneceram ao mundo um modelo de constitucionalismo discreto, que remete muitas de suas questões para o Parlamento ou para as leis ordinárias e que consegue estabilizar suas instituições, sem que se crie uma censurável estagnação.

Talvez se deva olhar com maior atenção para a experiência constitucional holandesa, quando se debatem mudanças no sistema brasileiro. 


[1] Esta parte da coluna foi escrita com base no texto da Constituição do Reino dos Países Baixos, disponível em holandês e inglês, nesta página: http://www.legislationline.org/documents/section/constitutions/country/12. Utilizou-se a versão em inglês.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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