Guerra ao terror

Combatente inimigo não detém garantias legais do direito

Autor

  • Andrea de Quadros Dantas Echeverria

    é mestre em Direito das Relações Internacionais (Uniceub) pós-graduada em Globalização Justiça e Segurança Humana (ESMPU/Universidade de Bochum-Alemanha) bacharel em Ciência Política (UnB) e Direito (UniCeub) advogada da União com atuação perante o Supremo Tribunal Federal membro do Conselho Editorial da Revista da Advocacia-Geral da União e autora do livro Combatente Inimigo Homo Sacer ou inimigo absoluto? O Estado de exceção e o novo nomos na Terra - O impacto do terrorismo sobre o sistema jurídico-político do século XXI.

6 de abril de 2014, 8h11

No que se refere ao terrorismo e a guerra ao terror, o estabelecimento do que seria lícito ou ilícito parece cada vez mais fluido, sendo os conceitos redesenhados a partir dos interesses políticos envolvidos.

Um dos conceitos mais interessantes, desenvolvido pelo Governo Bush e supostamente abandonado pelo Governo Obama[1], é o chamado combatente inimigo. Para se ter uma ideia da importância desse conceito e da sua disseminação no cotidiano norte-americano, basta dizer que ele foi utilizado no primeiro episódio da terceira temporada de Homeland, uma série que tem o terrorismo como contexto para o desenvolvimento de várias histórias de investigação e traição embricadas na denominada luta contra o terror.

Na citada série, o então Diretor da CIA, Saul Bereson (interpretado por Mandy Patikin), é chamado ao Congresso Nacional para explicar uma operação secreta que teria resultado na morte de seis suspeitos de comandar uma extensa rede terrorista responsável por um ataque desta rede à sede da CIA. Ao ser questionado se o departarmento de inteligência teria determinado o assassinato de seis civis, o diretor se restringe a responder: “o termo legal é combatente inimigo”.

Vamos, então, retomar e esclarecer o que foi dito: a CIA determinou o assassinato de seis civis, sendo que durante a operação foram assassinadas inúmeras outras pessoas e inclusive uma criança, pertencentes a diversas nacionalidades, sob a única justificativa de que tais pessoas, por estarem supostamente envolvidas em atos terroristas, poderiam ser enquadradas no conceito de combatente inimigo.

A pergunta a que se propõe é a seguinte: pode a CIA simplesmente assassinar civis suspeitos de envolvimento em atos terroristas? A resposta a tal pergunta passa exatamente pelo entendimento do que seja um combatente inimigo e quais pessoas poderiam ser enquadrados nesse conceito.

O conceito de combatente inimigo começou a ser delineado no julgamento do caso ex parte Milligan, durante a Guerra Civil, quando a Suprema Corte norte-americana entendeu que um cidadão civil não poderia ser considerado um inimigo nem, portanto, estar sujeito à jurisdição militar[2].

Contudo, tal paradigma foi drasticamente alterado quando, ao julgar o caso Quirin, a Suprema Corte afirmou que a escolha da jurisdição a ser aplicada (se regular ou militar) não dependeria da nacionalidade do indivíduo, mas sim se o ato por ele cometido se enquadraria ou não como violação ao direito de guerra[3]. Cria-se, assim, a possibilidade de que um cidadão norte-americano seja declarado um inimigo dos Estados Unidos[4].

Em 2002, a administração Bush anunciou que os prisioneiros pertencentes ao grupo Al Qaeda e, posteriormente os demais suspeitos de terrorismo, não estariam abarcados pela Convenção de Genebra, nem se qualificariam como prisioneiros de guerra[5], classificando-os, afinal, como combatentes inimigos, o que permitiu fossem tais indivíduos detidos preventivamente, sem qualquer formalidade processual prévia. Tal designação foi traçada essencialmente para distinguir essa nova categoria dos denominados prisioneiros de guerra (protegidos por tal convenção), afastando assim a incidência das garantias jurídicas internas ou internacionais.

Em 2004, a Suprema Corte norte-americana iniciaria sua intervenção na denominada guerra ao terror, ao julgar as petições de habeas corpus impetradas por detidos em Guantánamo sob a classificação de combatentes inimigos[6].

No julgamento Hamdi v. Rumsfeld, a Suprema Corte confirmou a legalidade de prisões de indivíduos classificados como combatente inimigo[7], ao afirmar, por maioria de votos[8], que Constituição permitiria a detenção dos inimigos combatentes por parte do Poder Executivo sem a necessária observância do procedimento penal ordinário. Por outro lado, visando manter parte dos poderes excepcionais do Executivo, a Suprema Corte concluiu pela possibilidade de utilização de simples evidências testemunhais secundárias (hearsay) e que uma evidencia plausível do status de inimigo combatente poderia estabelecer a presunção daquela qualificação[9].

Posteriormente, quando a Suprema Corte, ao julgar o caso Rasul v. Bush,  reconheceu pela primeira vez sua jurisdição sobre os habeas corpus impetrados em favor daqueles detidos na Baía de Guantánamo[10], a administração Bush apressou-se em apresentar duas soluções para o problema: (1) a criação de Tribunais de Revisão do Status de Combatente, que tinham por função analisar quais detidos estariam inseridos na condição de combatente inimigo[11] e; (2) a aprovação pelo Congresso da Lei de Tratamento dos Presos, que retirava dos tribunais federais a jurisdição sobre os habeas corpus impetrados em favor dos detidos em Guantánamo[12].

A constitucionalidade de tais atos foi posta em julgamento no caso Hamdan v. Rumsfeld, quando a Suprema Corte norte-americana afastou sua retroatividade da Lei de Tratamento de Presos[13], ressaltando, entretanto, que a jurisdição constitucional apenas seria mantida nos casos em que não havia uma decisão final dos Tribunais de Revisão (CSRT)[14]. Também nesse julgamento a Suprema Corte determinou a incidência do artigo comum 3 da Convenção de Genebra aos envolvidos na denominada ‘guerra ao terror’, o que estabeleceu a observância de um padrão mínimo de proteção aos direitos dos detentos.

Em resposta, o Executivo promulgou uma nova lei (Lei de Comissões Militares de 2006/MCA) que substituiu a Lei de Tratamento dos Presos e retirou expressamente a jurisdição das cortes americanas para receber qualquer pedido de habeas corpus de “estrangeiro detido pelos Estados Unidos que tenha sido determinado pelo governo norte-americano como inimigo combatente ou que aguarde essa determinação[15].

A inconstitucionalidade da retirada de jurisdição estabelecida pela Lei de Comissões Militares de 2006 foi reconhecida perante a Suprema Corte, no julgamento Boumediene v. Bush[16], quando restou reafirmado o direito ao habeas corpus aos detidos em Guantánamo. No que se refere especificamente à possibilidade de acesso a documento classificado como confidencial, a Suprema Corte manteve o poder discricionário do Executivo, em prol da segurança nacional[17].

O que se percebe é que em nenhum momento o foco das discussões recaiu sobre a possibilidade de o presidente designar qualquer indivíduo como combatente inimigo – o que em regra foi aceito pelo Judiciário como um poder inerente à função do commander-inchief

A leitura dos casos citados bem demonstra que a guerra ao terror foi utilizada como fundamento para uma excessiva e perigosa concentração de poderes nas mãos do Executivo, que culminou no poder de imputação unilateral do rótulo de combatente inimigo, o que significa em última instância que tais indivíduos estão excluídos do direito dos conflitos armados, do direito internacional e do direito americano, incluindo aqui as garantias constitucionais[18].

Mesmo a vitória no caso Boumediene não é suficiente para afastar tal constatação, pois, embora tenha sido reafirmada a jurisdição norte-americana sobre a Baía de Guantánamo e estabelecido o direito de tais detentos impetrarem habeas corpus para contestar suas detenções, tal julgamento não tocou no ponto nodal da questão, qual seja, a possibilidade de qualificação de qualquer indivíduo como combatente inimigo.

Novamente, não foi questionado o fato de tais indivíduos não estarem abrangidos pela Convenção de Genebra sobre tratamento de prisioneiros de guerra, nem foi delimitado o rol de garantias materiais e processuais as quais tais detidos teriam direito.

No ponto, não é demasiado afirmar que a Suprema Corte não afastou a discricionariedade do governo norte-americano na análise dos indícios considerados suficientes para qualificar um indivíduo como combatente inimigo, reduzindo de forma considerável o padrão de robutez de prova utilizado no procedimento penal regular.

Voltamos assim para a pergunta inicial, poderia então os Estados Unidos simplesmente determinar o assassinato de civis suspeitos de terrorismo?

Embora nenhum caso semelhante tenha sido julgado ou se tornado público, o fato é que uma vez inserido no conceito de combatente inimigo, o indivíduo não mais detêm as garantias legais do direito interno ou internacional. Aliás, tal fenômeno – de exclusão das proteções jurídicas – foi um dos pilares que permitiram o holocausto durante o regime nazista[19].

Na visão de um dos mais renomados filósofos contemporâneos, Giorgio Agamben, mais importante do que questionar a possibilidade de estabelecer a impunidade da morte de um indivíduo, é observar quais os “procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas[20].

Nesse caso, é possível afirmar sim, que os Estados Unidos possuem procedimentos jurídicos e dispositivos políticos capazes de tornar impunível o assassinato de combatentes inimigos. Além do procedimento jurídico de qualificação do indivíduo como combatente inimigo, tem-se como um dos principais dispositivos políticos, a disseminação da ideia – que perpassa a mente do cidadão comum – de que a sua sobrevivência depende da morte daquelas pessoas[21].

Observa-se que a ficção não está assim tão longe de se tornar realidade. Portanto, merecem atenção não apenas os próximos episódios da série Homeland, mas especialmente os desdobramentos jurídico-políticos das ações dos Estados Unidos na chamada guerra ao terror.

 

 


[1] É importante ressaltar que, embora em março de 2009, a administração Obama tenha afastado o uso da expressão ‘combatente inimigo’, a nova definição da autoridade governamental para deter suspeitos de terrorismo é muito similar ao padrão utilizado na era Bush

[2] ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Ex parte Milligan, 71 U.S. 2 (1866). p. 4.

[3] ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Ex parte Quirin, 317 U.S. 1 (1942). p. 37-40.

[4] RHODES, Stewart. Solving the Puzzle of Enemy Combatant Status. 2004. 94 f. Supervised Analytic Writing Paper-Yale Law School, 2004.

[5] ELSEA, Jennifer K. e GARCIA, Michael John. Enemy Combatant Detainees: Habeas Corpus Challenges in Federal Court. Congressional Research Service, 2010.

[6] ELSEA, Jennifer K. e GARCIA, Michael John. Enemy Combatant Detainees: Habeas Corpus Challenges in Federal Court. Congressional Research Service, 2010. p. 1.

[7] KAMENS, Geremy C. Hamdi v. Rumsfeld. In: GREENBERG, Karen J. e DRATEL, Joshua L, (Orgs). Enemy Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 176.

[8] Votaram no mesmo sentido do voto condutor da Ministra O’Connor, os Ministros Rehnquist, Kennedy e Breyer. ESTADOS UNIDOS. Supreme Court.  Hamdi v. Rumsfeld, 542 U.S. 507 (2004).

[9] FALLON, Richard H. e MELTZER, Daniel J. Habeas Corpus Jurisdiction, Substantive Rights, and the War on Terror. Harvard Law Review, v. 120, n. 8, 2007. p. 2047.

[10] ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Rasul v. Bush, 542 U.S. 466 (2004).

[11] MARGULIES, Joseph. Rasul v. Bush. In: GREENBERG, Karen J. e DRATEL, Joshua L, (Orgs). Enemy Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror.  Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 3-7. p. 4.

[12] ELSEA, Jennifer K. e GARCIA, Michael John. Enemy Combatant Detainees: Habeas Corpus Challenges in Federal Court. Congressional Research Service, 2010. p. 1. No mesmo sentido: LONDRAS, Fiona de. Na Sombra do Caso Hamdan v. Rumsfeld: O Direito dos Prisioneiros da Baía de Guantánamo ao Habeas Corpus. Panóptica, v. 2, n. 13, p. 241-258, 2009.  p. 247.

[13]ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Hamdan v. Rumsfeld, 548 U.S. 557 (2006). In: GREENBERG, Karen J. e DRATEL, Joshua L, (Orgs). Enemy Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, pp. 397/658. p. 560/561.

[14] LONDRAS, Fiona de. Na Sombra do Caso Hamdan v. Rumsfeld: O Direito dos Prisioneiros da Baía de Guantánamo ao Habeas Corpus. Panóptica, v. 2, n. 13, p. 241-258, 2009. p. 251.

[15] ESTADOS UNIDOS. Public Law 109-366 (Military Commisions Act), de 17 de outubro de 2006.

[16] Nesse julgamento foi reconhecida a a inconstitucionalidade do parágrafo 7 da Lei de Comissões Militares por violação à cláusula de suspensão constitucional, pois o procedimento de revisão da DTA não abarcava esses direitos considerados como mínimos pela Suprema Corte. ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Boumediene v. Bush, 553 U.S. 723 (2008).

[17] ESTADOS UNIDOS. Supreme Court. Boumediene v. Bush, 553 U.S. 723 (2008). p. 2275.

[18] DRATEL, Joshua L. Repeating History: Rights and Security in the War on Terror. In: GREENBERG, Karen J. e DRATEL, Joshua L, (Orgs). Enemy Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. xiii.

[19] Para mais informações sobre esse paralelo: ECHEVERRIA, Andrea de Quadros Dantas. COMBATENTE INIMIGO, HOMO SACER OU INIMIGO ABSOLUTO? O ESTADO DE EXCEÇÃO E O NOVO NOMOS NA TERRA – O impacto do terrorismo sobre o sistema jurídico-político do século XXI. Curitiba: Editora CRV, 2013.

[20] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Lisboa: Editorial Presença, 1998. p. 178.

[21] TAGMA, Halit Mustafa. Homo Sacer vs. Homo Soccer Mom: Reading Agamben and Foucault in the War on Terror. Alternatives, n. 34, p. 407-435, 2009, p. 417.

 

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