Atuação na ditadura

"Direito Penal não resolve desigualdade social"

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5 de abril de 2014, 9h51

Se fosse elaborada uma lista com os advogados que mais defenderam presos políticos durante a ditadura militar, Antonio Evaristo de Moraes Filho provavelmente a encabeçaria. Embora não haja uma contabilidade oficial, seus contemporâneos da advocacia especulam algo em torno de mil defesas. Elas incluem ex-presidentes como João Goulart, Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros e Fernando Henrique Cardoso.

Também é longa a lista de julgamentos com repercussão nacional que contaram com sua atuação. O assassinato de Ângela Diniz por Doca Street; o crime da Rua Toneleros (atentado que feriu Carlos Lacerda e matou o major Rubens Vaz); a extradição do criminoso nazista Franz Stangl, chefe do campo de concentração de Treblinka; o “caso Mônica”, e a defesa do então presidente Fernando Collor de Mello, no processo criminal perante o Supremo Tribunal Federal, são alguns deles.

Antonio Evaristo de Moraes Filho morreu em 1997, aos 63 anos de idade. Estava no auge da carreira. Para o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, ele foi nada menos que o “maior advogado da segunda metade do século XX”. Para o jornalista Elio Gaspari, que livrou-se de ser extraditado para a Itália devido à intervenção do advogado, Evaristo de Moraes era daquelas pessoas “capazes de transformar horas difíceis em momentos inesquecíveis”.

Doutor em Direito Penal e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil, membro do Conselho Nacional de Polícia Criminal e Penitenciária e presidente do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária. Evaristinho, como era carinhosamente chamado pelos amigos, chegou a se aventurar no jornalismo, como repórter do jornal Última Hora. E também na política. Refundou, ao lado do advogado Evandro Lins e Silva, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), pelo qual chegou a ser indicado, em 1989, como candidato a vice-presidente na chapa de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Ele tratava um ministro do Supremo e o aluno dele da mesma forma. Aconselhava e ao mesmo tempo pedia conselho”, lembra o filho Renato de Moraes, que hoje divide com o irmão Eduardo de Moraes o escritório de advocacia Evaristo de Moraes, especializado na área criminal. Com a ajuda de outro irmão, Antonio Evaristo de Moraes Neto — que optou pela Medicina em vez do Direito —, eles acabam de lançar o livro Antonio Evaristo de Moraes Filho 80 anos — Saudade (Topbooks).

Com artigos, discursos, entrevistas e palestras do “Advogado da Liberdade” — título pelo qual também era conhecido —, a obra tem o objetivo de organizar e preservar a memória de um criminalista que marcou história. “Porque os pensamentos dele e as questões que abordou são importantes, hoje, tanto para um advogado em formação como para um advogado em plena atividade profissional”, resume Renato de Moraes, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Segundo ele, muitos dos pontos de vista defendidos pelo pai permanecem mais atuais do que nunca. "Ele sempre entendeu que o Direito Penal não resolve desigualdade social, endurecimento de pena não resolve a criminalidade", diz. 

Leia a entrevista:

ConJur — Seu pai é tido como um dos advogados que mais defenderam presos políticos na ditadura militar.
Renato de Moraes — Ele defendia gratuitamente porque via nisso um dever cívico. O número chega a quase mil defesas. Por isso, acabou preso, logo após a edição do Ato Institucional 5 (AI-5), em 1968. O entendimento dos militares era de que se ele defendia aquelas pessoas, ele também pertencia àquelas organizações clandestinas. Passou um dia na prisão, encontrou amigos, fez injunções e logo foi solto, a pedido do ex-presidente Eugênio Gaspar Dutra.

ConJur — Lembra de alguma história em particular?
Renato de Moraes — Durante a ditadura militar ele defendeu ex-presidentes como Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, e jornalistas como Elio Gaspari. A história do Elio tem uma curiosidade, porque explica a origem do personagem “Eremildo, o idiota”, adotado em sua coluna (publicada nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo). O Eremildo de fato existiu, era o reitor de sua universidade, que o perseguia ostensivamente. Elio é italiano e sofreu um processo de expulsão do país movido pelo Eremildo. Meu pai o defendeu e o processo não foi adiante. Na mesma época, Fernando Henrique Cardoso também foi defendido por ele. Fernando Henrique voltou do exílio devido a um Habeas Corpus impetrado por ele.

ConJur — Na sua opinião, quais pontos de vista de Antonio Evaristo de Moraes Filho seguem atuais?
Renato de Moraes — Há uma questão que o Supremo Tribunal Federal não decidiu até hoje, sobre os poderes investigatórios do Ministério Público, ou seja, se o MP pode presidir um inquérito policial ou não. Ele publicou um artigo sobre o tema, em 1995. A posição dele era que a Constituição não permite que o MP substitua a polícia judiciária para investigar. Por quê? Porque o MP é quem propõe a Ação Penal. Pela Constituição, quem propõe não pode ser aquele que colhe as provas. Se for assim, a investigação corre o risco de ser dirigida: “se for amigo, arquiva; se for inimigo, acusa”. Óbvio que dentro de uma instituição, como na própria advocacia, há parcelas que podem ter desvios de conduta. A posição dele era muito firme sobre isso. Como sabemos, o STF ainda não decidiu sobre o tema. Eu lembro que o ministro Dias Toffoli, quando ainda era advogado-geral da União, deu parecer em uma ação de inconstitucionalidade, com uma posição idêntica à do meu pai, citando-o inclusive.

ConJur — Alguma posição dele permanece, digamos, tristemente atual?
Renato de Moraes — O que ele chamava de “massacre do tribunal”. Após o massacre de Corumbiara [resultado de um conflito agrário ocorrido no município de Rondônia, em 9 de agosto de 1995, que resultou na morte de 10 pessoas, entre elas oito camponeses e dois policiais. As investigações apontaram que o ataque ao acampamento dos sem-terra foi iniciado por pistoleiros armados e soldados da PM, com os rostos cobertos], o MST chamou meu pai para fazer a defesa de quatro sem-terra, acusados de homicídio. Ele sempre foi guiado pela ideia de um socialismo democrático, pela reforma agrária, que não foi implementada mesmo depois do governo Lula. Ele chegou a publicar um artigo no jornal O Globo, nos anos 90, intitulado “Massacres na terra e no tribunal”, abordando o assunto. No artigo, ele afirma o seguinte: se acontece um assassinato, como o de Dorothy Stang [missionária norte-americana que defendia o uso sustentável da terra em Anapu, sudoeste do Pará, e foi assassinada com três tiros em fevereiro de 2005], numa localidade erma, provavelmente, o fazendeiro é amigo do juiz, ou o tem a graça do juiz, por pertencerem à mesma casta. Esse cenário acaba levando a um massacre do tribunal também. Já naquela época, ele defendia a ideia, que veio a se materializar na Emenda Constitucional 45/2004, de um incidente para se avaliar se é preciso retirar o julgamento da Justiça estadual e levá-lo para a esfera federal. O primeiro caso que suscitou a possível aplicação dessa emenda foi o julgamento por causa da morte de Dorothy Stang. Embora a possibilidade de federalização tenha sido levantada, optou-se, no final, pela realização do tribunal do júri em Belém. Mas, em todo processo do júri, há a figura do desaforamento. Se, por exemplo, ocorrer um episódio no interior do estado do RJ e o advogado entender que, por se tratar de crime de morte de uma pessoa querida da cidade, haver a possibilidade de um envolvimento maior da comunidade que deixe no ar a dúvida sobre a imparcialidade do júri, há para isso uma medida a ser tomada, especificamente em casos de crime de sangue, que é o desaforamento, ou seja, transferir o julgamento para o tribunal da capital. Mas o papai defendia mais do que isso, defendia a hipótese da federalização.

ConJur — Como seu pai via a questão da superlotação dos presídios?
Renato de Moraes — A preocupação dele era com a causa da criminalidade, não com a repressão. Ele sempre entendeu que o Direito Penal não resolve desigualdade social, endurecimento de pena não resolve a criminalidade. Essa ideia de que fulano cometeu um crime e “só” ficará cinco anos na cadeira, essa sensação de impunidade, embora legítima, não vai resolver a causa da criminalidade. Enquanto não se atacar a questão da desigualdade social, da segurança, da educação, nada vai mudar. É preciso afastar a política da questão criminal, porque o legislador segue a lógica de que endurecer dá votos.

Conjur — Seu pai dizia que o estudante de Direito sonhava em ser advogado criminal por causa da notoriedade. Será que ele ainda pensaria assim hoje?
Renato de Moraes — Acredito que não. Ao longo do tempo isso diminuiu muito. Há um chavão que diz que o estudante de Direito se apaixona pelo Direito Penal, mas casa com o Direito Civil. Exatamente pelo estigma que existe em torno da atuação do advogado criminal. Há uma confusão grande que a sociedade sempre faz entre o advogado e o réu. Meu pai sofreu patrulhamento quando defendeu Collor. O Evandro Lins e Silva sofreu patrulhamento no caso Doca Street. O próprio Márcio Thomaz Bastos sofreu, recentemente, por ter defendido Carlos Cachoeira. Isso existe. Além disso, a delegacia policial não é um ambiente em que as pessoas, em geral, queiram frequentar. Essas coisas afastam o casamento com o Direito Penal. Mas que ele é apaixonante, é.

ConJur — Por lidar com casos que ganham repercussão nacional, o advogado criminal, a exemplo de seu pai, precisa desenvolver a habilidade de dialogar com a imprensa?
Renato de Moraes — Sem dúvida, porque são casos que mexem com toda sociedade. Quer dizer, você fica indignado vendo um crime de morte, uma acusação de corrupção. Então, não é uma solução empresarial, do tipo “eu vou entrar numa recuperação judicial da empresa A, B ou C”, ou vou dividir uma sociedade. Isso não desperta muito interesse do grande público. A verdade é que a nossa sociedade é muito mal tratada pelo poder público. Nada do que pagamos em impostos volta na mesma proporção, seja em segurança, saúde e educação. E esse povo, de certa forma, sublima suas frustrações pessoais em um sentimento de vingança, o que é natural. Quando lê que fulano foi preso ele sente que de certa forma foi feita Justiça. A causa criminal tem essa repercussão, diferentemente das outras áreas do Direito e o advogado tem que ter essa sensibilidade. Raramente ele vai conseguir mudar a opinião consensual, porque o réu é o desgraçado da hora. A opinião pública, às vezes, é um monstro de mil cabeças.

ConJur — Em qual dos julgamentos que seu pai participou a importância de se relacionar com a imprensa foi mais emblemática?
Renato de Moraes — O que talvez ilustre melhor a atitude dele com a imprensa seja o Caso Mônica, ocorrido em 1985 [morte da jovem estudante de 14 anos, que despencou do apartamento de um edifício de classe média carioca, no bairro da Lagoa. Os envolvidos eram o namorado, de 22 anos, e dois amigos, ambos com 19, sobre os quais pesavam a acusação de homicídio e ocultação de cadáver. As circunstâncias de sua morte até hoje são obscuras]. Meu pai defendia um dos amigos do namorado da jovem, que não estava no apartamento no momento do fato, mas ajudou a ocultar o cadáver. Sua principal tarefa, portanto, era provar que seu cliente não estava no apartamento, mas numa festa junina do colégio. Por conta da repercussão que o caso tomou, as pessoas que poderiam testemunhar a favor se intimidavam ou eram proibidas de falar pelos próprios pais, por medo das consequências que a exposição traria. Nessas circunstâncias, meu pai decidiu oferecer ao então repórter do jornal O Globo, Antero Luiz, uma entrevista  exclusiva com o rapaz. Após mais de dois dias de entrevista, o jornalista — que, mais tarde, tornou-se advogado criminalista — publicou uma matéria que mudou o enfoque da cobertura, o que acabou sendo determinante para os rumos do processo. O jovem, que havia sido preso acusado de homicídio, não foi sequer à júri. Respondeu processo por ocultação de cadáver, que de fato foi o que ele fez para ajudar o amigo. Da parte do meu pai foi um ato de desespero. Ele disse: “se eu não conseguir convencer a imprensa, não provarei a inocência desse menino e mais um erro judiciário vai acontecer”.

ConJur — Aliás, seu pai chegou a ter uma breve passagem como jornalista.
Renato de Moraes — Sim. Quando meu avô morreu [o criminalista Evaristo de Moraes], meu pai tinha seis anos. Era só ele e a mãe. Naquela época, a advocacia não gerava riqueza e nosso avô não deixou nada além de amigos, e foram eles que custearam o funeral e encaminharam meu pai para o colégio militar. Quando concluiu o colégio, ele decidiu seguir os passos do pai. Mas precisava trabalhar, ter algum rendimento. Sua mãe era esteticista e uma de suas clientes era esposa do já célebre jornalista Samuel Wainer, que montava, naquela época, a equipe do jornal Última Hora. Ela pediu uma vaga para o filho, e como ele já era estudante de Direito foi designado para cobrir o dia a dia do Fórum de Justiça. Ele integrou a equipe inicial do jornal, cobriu o tribunal entre 1951 e 1957, na coluna Foro Íntimo. Até que um dia Samuel Wainer chamou-o para uma conversa, disse que ele precisava se decidir. “Advogado e jornalista são profissões que não combinam”, disse. Mas meu pai insistiu para ficar, e foi transferido para a editoria policial. Logo ocorreram duas situações que fizeram ele perceber que Samuel Wainer tinha razão. Na primeira, como advogado — na época, ele dividia o tempo entre o estágio no escritório e o trabalho no jornal —, foi à delegacia acompanhar a soltura de um cliente. Em seguida, houve uma perseguição, o cliente foi preso novamente, e ele ficou retido na delegacia. Resultado: todos os jornais noticiaram o caso, menos o Última Hora, porque ali ele estava como advogado e não como jornalista. Mesmo depois disso, ele continuou trabalhando no jornal. A gota d’água foi um suicídio ocorrido em Copacabana. Ele estava na redação, recebendo informes do jornalista que estava no hospital acompanhando o caso, pois a pessoa estava em estado grave, mas não tinha morrido. Com o prazo de fechamento se esgotando, ele passou a ligar para o colega a fim de confirmar a morte e, assim, publicar a notícia na edição do dia seguinte. Quando finalmente veio a confirmação, ele soltou um grito no meio da redação: “Morreu!”. Ali ele sentiu que estava na hora de seguir só com a advocacia…

ConJur — Como ele era no dia a dia?
Renato de Moraes — Ele respeitava muito a opinião dos outros. Não era dono da verdade. Ele gostava de discutir a verdade de cada um. Mas acredito que a simplicidade era uma de suas principais marcas. Ele tratava um ministro do Supremo e o aluno dele da mesma forma. Aconselhava e ao mesmo tempo pedia conselho. Ele tinha convicção de que mesmo tendo o conhecimento que tinha, nós precisamos estar sempre abertos a aprender. Aprender com a opinião contrária, porque se a opinião for igual não se aprende. Essa abertura tem muita relação com o ideário socialista dele.

ConJur — Dá para resumir os motivos pelos quais se deve cultivar a memória de Antonio Evaristo de Moraes Filho?
Renato de Moraes — O Brasil é ainda muito débil na preservação da memória daqueles que marcaram sua história. Cultivar a memória de Antonio Evaristo de Moraes Filho é fundamental porque os pensamentos dele e as questões que abordou são importantes, hoje, tanto para um advogado em formação como para um advogado em plena atividade profissional. Em um discurso para estudantes de Direito, ao falar sobre os requisitos que devem ter um juiz, um promotor, um advogado ou um jurista para cumprir com sua missão, ele afirma que não se trata apenas de missão profissional, mas social, de desenvolvimento do país, na qual você deve pensar no ser humano, ou seja, não é uma atividade burocrática. Quando ele diz isso, serve para qualquer tempo. O objetivo de trazer esses pensamentos com este livro é, sobretudo, para levantar a discussão. Justamente como ele fazia, sem dogma, apenas trazendo ideias para serem pensadas e discutidas. No Brasil, nós pesquisamos pouco, em todas as ciências, revisitamos pouco a história daqueles que nos ensinaram. Nós só olhamos para frente e de forma cada vez mais egoísta, preocupados apenas com o nosso rumo e daqueles a quem nós amamos, mas estamos deixando de pensar numa dimensão maior, coletiva. E ele tinha essa visão. Acredito que ela precisa vir à tona, para alimentar a ideia de que sozinho será difícil, mas se nos aglutinarmos, se conseguirmos atrair cada vez mais pessoas para um bem comum, a felicidade, no sentido mais amplo, de pessoas vivendo com o mínimo de dignidade, é possível. Acho que se este livro trouxer essa centelha para o debate, já terá valido a pena.

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