É hora de um balanço sobre o Supremo e a AP 470
30 de setembro de 2013, 14h03
Considero que o julgamento da Ação Penal 470 é relevantíssimo para a história do Supremo Tribunal Federal. Com base na experiência decorrente do processamento dessa ação penal, entendo que podemos fazer um balanço para perquirir se o STF que sai desse julgamento é o de que precisamos, no Brasil.
Este não é mais um texto sobre o cabimento dos Embargos Infringentes, ou para tomar partido a favor ou contra os réus na Ação Penal 470. Sobre esses assuntos, há uma quantidade quase infinita de textos já publicados por juristas, jornalistas etc. Aqui, a preocupação é outra.
Desejo, hoje, lançar algumas linhas sobre o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal no direito brasileiro, e, em especial, sobre a necessidade de conformá-lo ou pelo menos aproximá-lo mais de algo que poderíamos chamar de corte constitucional.
Se alguém ainda poderia, antes do julgamento da Ação Penal 470, sustentar o contrário, fica evidente, hoje, que o Supremo Tribunal Federal não é uma autêntica corte constitucional.
Qualquer que seja o conceito que se adote de “corte constitucional”, parece claro que um tribunal que ostente tal condição deve ocupar-se do contencioso constitucional. No caso do Supremo Tribunal Federal, trata-se, sem dúvida, de um tribunal que também tem competência que decidir sobre qual o correto modo de interpretar a Constituição, de realizar o controle concentrado (ou abstrato) de constitucionalidade e que, quando atua no desempenho dessas competências, faz, entre nós, as vezes de um tribunal constitucional. A competência do Supremo Tribunal Federal, no entanto, é vastíssima.
A Ação Penal 470 é um exemplo, dentre centenas de ações penais originárias que, hoje, tramitam no Supremo Tribunal Federal. Outras ações e recursos previstos no artigo 102 da Constituição Federal, de igual modo, parecem não se compatibilizar com a tarefa a ser desempenhada por uma corte constitucional. Além disso, o papel do Supremo Tribunal Federal, de “guardião da Constituição” — e que deveria exercer, preponderantemente, julgando ações diretas de inconstitucionalidade, recursos extraordinários que veiculem questão constitucional com repercussão geral etc. —, se não deixado de lado, ao menos ficou em segundo plano, nestes últimos meses: a Ação Penal 470 foi o foco principal da atenção dos ministros, e a grande maioria das demais ações e recursos em que o tribunal deveria exercer aquele papel de guardião da Constituição ficaram e ainda ficarão aguardando desfecho.
Isso, definitivamente, não faz sentido. Não se coloca em dúvida a importância de casos como o da Ação Penal 470, mas o julgamento de ações como essa não devem ser submetidas a um tribunal que tem a pretensão de ser uma corte constitucional.
Já passou da hora de se discutir seriamente, entre nós, acerca da importância de uma corte constitucional, e de como essa função deve ser exercida por um tribunal como o Supremo Tribunal Federal.
Não se trata, a meu ver, de, por exemplo, se “copiar” o padrão de corte constitucional observado em muitos sistemas europeus, ou nos Estados Unidos da America. A experiência estrangeira é interessante e pode ser importante para lançar luzes para se resolver problemas que ocorrem entre nós. Considero, contudo, que é possível aprimorar o modelo brasileiro, para aproximar o Supremo Tribunal Federal de algo que poderíamos chamar de corte constitucional, sem que seja necessário, contudo, que simplesmente se tente adaptar algum padrão de outro país ao contexto brasileiro.
Devemos, pois, construir um modelo brasileiro de corte constitucional.[1]
Há questões instigantes, como a de situar-se ou não a corte constitucional no âmbito do Poder Judiciário, ou fora dele — como sucede com muitas cortes constitucionais europeias. Caso se considere que uma autêntica corte constitucional deva ficar fora do aparato do Poder Judiciário, seria necessário reformar a Constituição para retirar o Supremo Tribunal Federal da esfera de tal Poder. Uma discussão a respeito dessa questão, penso, embora importante, não é urgente. Há aspectos que, segundo meu entendimento, deveriam ser, antes, objeto de atenção.
No contexto brasileiro, embora o Supremo Tribunal Federal seja considerado um dos órgãos do Poder Judiciário (artigo 92, I da Constituição), sua forma de composição é peculiar. A Constituição de 1988 manteve a estrutura do Supremo Tribunal Federal tal como prevista na Constituição anterior: são 11 ministros que compõem o tribunal. A escolha, no modelo previsto no artigo 101 do texto constitucional, é realizada pelo Presidente da República, mas deve ser aprovada por maioria absoluta do Senado Federal, para que o ministro possa ser nomeado.
O critério, de todo modo, é extremamente aberto (difícil definir, com precisão, “notável saber jurídico e reputação ilibada”) e a escolha é feita isoladamente pelo presidente da República, não havendo indicações e debates públicos (por entidades como associações de magistrados e do Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil etc.) de nomes que poderiam ser escolhidos.
Como a organização política brasileira favorece o presidencialismo de coalizão e a democracia delegativa,[2] dificilmente uma indicação da Presidência da República é rejeitada pelo Senado Federal. É certo que a opção tomada pelo presidente da República poderia ser ao menos discutida de forma mais rigorosa.[3] No entanto, formas diferentes de escolha dos ministros que farão parte do tribunal, que permitam que os qualificativos do candidato sejam aferidos de modo mais objetivo, devem ser analisadas. Pode ser interessante, também, que a escolha se dê entre nomes de juristas indicados em listas apresentadas, publicamente, por várias entidades.
Deve haver discussão, também, a respeito da previsão de mandato para os componentes do Supremo Tribunal Federal. O artigo 101 da Constituição não prevê mandato para os ministros, que são vitalícios, neste ponto destoando do que sucede em alguns países europeus, em que juízes de corte constitucional têm mandato com prazo fixo.
Penso, quanto a esses pontos, que é importante que haja maior participação do Congresso Nacional e de outros entes (em especial a própria magistratura, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público) na escolha, bem como que seja estabelecido mandato com prazo determinado para os ministros que integram o Supremo Tribunal Federal.
Há propostas em discussão, no Congresso Nacional, a respeito do tema.[4] Mas a preocupação da maioria delas gira em torno apenas do método de escolha dos ministros e da previsão de mandato. Uma reforma séria deve ser mais ampla. É relevante, também, que haja alteração nas regras relativas à competência do Supremo Tribunal Federal.
Aqui, porém, a discussão deve ser feita com o devido cuidado, para que o foco da reforma constitucional não se desloque, exclusivamente, para a redução na quantidade de processos em trâmite no Supremo Tribunal Federal. O que deve estar em jogo é o papel desse tribunal, e o modo como deve exercê-lo.
Inevitavelmente, qualquer alteração a respeito deverá considerar, pelo menos, também a competência do Superior Tribunal de Justiça.
Por exemplo, não faz sentido a exigência de interposição concomitante de recurso extraordinário e recurso especial, quando existentes temas de direito constitucional e federal infraconstitucional na decisão proferida pelo tribunal de origem. Deve ser cabível apenas recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça e, contra a decisão proferida contra esse tribunal, deverá ser previsto o cabimento de recurso extraordinário — algo parecido com o que se passa, hoje, em relação ao recurso extraordinário interposto contra decisões finais do Tribunal Superior do Trabalho. Tal modificação otimizaria o atual sistema recursal, em relação aos tribunais superiores.
Por outro lado, parte do labor desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal deverá ser feito por outro tribunal. Tal como a homologação de sentença estrangeira — que, antes da Emenda Constitucional 45/2004, era de competência do Supremo Tribunal Federal —, a competência para o julgamento de outras ações e recursos deverá ser transferida para o Superior Tribunal de Justiça.
Há, evidentemente, outras questões a serem enfrentadas — por exemplo, sobre as audiências públicas e a participação de amicus curiae , a técnica de elaboração dos votos e identificação da tese que conduziu a determinado resultado, no julgamento de um caso constitucional etc. Não parece, de todo modo, admissível que se mantenha o atual estado de coisas. Devemos discutir sobre qual deve ser o modelo brasileiro de corte constitucional, e trabalhar para que reformas sejam feitas, democraticamente, a fim de se aprimorarem as instituições brasileiras. Até a próxima semana!
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