RTT disciplinado

Instrução Normativa 1.397 da RFB é um contrassenso

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29 de setembro de 2013, 10h17

Recentemente, a Receita Federal do Brasil editou a Instrução Normativa RFB nº 1.397/2013, disciplinando o Regime Tributário de Transição (RTT) e o alcance da neutralidade fiscal de que trata o art. 16 da Lei nº 11.941/2009. Na oportunidade, criou-se uma espécie de regulamento relativo à apuração das bases imponíveis do IRPJ, CSLL, Contribuição ao PIS e COFINS, considerando as normas societárias vigentes até 31 de dezembro de 2007, a regra que institui o RTT e o sistema de escrituração contábil fiscal (ECF).

Além disso, a referida instrução trouxe inusitados dispositivos que provocaram bastante indignação da comunidade jurídica tendo em vista a perspectiva científica do Direito Tributário e os fundamentos de validade das espécies normativas. Trata-se do art. 26 que enuncia:

Art. 26. Os lucros ou dividendos pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real não integrarão a base de cálculo:

I – do Imposto sobre a Renda e da CSLL da pessoa jurídica beneficiária; e

II – do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física beneficiária.

Parágrafo único. Os lucros ou dividendos a serem considerados para fins do tratamento previsto no caput são obtidos com observância dos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007.

Como se observa, a disposição normativa limita a isenção conferida pelo art. 10 da Lei nº 9.249/1995 que prevê que os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados pagos ou creditados pelas sociedades contribuintes do IRPJ não ficarão sujeitos ao imposto de renda. Essa limitação advém de uma interpretação equivocada do alcance da regra de neutralidade fiscal instituída pelo art. 16 da Lei nº 11.941/2009 que, em oportunidade anterior, já foi manifestada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional através do Parecer nº 202/2013.

Com efeito, o art. 16 da Lei nº 11.941/2009 pretendeu neutralizar os efeitos, na apuração da base imponível dos tributos incidentes sobre a renda e a receita bruta da pessoa jurídica, das alterações da legislação societária que vieram adequar os padrões brasileiros de contabilidade aos internacionais. Para atingir a neutralidade pretendida estabeleceu que o critério de reconhecimento de despesas, custos e receitas na pessoa jurídica, para efeitos de incidência do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, deveriam levar em conta os métodos contábeis vigentes até 31 de dezembro de 2007, quando as regras de convergência ainda não vigoravam.

Cumpre relembrar que a isenção da distribuição de lucros e dividendos em 1995 se deu por conta de uma política de incentivo aos investimentos nas empresas brasileiras e nesse sentido teve papel fundamental no desenvolvimento de vários setores econômicos nacionais.

Também impulsionadas pela política dos incentivos econômicos, as leis nº 11.638/2007 e 11.941/2009 iniciaram um processo de convergência contábil aos padrões internacionais como uma demanda do mercado de valores mobiliários. Essa convergência veio como fruto de outra política econômica voltada para a atração de investimentos estrangeiros com a simplificação do recebimento das informações ao investidor estrangeiro.

Assim, os novos padrões contábeis instituídos no Brasil funcionariam como ponto positivo no panorama do mercado internacional de valores mobiliários, o que inclui a política de distribuição de dividendos com base nas regras societárias que vigoram atualmente.

Todo o processo de convergência surgiu para que a contabilidade não fosse apenas instrumento de arrecadação estatal, mas instrumento de consolidação de mercado através da elaboração de informações confiáveis e comparáveis ao investidor que se apresenta ao mercado internacional de ações.

Não obstante todos esses esforços do próprio Executivo – com a edição das medidas provisórias que culminaram nas leis nº 11.638/2007 e 11.941/2009 – no sentido de consolidar o mercado de ações das empresas nacionais no mercado internacional de valores mobiliários, o próprio Executivo, através da IN RFB nº 1.397/2013 se traiu na consecução desses objetivos.

Através de um mero ato normativo regulamentador, a Receita Federal do Brasil pôs a perder todos esses esforços colocando novamente a contabilidade a serviço da arrecadação estatal, o que, sobremaneira, acaba por tornar obsoletas muitas das mudanças promovidas até então na Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas).

Ora, se os investidores não podem confiar nas novas disposições legais instituídas pelas leis nº 11.638/2007 e 11.941/2009 para apurar o lucro societário da pessoa jurídica (base de cálculo dos seus dividendos de direito), como terá confiança no mercado brasileiro de ações para investir? E ainda, se o órgão administrativo arrecadatório pode alterar a regra de isenção conferida pelo Poder Legislativo em exercício regular de poder, poderá confiar na segurança jurídica conferida pelo nosso sistema jurídico positivo?

Imagino que a resposta a essas perguntas seja negativa e esse fato nos remete à atenção que a ciência do direito deve dar à pragmática do nosso direito positivo, atenção esta a que o professor José Souto Maior Borges se refere como momento de “superação da dogmática[1], que isola o objeto do conhecimento do direito apenas a compreensão estrutural do direito positivo.

Com efeito, ainda que estivéssemos no exato campo dessa dogmática, isto é, que não devêssemos considerar os efeitos pragmáticos gerais decorrentes da introdução de novas normas no sistema, a inovação à ordem jurídica promovida pela Instrução Normativa RFB nº 1.397/2013 é facilmente detectada a partir da análise sintática e semântica dos enunciados de nosso direito positivo atualmente vigente.

Isto porque a distribuição de lucros tem sua disciplina específica na legislação societária e não cabe à Receita Federal do Brasil estabelecer outro método, diverso do disposto em lei, à sua apuração desses lucros tão somente em virtude da conveniência de se entender a isenção tributária em total desconformidade com o sistema de direito positivo.

A legislação societária sobre a distribuição de lucros

A disciplina jurídica dos dividendos na legislação societária (Lei nº 6.404/1976 – LSA) traz alguns requisitos à sua distribuição legítima:

Art. 201. A companhia somente pode pagar dividendos à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de lucros; e à conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais de que trata o § 5º do artigo 17.

§ 1º A distribuição de dividendos com inobservância do disposto neste artigo implica responsabilidade solidária dos administradores e fiscais, que deverão repor à caixa social a importância distribuída, sem prejuízo da ação penal que no caso couber.

§ 2º Os acionistas não são obrigados a restituir os dividendos que em boa-fé tenham recebido. Presume-se a má-fé quando da distribuição dos sem o levantamento do balanço ou em desacordo com os resultados deste.

Observe-se que o caput do dispositivo acima mencionado prescreve quais são as fontes legítimas para que sejam apurados e distribuídos os dividendos. Os dividendos somente poderão ser legitimamente pagos à conta de lucros correntes (lucro líquido do exercício) ou acumulados e com recursos decorrentes de reservas de lucros ou de reserva de capital nos casos admitidos em lei.

Por sua vez, a apuração do lucro corrente envolve a aplicação das normas contábeis no que diz respeito aos resultados apurados pela companhia ao longo do exercício financeiro. É através da aplicação das normas contábeis e do reconhecimento de receitas e despesas que o lucro corrente se revela ao final do exercício trazendo legitimidade à distribuição de dividendos nos termos do art. 201 da LSA.

Aqui importa destacar dois momentos distintos. O primeiro, em que ocorre a aplicação da norma contábil, através da qual as contas de lucro líquido do exercício, lucros acumulados, reserva de lucros e reserva de capital se revelam. E o segundo, em que se tem a incidência da lei societária que dispõe que somente os números resultantes dessa aplicação da norma contábil são capazes de proporcionar a distribuição legítima de dividendos.

Nesse sentido, uma vez observada a estrita aplicação das normas contábeis vigentes para que seja apurado o lucro da companhia no exercício, não há que se questionar a natureza jurídica de dividendos dos lucros distribuídos após a adoção dos procedimentos legais.

Com efeito, a aplicação das normas contábeis atuais apenas revela os números sujeitos ao regime jurídico dos dividendos, podendo ser eles distribuídos ou não conforme a conveniência da companhia.

Assim, a existência de norma contábil que suporta os procedimentos adotados pela companhia na apuração do lucro afasta sistematicamente a responsabilização dos administradores e o dever de reposição do caixa social (§1º do art. 201, LSA), eis que somente a aplicação distorcida da norma contábil poderia ensejar questionamentos quanto à legitimidade dos dividendos distribuídos.

A isenção disposta no art. 10 da Lei nº 9.249/1995

Observe-se que, assim como a legislação societária dispõe que a distribuição do lucro corrente constitua o dividendo legítimo, o dispositivo da lei tributária estabelece isenção aos dividendos calculados também com base no resultado da companhia. Na oportunidade, não impõe qualquer restrição para que a isenção seja aplicável.

Com efeito, a isenção condiciona-se à natureza jurídica da verba distribuída, qual seja, a natureza de dividendos regularmente apurados pelos resultados da companhia. Dessa distribuição legítima é que a Lei nº 9.249/1995 faz uso ao dispor sobre a regra isentiva.

O Princípio da Estrita Legalidade do Direito Tributário é bastante importante na interpretação do dispositivo legal em apreço. Isto porque não se pode considerar requisito inexistente na lei ao exercício da isenção conferida. Dessa forma, o único requisito que se impõe é a condição jurídica de dividendos, o que vem com a apuração dos resultados da companhia.

A posição do Conselho de Contribuintes (atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) segue nesse sentido de que a lei que concede a isenção não faz ressalvas à sua aplicação quando os lucros forem apurados em conformidade com os padrões contábeis vigentes:

IRPF – DIVIDENDOS – ISENÇÃO – A partir da Lei n° 9.249, de 1995, toda distribuição de dividendos é isenta do imposto sobre a renda, sem qualquer condição ou limite, inclusive no caso de opção da pessoa jurídica pelo lucro presumido. Recurso provido. (1º Conselho de Contribuintes / 6a. Câmara / ACÓRDÃO 106-13.366 em 11.06.2003).

Assim, quando a distribuição de lucros for efetuada a partir das normas contábeis vigentes, a incidência da norma isentiva é automática e infalível, tornando sem efeito a incidência da norma que exige o pagamento de IRPF, IRPJ ou CSLL sobre tais rendimentos.

Em suma, o que pretendemos expor é que a Instrução Normativa RFB nº 1.397/2013 representa um contrassenso da política econômica de favorecimento do mercado de valores mobiliários que pretendeu executar o Poder Executivo ao propor adequações nas normas contábeis brasileiras convergindo-as aos padrões internacionais. E, ainda que esse fator de incongruência política tenha que ser desconsiderado na concepção científica do Direto Tributário, é patente que o referido ato normativo também padece de legalidade frente na estrutura hierárquica do direito positivo brasileiro.

Nesse sentido, caberá ao Poder Judiciário exercer o controle de legalidade desse ato normativo, afastando-o da ordem jurídica nacional e reestabelecendo a segurança jurídica e as finalidades atribuídas às normas que pretenderam desenvolver o mercado de valores imobiliários no Brasil.


[1] MAIOR BORGES, José Souto. Um ensaio interdisciplinar em Direito Tributário: superação da dogmática. Revista Dialética de Direito Tributário nº 211. São Paulo: Dialética, 2013.

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