Patamar utópico

Dogmática alemã não serve para nossa política criminal

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27 de setembro de 2013, 14h12

A riqueza da dogmática alemã é notória, mas já neste momento ouso dizer que, em grande medida, não nos serve como referência para influenciar a nossa política criminal.

Aliás, hoje, percebe-se uma tendência da política criminal alemã de neutralização e mesmo de extinção da ideia de bem jurídico como referencial legiferante em matéria penal, tudo isso com o aval e referendo da Corte Constitucional.

Neste passo, o estado de exceção legislativa alemã que permite cada vez mais a “perenização” da exceção até que se torne regra, no reverberado mundo de “riscos” e “perigos”, temperado com a abstração do “terrorismo” e a forte imigração, tem conferido um mandato ilimitado para o legislador penal, chegando-se ao extremo de se criar medidas de segurança (que lá independe do estado psíquico) para os “indesejáveis” da sua sociedade, cuja “perigosidade” pode ser reconhecida com aplicação retroativa e posteriormente ao cumprimento da pena.

Acreditem ou não, a referida conduta do legislador tem, em linhas gerais, o reconhecimento da sua legitimidade pela Corte Constitucional alemão, como aliás, bem se extraiu de aula magistral de Maria Laura Bőhm na Universidade Georg-August em Gőttingen, na Escuela de Verano de 2013. Isso rendeu à Alemanha um “puxão de orelha” pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em mais de uma ocasião.

A Alemanha tem uma lei de persecução de atos violentos graves que ponham em perigo o Estado, de 30 de julho de 2009, sendo que a Constituição foi modificada para permitir-se a vigilância acústica domiciliar.

Ao que parece tudo isso, em nome da “paz social”, o que não choca mais que meia dúzia de juristas. E o tal princípio da confiança que justifica a imputação objetiva é uma realidade cultural que ultrapassa a questão normativa e adentra pela confiança quase cega nas instituições (provavelmente em grande parte justificada), passando pelo indivíduo às 2h da manhã parado no semáforo, esperando o sinal verde para ele, ainda que se pudesse escutar os grilos reais e metafóricos, pois não passava carro algum.

A América Latina com o seu abismo social não pode prescindir da ideia limitadora do bem jurídico, ao que parece “assassinado” pela Corte Constitucional alemã, substituído por uma ideia de proporcionalidade agigantada que entrega ao legislador em nome da democracia uma vasta esfera de discrionariedade justificadora de exceções que nos parece não termos como suportar aqui nos trópicos.

Não é só. O Ministério Público na Alemanha tem a confiança cega da sociedade, não é visto como parte, mas sempre como fiscal da lei, cujo comportamento somente se diferencia do juiz, porquanto apresenta a acusação, o que só faz, diante de sua convicção plena de que assim deve agir e responde seriamente por abuso em caso de acusações indevidas. Daí porque, a significativa maioria das acusações se transformam em condenação e muitas vezes em casos de delitos menos graves terminam em transação.

Não vivemos no Brasil esse patamar quase utópico, daí a essencialidade dos advogados de defesa na esfera criminal que puxam os freios diante dos frequentes excessos punitivistas de quem acusa e de quem julga por aqui.

História e atualidade
Concluo este breve artigo com a pretensão de desenvolver com maior densidade os temas aqui lançados ao debate. Mas antes gostaria de destacar dois pontos que me parecem importantes:

O primeiro deles, quando indaguei a Günther Jakobs sobre o presídio de Guantánamo e, para surpresa e aplauso geral, ele respondeu que em um primeiro momento, o 11 de setembro parecia uma nova situação a ser administrada pelos EUA, mas depois, quando se tomou conhecimento do que se fazia na referida prisão, ele entende hoje como algo inaceitável a sua existência.

O segundo ponto, pareceu-me simbólico, mas ao visitar o campo de concentração nazista de Dachau, percebi um modo positivo da Alemanha expor e impedir repetições de seus antigos pesadelos e da “banalidade do mal”, lembrando Hannah Arendt, vivida em suas entranhas.

Será que não nos falta no Brasil esse resgate da nossa história opressora ocorrida durante a ditadura militar de 1964, um aclaramento total do nosso passado com museus e disciplina específica nas escolas, com um resgate oficial pleno do passado e isso quem sabe nos permitirá compreender muito do que ainda se perpetua em matéria de violência policial ostensiva nas ruas e aquela que ainda se pratica nos cárceres diante dos detentos, formatos e práticas que seguem entranhadas como herança obscura do regime militar.

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