Regras de Estrutura

Conflito de tributos causa instabilidade no sistema

Autor

  • Hugo Barroso Uelze

    é advogado Membro da Comissão de Direito Tributário da 116ª Subseção da OAB-SP e mestre em Direito da Sociedade da Informação pela UniFMU.

25 de setembro de 2013, 8h14

O Estado Democrático Brasileiro, que como se sabe é informado pelo princípio federativo, promove a repartição de competências entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, a partir do critério ou técnica da “predominância do interesse”, o adequado — razoável e proporcional —, campo de atuação de modo “[…] que à União cabe tratar das matérias de interesse geral, nacional, amplo. Aos estados, […] um interesse menor, mais regional […], aos municípios […] matérias de interesses restritos, especialmente, locais, circunscritos a sua órbita menor.”[1]

Assim, para que preservada a necessária e indispensável autonomia, foram conferidas aos municípios as competências tributárias descritas no artigo 156 da Constituição Federal, o que, todavia, não impede a existência de Conflitos de Competência Tributária entre essa e outras “Regras de Estrutura”[2], que, nada mais são do que uma espécie do gênero “Conflito de Normas”, essas, por sua vez, subdividas em “antinomias aparentes” e “antinomias de segundo grau”, as primeiras passíveis de solução através dos parâmetros que integram o Ordenamento Jurídico, enquanto as outras prescindem da combinação entre os critérios “hierárquico, cronológico e da especialidade”[3], para que possam ser equacionadas.

Dentre esses paradigmas, parece importante destacar o hierárquico que representa o escalonamento do Sistema Jurídico[4] ditado pela supremacia material e formal da Lei Maior[5] e, mesmo, a superioridade de determinadas normas [princípios] sobre outras, ainda que de idêntico patamar, face às qualificações axiológicas por aquelas acolhidas[6], o que, porém, não afasta o uso de outros parâmetros hermenêuticos voltados à solução de conflitos[7], tais como o desdobramento do conteúdo [objeto], ou seja, de cada um dos aspectos pertinentes à estrutura da norma — espacial, material, pessoal e temporal —, bem como a consideração de seu sentido [finalístico], mas também alcance [histórico-lógico-jurídico-sistêmico] perante os demais conjuntos de normas [Sistemas ou Subsistemas] e, mesmo, junto à totalidade do Ordenamento Jurídico.

Dito de outro modo, respeitada a “compatibilidade vertical”[8], à incidência de determinada norma deve ser verificada a partir dos princípios e normas magnos, para, na sequência, percorrer o patamar das “Normas de Estrutura” ou “Regras de Competência Tributária” — dentre as quais se inserem as “Normas Gerais de Direito Tributário” [artigo 146, incisos I a III da Constituição Federal] e as “Leis Complementares Nacionais” [v.g., artigo 156, inciso III, in fine da Constituição] —, para, finalmente, atingir à Estrutura da Norma Jurídica Tributária.

De qualquer sorte, a compreensão do conteúdo, sentido e alcance[9] do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) e do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) também deve levar em conta o critério da especialidade face à influência do princípio federativo e da autonomia municipal sobre os artigos 153, inciso IV, 155, inciso II e 156, inciso III da Constituição e, mesmo, sobre a “Competência Residual Tributária da União” [artigo 154, inciso I da Constituição].

Ao tratar da Estrutura da Norma Jurídica, na sua célebre obra Hipótese de Incidência Tributária, Geraldo Ataliba deixa claro que o “[…] principal e decisivo caráter diferencial entre as espécies tributárias está na conformação ou configuração e consistência da hipótese de incidência”[10], razão pela qual diante do Confronto IPI-ICMS-ISSQN — sem prejuízo de outros critérios ou parâmetros eventualmente úteis —, não se pode perder de vista os atributos ou características pertinentes ao núcleo do elemento material, que, segundo o mesmo autor, devem observar as “regras ou o regime jurídico da `obrigação de fazer´ ou `de dar´ […]”[11].

Tais paradigmas são permanentemente invocados, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência, inclusive a do Supremo Tribunal Federal, tal como se observa de trecho da Ementa do Recurso Extraordinário (RE) 592.905/SC:

“[…] No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento e não uma prestação de dar. E o financiamento é serviço sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do lease-back. Recurso Extraordinário a que se nega provimento.”[12]

O relator do aresto, ministro Eros Grau, ao proferir seu voto, aduziu ainda que:

“[…] O arrendamento mercantil é contrato autônomo. Leio, sucessivamente, em Orlando Gomes e em Fábio Konder Comparato: `é dominante na doutrina mais recente o juízo de que o leasing é um contrato autônomo, muito embora resulte da fusão de elementos de outros contratos, mas não pode ser classificado como contrato misto, composto por prestações típicas da locação, da compra e de outros contratos, porque tem causa própria e já se tipicizou; `o contrato de leasing caracteriza-se como negócio jurídico complexo, e não simplesmente como coligação de negócios.

[…] [13]

Hugo de Brito Machado, por seu turno, discorda do entendimento constante do RE 592.205-SC face à consideração de que a figura de um “serviço de financiamento” não se compagina com o conceito constitucional do ISSQN [artigo 156, inciso III da Constituição], além de implicar em afronta à “Competência Residual Tributária”[14] [artigo 154, inciso I da Constituição].

A crítica de Hugo de Brito Machado[15], todavia, se estende ao voto do ministro Ilmar Galvão, cujo teor pode ser assim sintetizado, a “Lista de Serviços” se prestaria: a) a arrolar serviços por natureza — a maioria daqueles dela constantes —, b) incluir serviços que, não exprimindo outro tipo de atividade, restariam incólumes a qualquer tributo, c) em caso de operações mistas, ainda que essas não consubstanciem a atividade preponderante do prestador, afirmar “a prevalência do serviço para fins de tributação pelo ISS”[16].

Destarte, segundo o citado voto, a Lista de Serviços assumiria um caráter exemplificativo — e não taxativo —, o que, porém, não afasta duas incongruências: a primeira ligada ao aspecto material, pois, se admitido que o “serviço de financiamento” é o núcleo da obrigação principal, tal atividade, a rigor, não se enquadraria no arquétipo das obrigações de fazer, mas sim de inequívoca operação de crédito [artigo 153, inciso V da Constituição]; a segunda, num primeiro momento, relacionada ao aspecto pessoal, face à influência do princípio federativo e, pois, do critério da especialidade, haja vista que a “Competência Residual Tributária” é da União e não dos Munícipios — apenas autorizados à cobrança de ISSQN sobre parcela da riqueza relativa às obrigações de fazer —, mas também ao aspecto material, já que o apontado “serviço de financiamento” somente poderia ser tributado se observados os pressupostos do artigo 154, inciso I da Constituição Federal, isto é, “fato gerador” e base de cálculo diversos dos demais impostos discriminados na Lei Básica e, dentre eles, os do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF), o que, todavia, não é o caso.

Os critérios decorrentes da diversidade das obrigações de dar e de fazer foram novamente invocados quando da apreciação da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.389, oportunidade na qual se afastou a aplicação do subitem 13.05 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003 e se decidiu pela incidência do ICMS[17], face à perceptível distinção “[…] entre o produzir e o produzido. O produzir é ato; a coisa produzida é fato […]”[18] ou, então, acerca da diferença ou diferença específica[19] existente entre “atividade meio” e “atividade fim”, parâmetros que encontram eco na “Norma Geral de Direito Tributário por Excelência”, o artigo 110 do Código Tributário Nacional, corolário direto da magna supremacia e que, nesse diapasão, declara que: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal […] para definir ou limitar competências tributárias.”[20].

Disso resulta, a impossibilidade de se desconsiderar a distinção entre as obrigações de dar e de fazer e, mesmo, entre obrigações principais e acessórias [artigo 92 do Código Civil], ambas aptas a desvendar as características do núcleo da hipótese de incidência tributária, a própria consistência do aspecto material — isso em cotejo com os seus demais elementos [aspectos ou critérios] —, mesmo porque implicitamente abarcados nas “Regras de Estrutura” estabelecidas pelos artigos 153, inciso IV, 155, inciso II e 156, inciso III da Constituição Federal.

De qualquer forma, embora desejável, em prol dos princípios aplicáveis à matéria e, dentre eles, o federativo — cuja compreensão deve ser sopesada não apenas pela predominância, mas também pela abrangência do interesse regulado[21] [“supremacia dos interesses primários sobre os secundários”[22]] —, bem como os vetores da “segurança jurídica” e da “certeza do direito”[23], não parece equivocada a exegese de que a “Lista de Serviços” se afigura meramente exemplificativa, pois, do contrário, ter-se-ia que admitir que a inclusão de determinado [sub]item caracterizaria fator determinante em termos hermenêuticos, exegese que, todavia, levada às últimas consequências, poderia acarretar prejuízo à autonomia municipal.

Nesse sentido, merece atenção a fórmula deduzida por Marco Aurélio Greco no Parecer anexo à ADI 4.389 — “Fazer para dar” não é `fazer´ é `dar”[24] —, a partir da qual se percebe o porquê da impropriedade — a despeito da expressa menção em lei complementar [subitem 13.05 da LC 116/2003] —, da incidência de ISSQN em detrimento do conceito constitucional do ICMS.

Por fim, embora tormentosa à identificação dos atributos da lei complementar face ao casuísmo adotado pelo constituinte quanto à matéria[25], certo é que se trata de espécie destinada a harmonizar à legislação nacional[26] e que, na esfera do ISSQN, “teria por escopo explicitar os serviços a fim de evitar conflitos de competência em razão de materialidades assemelhadas, afetas à União, Estados e Distrito Federal”[27], isso sem esquecer que toda competência [artigos 146, inciso III e 156, inciso III in fine da Constituição Federal] encontra limites no próprio Sistema Jurídico [v.g., artigo 2º da Constituição], razão pela qual não pode prejudicar ou inviabilizar o exercício de outra ou, mesmo, das demais[28] e, dentre elas, àquela relacionada à função precípua do Poder Judiciário de dizer o direito no caso concreto, inclusive, pois, para afastar a aplicação de lei complementar que, no arrepio de seus requisitos ontológico-formais[29] desrespeite a supremacia dos princípios e normas constitucionais.

[1] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 836-837.

[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 154-155.

[3] DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 8. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 70-71 e 78.

[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico; tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 7. ed., Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 48-49.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 45-46.

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 807-808.

[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 95-99.

[8] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 47.

[9] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 265.

[10] Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 130.

[11] Apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS – teoria e prática. 8. ed., São Paulo: Dialética, 2005, p. 64-65.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Tribunal Pleno. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCEIRO. ARTIGO 156, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. Recurso Extraordinário (RE) n. 592.205 – Santa Catarina (SC). Tribunal Pleno, Recorrente: HSBC Investment Bank Brasil S/A – Banco de Investimento, Recorrido: Interessada: Associação Brasileira das Secretarias das Finanças das Capitais (ABRASF), Relator Ministro Eros Grau, Brasília, DF, julgamento: 02.12.2009, dados de publicação: DJe de 05/03/2010, p. 996.

[13] Vide referência ao item anterior, p. 999-1004.

[14] MACHADO, Hugo de Brito. O ISS e o arrendamento mercantil. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 185, São Paulo: Oliveira Rocha, p. 64-65, fev. 2011.

[15] MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 65.

[16] Vide referência do item 12 supra, p. 1004-1006.

[17] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Tribunal Pleno. Constitucional. Tributário. Conflito entre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza e Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e de Serviços de Comunicação e de Transporte Intermunicipal e Interestadual. Produção de Embalagens sob Encomenda para Posterior Industrialização [Serviços Gráficos]. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4389 – DISTRITO FEDERAL (DF). Requerente: Associação Brasileira de Embalagem (ABRE); Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional; Amicus Curiae: Município de São Paulo, Associação Brasileira das Secretaria das Finanças das Capitais (ABRASF), Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Relator(a): Ministro Joaquim Barbosa, Brasília, DF, julgamento: 13/04/2011, dados de publicação: DJe-098 de 25/05/2011.

[18] Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed., São Paulo: Lejus, 1998, p. 422-423 e 425.

[19] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. O ISS versus ICMS na prestação de serviços. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 186, São Paulo: Oliveira Rocha, p. 24, mar. 2011.

[20] Vide MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., p. 69-70, CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 106 e BECKER, Alfredo Augusto. Op. cit., p. 122-124.

[21] UELZE, Hugo Barroso. Desapropriação. Revista dos Tribunais, RT, São Paulo, Ano 95, v. 851, p. 710-714, set. 2006.

[22] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 44.

[23] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 164-166.

[24] GRECO, Marco Aurélio. Parecer Associação Brasileira de Embalagem (ABRE) Supremo Tribunal Federal (STF), Brasília. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=488061> Acesso em: 28 jul. 2013.

[25] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 8. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 469-470.

[26] TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 836-837.

[27] MELO, José Eduardo Soares de. ISS – aspectos teóricos e práticos. 4. ed., São Paulo: Dialética, 2005, p. 55.

[28] CARRAZZA, Roque Antonio. 26. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 963-965 e 967.

[29] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 226.

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