Romper (pre)conceitos sobre jurisdição constitucional
22 de setembro de 2013, 8h00
As frases que abrem esta coluna têm em comum pelo menos dois aspectos: todas — com pequenas alterações de formulação — aparecem com frequência em obras sobre jurisdição constitucional, sejam manuais de graduação ou artigos em revistas científicas; e todas expressam, pelo menos, meias verdades.
Esses são apenas alguns dos lugares comuns impensada e amplamente repetidos, que formam o conjunto de informações básicas a partir do qual os alunos de graduação são chamados a meditar sobre a jurisprudência constitucional.
Como ressaltado por José Levi Mello do Amaral Júnior, na primeira das colunas quinzenais publicadas neste espaço da ConJur, as reflexões a serem aqui desenvolvidas dizem com os temas tratados em sala de aula, na disciplina optativa “Análise de Jurisprudência Constitucional”, ministrada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo pelo próprio professor Levi – no curso noturno – e por mim, aos alunos do diurno. Trata-se, como bem destacado, de um verdadeiro “diário de classe”.[1]
Nesse contexto, outro não poderia ser o meu primeiro registro nesta coluna que a síntese das questões que — suscitadas por textos de Gilmar Mendes, Jeremy Waldron, Robert Dahl, Carl Schmitt e Hans Kelsen — fizeram com que os alunos colocassem em xeque alguns dos clichês antes mencionados, permitindo que se despissem, num primeiro momento, de (pre)conceitos sobre a jurisdição constitucional e possibilitando que estejam habilitados a fazer, posteriormente, uma análise da produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal qualitativamente diferenciada. Serão a seguir, pois, examinadas as duas primeiras afirmações que abrem este texto, deixando-se para minha segunda manifestação neste espaço, no próximo mês, as duas últimas.
Inicialmente, por meio da leitura de Gilmar Ferreira Mendes,[2] foi possível determinar as diferentes fases de evolução do controle de constitucionalidade, registrando o autor – como sói acontecer com nossos constitucionalistas — a inexpressividade dessa atividade jurídica no Império do Brasil.[3]
Entretanto, se é correto afirmar que não havia no Império um controle judicial da constitucionalidade das leis, não menos correto é assentar que se desenvolveu, durante o regime de 1824, um interessante sistema de controle jurídico-político de constitucionalidade, por meio do qual várias leis foram consideradas inconstitucionais e que propiciou, até mesmo, a formulação de técnicas decisórias assemelhadas à moderna interpretação conforme à Constituição.
Tal modelo é resgatado por José Reinaldo de Lima Lopes, na cuidadosa pesquisa que fez sobre o Conselho de Estado no Segundo Império,[4] cabendo aqui simplesmente descrevê-lo em linhas gerais.
Com o advento do Ato Adicional de 1834, as Assembleias Legislativas das Províncias tiveram um considerável incremento em suas competências, assumindo definitivamente poder normativo próprio para dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse.[5] Assim, foi reconhecida no Brasil – que continuava a ser um Estado unitário – a existência de duas ordens jurídicas distintas, uma geral e outra local, num movimento muito próximo ao do federalismo moderno. E tal qual ocorre nos Estados federais, tornou-se comum no Império a disputa acerca da competência para legislar sobre esta ou aquela matéria, sendo necessária a instituição de uma instância para dirimir esses conflitos.
Nesse contexto, a Seção de Justiça do Conselho de Estado passou a analisar esses conflitos de competência entre as ordens jurídicas geral e local, emitindo pareceres sobre a constitucionalidade, ou não, das leis provinciais; pareceres estes que, por meio dos Ministros de Estado, ensejavam a apresentação de proposição à Assembleia Geral do Império, à qual competia editar uma lei anulando o texto provincial.
Evidente que não se está diante de um controle judicial da constitucionalidade das leis, pois não era o Poder Judicial do Império o responsável por seu exercício. Mas é inegável a existência desse modelo, que congregava – como é comum a alguns sistemas modernos – um juízo jurídico acerca da regularidade constitucional das leis provinciais, exercido pela Seção de Justiça, com um juízo político, representado pelas atuações dos Ministros e da Assembleia Geral. E é igualmente inegável a eficácia desse sistema, ainda que criticado pelos defensores de uma maior centralização política no Império.[6]
Por outro lado, ao Conselho de Estado ainda respondia a consultas dos Juízes acerca da correta interpretação das leis do Império ou mesmo de autoridades que buscavam saber qual o real sentido das normas, em especial frente ao texto constitucional.[7] Exemplo do exercício dessa competência se tem na Resolução de 16 de dezembro de 1846, da Seção de Justiça, por meio do qual o Conselho interpreta o Código de Processo Criminal à luz da Constituição, fixando o sentido constitucionalmente adequado da norma infraconstitucional.[8] Não se pode deixar de reconhecer que desenvolvia o Conselho de Estado verdadeira interpretação conforme à Constituição, assegurando a supremacia desta ante a legislação ordinária.[9]
Assim, há na experiência jurídica do Império uma original e pouquíssimo estudada jurisprudência constitucional, cuja análise pode revelar muitos aspectos interessantes do nascimento de um constitucionalismo com soluções institucionais genuinamente brasileiras. Soluções institucionais essas ainda não influenciadas pela matriz norte-americana, que viria a fundamentar o controle judicial de constitucionalidade das leis com o advento da República.[10]
Se a primeira reflexão desenvolvida neste texto permite lançar novas luzes sobre a defesa da Constituição no Brasil imperial, a questão a seguir examinada propicia um questionamento acerca do papel atual do Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional.
Cada vez é mais comum, nas decisões da Suprema Corte brasileira, a afirmação de sua função contramajoritária, como elemento legitimador de certas decisões consideradas “polêmicas”. Essa linha de fundamentação pode ser verificada, por exemplo, no julgamento do RE 477.554 — AgR, rel. min. Celso de Mello, DJe 26.08.2011, relacionado com uniões homoafetivas.[11]
Essa argumentação, como reconhecido em diferentes precedentes do próprio STF, não é original, estando — há muito — presente nas decisões dos tribunais constitucionais europeus e da Suprema Corte norte-americana. E é exatamente sobre a natureza contramajoritária das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos o artigo Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, de Robert A. Dahl, datado de 1957.[12]
Dahl inicialmente questiona se é possível identificar o que chama de “maioria legiferante” — a soma das maiorias das duas casas do Congresso com a vontade política do Presidente, por meio da sanção — com a “maioria nacional”, ou seja, a maioria da população norte-americana. Mesmo reconhecendo que essa identidade somente pode ser estabelecida a partir de bases altamente questionáveis, o autor parte dessa premissa para testar a hipótese de que a Suprema Corte é o escudo das minorias contra as maiorias nacionais.[13]
Em seguida, Dahl afirma que seria ingênuo pensar na Suprema Corte desempenhando o papel de Galahad, combatendo solitariamente em favor dos fracos e indefesos; e conclui que, na realidade, “as visões políticas dominantes na Corte nunca são, por muito tempo, desalinhadas das visões políticas dominantes entre as maiorias legiferantes dos Estados Unidos. Em consequência, seria sumamente irreal supor que a Corte ficaria, por mais do que poucos anos no máximo, contra qualquer uma das grandes opções defendidas pela maioria legiferante”.[14] Afinal, os presidentes geralmente indicam, em seus mandatos, alguns dos juízes do Tribunal[15] — e “presidentes não são famosos por indicar juízes hostis a suas próprias visões sobre políticas públicas” –, além do que seria difícil assegurar a confirmação de um indicado cuja posição em questões essenciais fosse flagrantemente contrária àquela dominante na maioria do Senado.
Na prática, verificando todos os casos em que — até 1957 — teria sido exercida essa função contramajoritária, Dahl conclui que pouquíssimas são as decisões da Corte que podem ser interpretadas a partir do referencial “maioria versus minoria”, o que demonstraria que o Tribunal não difere, em regra, das orientações da maioria legiferante. Na verdade, em muitas dessas decisões “polêmicas”, a Suprema Corte atuaria em campos nos quais se verifica uma instabilidade das maiorias legiferantes, mas mesmo nessas situações a legitimidade de suas posturas somente prevalece quando se conforma e reforça padrões implícitos ou explícitos amplamente aceitos pela liderança política; o que é exemplificado pelas decisões sobre a integração racial nas escolas norte-americanas.[16]
As reflexões de Dahl, ainda que formuladas em contexto espacial e temporal diverso, podem servir de referência no exame das ditas decisões contramajoritárias do STF. Até que ponto essas decisões representam, de fato, a defesa da minoria contra a maioria? Ou representam o triunfo da maioria sobre minorias que conseguem, por meio de diferentes instrumentos institucionais ou de pressão, barrar sua vontade? Até que ponto a Suprema Corte brasileira não funciona, na linha preconizada por Dahl, como força auxiliar de maiorias instáveis?
Essas são algumas das perguntas que não podem deixar de estar presentes na análise que se faz da jurisprudência constitucional, para dela retirar os verdadeiros sentidos e motivações; sob pena de se reduzir complexas relações de poder a equações repletas de idealismo, mas incapazes de explicar a Realpolitik.
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