Análise Constitucional

Romper (pre)conceitos sobre jurisdição constitucional

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

22 de setembro de 2013, 8h00

Spacca
“O controle de constitucionalidade no Brasil nasce com a República”. “O Tribunal Constitucional exerce um papel contramajoritário”. “A jurisdição constitucional é expressão da democracia”. “No debate sobre quem deve ser o guarda da Constituição, Kelsen triunfou sobre Schmitt”.

As frases que abrem esta coluna têm em comum pelo menos dois aspectos: todas — com pequenas alterações de formulação — aparecem com frequência em obras sobre jurisdição constitucional, sejam manuais de graduação ou artigos em revistas científicas; e todas expressam, pelo menos, meias verdades.

Esses são apenas alguns dos lugares comuns impensada e amplamente repetidos, que formam o conjunto de informações básicas a partir do qual os alunos de graduação são chamados a meditar sobre a jurisprudência constitucional.

Como ressaltado por José Levi Mello do Amaral Júnior, na primeira das colunas quinzenais publicadas neste espaço da ConJur, as reflexões a serem aqui desenvolvidas dizem com os temas tratados em sala de aula, na disciplina optativa “Análise de Jurisprudência Constitucional”, ministrada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo pelo próprio professor Levi – no curso noturno – e por mim, aos alunos do diurno. Trata-se, como bem destacado, de um verdadeiro “diário de classe”.[1]

Nesse contexto, outro não poderia ser o meu primeiro registro nesta coluna que a síntese das questões que — suscitadas por textos de Gilmar Mendes, Jeremy Waldron, Robert Dahl, Carl Schmitt e Hans Kelsen — fizeram com que os alunos colocassem em xeque alguns dos clichês antes mencionados, permitindo que se despissem, num primeiro momento, de (pre)conceitos sobre a jurisdição constitucional e possibilitando que estejam habilitados a fazer, posteriormente, uma análise da produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal qualitativamente diferenciada. Serão a seguir, pois, examinadas as duas primeiras afirmações que abrem este texto, deixando-se para minha segunda manifestação neste espaço, no próximo mês, as duas últimas.

Inicialmente, por meio da leitura de Gilmar Ferreira Mendes,[2] foi possível determinar as diferentes fases de evolução do controle de constitucionalidade, registrando o autor – como sói acontecer com nossos constitucionalistas — a inexpressividade dessa atividade jurídica no Império do Brasil.[3]

Entretanto, se é correto afirmar que não havia no Império um controle judicial da constitucionalidade das leis, não menos correto é assentar que se desenvolveu, durante o regime de 1824, um interessante sistema de controle jurídico-político de constitucionalidade, por meio do qual várias leis foram consideradas inconstitucionais e que propiciou, até mesmo, a formulação de técnicas decisórias assemelhadas à moderna interpretação conforme à Constituição.

Tal modelo é resgatado por José Reinaldo de Lima Lopes, na cuidadosa pesquisa que fez sobre o Conselho de Estado no Segundo Império,[4] cabendo aqui simplesmente descrevê-lo em linhas gerais.

Com o advento do Ato Adicional de 1834, as Assembleias Legislativas das Províncias tiveram um considerável incremento em suas competências, assumindo definitivamente poder normativo próprio para dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse.[5] Assim, foi reconhecida no Brasil – que continuava a ser um Estado unitário – a existência de duas ordens jurídicas distintas, uma geral e outra local, num movimento muito próximo ao do federalismo moderno. E tal qual ocorre nos Estados federais, tornou-se comum no Império a disputa acerca da competência para legislar sobre esta ou aquela matéria, sendo necessária a instituição de uma instância para dirimir esses conflitos.

Nesse contexto, a Seção de Justiça do Conselho de Estado passou a analisar esses conflitos de competência entre as ordens jurídicas geral e local, emitindo pareceres sobre a constitucionalidade, ou não, das leis provinciais; pareceres estes que, por meio dos Ministros de Estado, ensejavam a apresentação de proposição à Assembleia Geral do Império, à qual competia editar uma lei anulando o texto provincial.

Evidente que não se está diante de um controle judicial da constitucionalidade das leis, pois não era o Poder Judicial do Império o responsável por seu exercício. Mas é inegável a existência desse modelo, que congregava – como é comum a alguns sistemas modernos – um juízo jurídico acerca da regularidade constitucional das leis provinciais, exercido pela Seção de Justiça, com um juízo político, representado pelas atuações dos Ministros e da Assembleia Geral. E é igualmente inegável a eficácia desse sistema, ainda que criticado pelos defensores de uma maior centralização política no Império.[6]

Por outro lado, ao Conselho de Estado ainda respondia a consultas dos Juízes acerca da correta interpretação das leis do Império ou mesmo de autoridades que buscavam saber qual o real sentido das normas, em especial frente ao texto constitucional.[7] Exemplo do exercício dessa competência se tem na Resolução de 16 de dezembro de 1846, da Seção de Justiça, por meio do qual o Conselho interpreta o Código de Processo Criminal à luz da Constituição, fixando o sentido constitucionalmente adequado da norma infraconstitucional.[8] Não se pode deixar de reconhecer que desenvolvia o Conselho de Estado verdadeira interpretação conforme à Constituição, assegurando a supremacia desta ante a legislação ordinária.[9]

Assim, há na experiência jurídica do Império uma original e pouquíssimo estudada jurisprudência constitucional, cuja análise pode revelar muitos aspectos interessantes do nascimento de um constitucionalismo com soluções institucionais genuinamente brasileiras. Soluções institucionais essas ainda não influenciadas pela matriz norte-americana, que viria a fundamentar o controle judicial de constitucionalidade das leis com o advento da República.[10]

Se a primeira reflexão desenvolvida neste texto permite lançar novas luzes sobre a defesa da Constituição no Brasil imperial, a questão a seguir examinada propicia um questionamento acerca do papel atual do Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional.

Cada vez é mais comum, nas decisões da Suprema Corte brasileira, a afirmação de sua função contramajoritária, como elemento legitimador de certas decisões consideradas “polêmicas”. Essa linha de fundamentação pode ser verificada, por exemplo, no julgamento do RE 477.554 — AgR, rel. min. Celso de Mello, DJe 26.08.2011, relacionado com uniões homoafetivas.[11]

Essa argumentação, como reconhecido em diferentes precedentes do próprio STF, não é original, estando — há muito — presente nas decisões dos tribunais constitucionais europeus e da Suprema Corte norte-americana. E é exatamente sobre a natureza contramajoritária das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos o artigo Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, de Robert A. Dahl, datado de 1957.[12]

Dahl inicialmente questiona se é possível identificar o que chama de “maioria legiferante” — a soma das maiorias das duas casas do Congresso com a vontade política do Presidente, por meio da sanção — com a “maioria nacional”, ou seja, a maioria da população norte-americana. Mesmo reconhecendo que essa identidade somente pode ser estabelecida a partir de bases altamente questionáveis, o autor parte dessa premissa para testar a hipótese de que a Suprema Corte é o escudo das minorias contra as maiorias nacionais.[13]

Em seguida, Dahl afirma que seria ingênuo pensar na Suprema Corte desempenhando o papel de Galahad, combatendo solitariamente em favor dos fracos e indefesos; e conclui que, na realidade, “as visões políticas dominantes na Corte nunca são, por muito tempo, desalinhadas das visões políticas dominantes entre as maiorias legiferantes dos Estados Unidos. Em consequência, seria sumamente irreal supor que a Corte ficaria, por mais do que poucos anos no máximo, contra qualquer uma das grandes opções defendidas pela maioria legiferante”.[14] Afinal, os presidentes geralmente indicam, em seus mandatos, alguns dos juízes do Tribunal[15] — e “presidentes não são famosos por indicar juízes hostis a suas próprias visões sobre políticas públicas” –, além do que seria difícil assegurar a confirmação de um indicado cuja posição em questões essenciais fosse flagrantemente contrária àquela dominante na maioria do Senado.

Na prática, verificando todos os casos em que — até 1957 — teria sido exercida essa função contramajoritária, Dahl conclui que pouquíssimas são as decisões da Corte que podem ser interpretadas a partir do referencial “maioria versus minoria”, o que demonstraria que o Tribunal não difere, em regra, das orientações da maioria legiferante. Na verdade, em muitas dessas decisões “polêmicas”, a Suprema Corte atuaria em campos nos quais se verifica uma instabilidade das maiorias legiferantes, mas mesmo nessas situações a legitimidade de suas posturas somente prevalece quando se conforma e reforça padrões implícitos ou explícitos amplamente aceitos pela liderança política; o que é exemplificado pelas decisões sobre a integração racial nas escolas norte-americanas.[16]

As reflexões de Dahl, ainda que formuladas em contexto espacial e temporal diverso, podem servir de referência no exame das ditas decisões contramajoritárias do STF. Até que ponto essas decisões representam, de fato, a defesa da minoria contra a maioria? Ou representam o triunfo da maioria sobre minorias que conseguem, por meio de diferentes instrumentos institucionais ou de pressão, barrar sua vontade? Até que ponto a Suprema Corte brasileira não funciona, na linha preconizada por Dahl, como força auxiliar de maiorias instáveis?

Essas são algumas das perguntas que não podem deixar de estar presentes na análise que se faz da jurisprudência constitucional, para dela retirar os verdadeiros sentidos e motivações; sob pena de se reduzir complexas relações de poder a equações repletas de idealismo, mas incapazes de explicar a Realpolitik.


[1] Os autores e as obras aqui citadas são, exclusivamente, aqueles que foram lidos com os alunos da disciplina “Análise de jurisprudência constitucional” ou os que foram mencionados quando das discussões levadas a cabo em sala de aula.
[2] Gilmar Ferreira Mendes. “Evolução do direito constitucional brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei”. Revista de Informação Legislativa, ano 32, n. 126, abr/jun 1995, p. 87-102.
[3] Mendes registra, logo no início de seu texto, que a “Constituição de 1824 não contemplava qualquer sistema assemelhado aos modelos hodiernos de controle de constitucionalidade” (p. 87); para concluir, com as seguintes palavras, a análise que faz do controle no texto constitucional imperial: “não havia lugar, pois, nesse sistema, para o mais incipiente modelo de controle judicial de constitucionalidade” (p. 88). Mais peremptório, sobre esse assunto, é, por exemplo, Luís Roberto Barroso, para quem: “ausente do regime da Constituição imperial de 1824, o controle de constitucionalidade foi introduzido no Brasil com a República” (cf. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57).
[4] O Oráculo de Delfos. O Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 198 e seguintes. O autor ainda ressalta a função de controle preventivo de constitucionalidade, igualmente exercido pela Conselho de Estado ao analisar os projetos de lei (cf. p. 161).
[5] Essa expressão – “peculiar interesse” – constante do Ato Adicional foi incorporada ao constitucionalismo brasileiro como um referencial normativo na definição das competências legislativas dos entes locais, o que se projeta atualmente no “interesse local”, de que trata o art. 30 da Constituição de 1988. Aliás, Pimenta Bueno já associava o “peculiar interesse” ao “interesse local”: “(…) observamos que os interesses provinciais ou locais, que não afetam imediatamente as relações nacionais, devem certamente ser deixados às provinciais ou localidades” (cf. Direito Público Brazileiro, p. 162).
[6] Como registra José Reinaldo de Lima Lopes, citando trecho da obra Estudos práticos sobre a administração das províncias no Brasil, do Visconde do Uruguai, um dos grandes juristas do Império – formado no Largo de São Francisco – e Conselheiro de Estado.
[7] Sobre essa competência, assim se manifesta José Reinaldo de Lima Lopes: “Esta lista de competências complica-se ligeiramente na Seção de Justiça porque por ela passaram algumas das questões mais candentes do debate jurídico e político do Império por um mecanismo não previsto no regulamento do Conselho: trata-se da resolução de dúvidas surgidas na aplicação da lei. As dúvidas provinham de órgãos do Executivo e dos órgãos do Judiciário. A prática mostra que se adotou um sistema parecido ao sistema do conflito de jurisdição ou de competência. O presidente da província tomava conhecimento da dúvida do juiz, promotor, ou outro oficial de justiça, resolvia-a (provisoriamente) e encaminhava o caso do Conselho de Estado, que fixava em última instância o entendimento devido. Com o tempo criou-se um verdadeiro hábito de consultas ao Conselho (via presidente de província e ministro da justiça), diversas vezes repreendidos os consulentes por abdicarem de seu poder e dever de interpretar a lei no caso concreto. Foram encontradas 378 consultas em que se pedia a resolução de dúvidas na aplicação da lei ou do regulamento. Destas, 185 procederam de juízes e/ou tribunais judiciários, e 193 de autoridades administrativas. É um número significativo que ocupa um terço de todas as consultas publicadas” (cf. O Oráculo de Delfos, p. 165).
[8] Cf. Consultas da Seção da Justiça do Conselho de Estado, volume I, anos de 1842 a 1846, Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1877, p. 219-221. No caso, o Vice-Presidente da Província da Bahia indagou ao Conselho se era correta a interpretação dada pelos juízes locais de que a pronúncia suspenderia totalmente os direitos políticos, impedindo que os empregados públicos desenvolvessem suas funções. Ante esse quadro, a Seção de Justiça define qual a interpretação que deve ser dada ao Código de Processo Criminal à luz do disposto na Constituição de 1824.
[9] As atas da Seção de Justiça do Conselho de Estado estão digitalizadas e disponíveis no site da Brasiliana USP: http://www.brasiliana.usp.br/
[10] Sobre essas influências estrangeiras, ver o texto publicado nesta ConJur: Referências estrangeiras são constante no STF.
[11] A ementa do julgado desde logo deixa claro o aspecto central dessa função contramajoritária:
“A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DAS MINORIAS.
– A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.
– Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio da última palavra” em matéria de interpretação constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina” (destaques no original).
[12] Disponível neste link.
[13] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, p. 284.
[14] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, p. 285, tradução livre.
[15] Para desde logo estabelecer um paralelo com o Brasil, deve-se lembrar que a atual Presidente da República já indicou quatro ministros do Supremo em seu mandato, enquanto seu antecessor teve a oportunidade de nomear oito ministros. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso (três ministros) e Itamar Franco (um ministro), todos os presidentes brasileiros desde Humberto Castelo Branco nomearam no mínimo quatro ministros para a Suprema Corte (cf. http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp?periodo=stf&tipo=quadro).
[16] Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, p. 294. De fato, como bem demonstra Robert A. Caro, no terceiro volume de sua monumental biografia de Lyndon Johnson, os projetos de lei tendentes a abolir a segregação racial nos Estados Unidos encontravam barreira não na vontade da maioria legiferante, mas sim no modo como a minoria formada pelos Senadores dos 11 antigos Estados confederados exerciam suas manobras regimentais na câmara alta americana, em especial por meio do instituto, até hoje polêmico, do filibuster (cf. Master of the Senate, New York: Vintage Books, 2003, p. 693 e seguintes).

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