Hegemonia da política

“Israel tem uma Constituição não escrita”

Autor

15 de setembro de 2013, 9h40

Spacca
Com traços de comportamento messiânico e arroubos próprios de um transe psicótico, o israelense Elior Chen, autoproclamado rabino e líder de um estranho culto à cabala, chocou a opinião pública de Israel, há mais de cinco anos, quando vieram à tona os detalhes de crimes de abuso e agressão a crianças cometidos por ele. O caso é considerado o mais horrendo episódio de violência contra crianças na história de Israel. 

Com ajuda de discípulos e de uma restrita rede de colaboradores, Chen fugiu para o Brasil. Acabou detido pela polícia de São Paulo, auxiliada pela própria comunidade judaica no país e pela atuação conjunta das autoridades israelenses e brasileiras. Brasil e Israel não tinham firmado um tratado de extradição, mas os Ministérios da Justiça e a diplomacia de ambos os países trabalharam para firmar um acordo ad hoc, com fins de levar Elior Chen à Justiça israelense.

De lá para cá, Brasil e Israel têm negociado para firmar um tratado de extradição, que ainda não foi totalmente ratificado. Além disso, há negociações em curso para firmar outros tratados para a cooperação jurídica na área penal. A intenção é estreitar os canais de colaboração entre os dois países na investigação de crimes e na captura de criminosos que não se intimidam com as fronteiras entre nações.

Em visita ao Brasil para dar continuidade a esse processo de negociação, o diretor de Assuntos Internacionais do Ministério da Justiça de Israel, Yuval Kaplinsky, conversou com exclusividade com a reportagem da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Ao contrário do que o senso comum pode sugerir, as preocupações de Israel no que toca a cooperação internacional passam ao largo de assuntos relacionados ao combate ao terrorismo. O enfrentamento ao tráfico de drogas, à lavagem de dinheiro, a fraudes financeiras e aos crimes cibernéticos é a maior motivação para buscar a colaboração de outros países na área jurídica.

É o que conta Yuval Kaplinsky, procurador-adjunto do Distrito de Jerusalém e diretor da equipe local de procuradores que atuam em cortes criminais, com uma intensa carreira no Ministério Público combatendo o crime organizado e casos de homicídios. Durante encontro com a ConJur, em agosto, na chancelaria da Embaixada de Israel em Brasília, Kaplinsky falou com franqueza das dificuldades que enfrenta o Poder Judiciário em seu país e de temas delicados como a tensão que vê entre a necessidade de combater o terrorismo e proteger os direitos humanos.

Israel é uma democracia inquieta e cheia de nuances, revela o entrevistado, que fala com orgulho não só do profissionalismo dos magistrados do seu país mas da independência e da qualificação técnica dos membros do Ministério Público israelense.

Sobrecarregado, o Poder Judiciário de Israel tem que lidar com questões complexas que surgem de situações de constante conflito com países vizinhos e com as demandas de uma sociedade dinâmica e plural, que está entre aquelas com o maior número de advogados per capita no mundo. “Somos uma sociedade litigiosa. Gostamos de discutir”, brinca Yuval Kaplinsky.

Assim como o Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte de Israel também luta contra um grande volume de processos — 10 mil, em um país de cerca de 7 milhões de pessoas — e para manter seu perfil de corte constitucional. Com um agravante: Israel não possui uma Constituição. “Não temos uma Constituição escrita, mas temos uma Constituição não escrita”, diz Kaplinsky sobre o fato de os direitos civis em seu país estarem garantidos em um conjunto de leis básicas e na jurisprudência do seu mais alto tribunal.

Em Israel, para contestar leis do governo, qualquer cidadão pode ajuizar um processo na Suprema Corte, mesmo sem a representação de advogado. Um cenário político com partidos dos mais distintos matizes ideológicos dificulta o consenso para a formulação de uma Carta Magna.

Leia a entrevista:

ConJur –Que tipo de interesses os poderes judiciários de Israel e Brasil podem ter em comum? À primeira vista, pelo menos, é difícil imaginar que países com realidades tão diversas tenham problemas de natureza legal em comum. 
Yuval Kaplinsky – Em geral, Israel sempre buscou parcerias efetivas com diversos países, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e também na América Latina. A julgar pela nossa experiência com o Brasil, que é um “Estado-chave” na América do Sul, a colaboração entre os dois países tem sido muita fecunda e proveitosa.  Meu antecessor no Ministério da Justiça esteve no Brasil e deu início às negociações para estabelecermos uma série de tratados.

ConJur – Em que áreas?
Yuval Kaplinsky – Temos, em particular, um interesse significativo no plano da cooperação jurídica, sobretudo nos casos de extradição. De forma que a negociação se dá entre o Ministério da Justiça de Israel e as autoridades brasileiras.

ConJur – Um tratado de extradição entre Brasil e Israel se justifica?
Yuval  Kaplinsky – Posso citar um exemplo. Há alguns anos, tivemos o caso de um perigoso e  violento criminoso israelense, que cometeu uma série de crimes de abuso e violência contra crianças, chamado Elior Chen.

ConJur – Que fugiu para o Brasil e foi preso pela Polícia de São Paulo em 2009…
Yuval  Kaplinsky – Exato. Ele fugiu para o Brasil, e a sociedade israelense ficou perplexa, chocada de que alguém pudesse cometer crimes horripilantes como aqueles e ainda escapar para longe. Ficamos muito gratos com a eficiente colaboração do governo brasileiro, que atendeu nosso pedido para extraditá-lo para Israel.

ConJur – Não havia tratado de extradição firmado na época?
Yuval Kaplinsky – Não. Não havia tratado.

ConJur – Hoje, já há algo firmado nesse sentido entre os dois países?
Yuval  Kaplinsky – Ainda hoje não está formalmente ratificado, mas, devido à boa vontade e à cooperação em alto nível das autoridades brasileiras, temos um diálogo construtivo entre os Ministérios da Justiça de ambos os países. Naquele caso em especial, pudemos efetivar a extradição de Elior Chen por meio do que chamamos de um acordo ad hoc. Um acordo ad hoc, nesses termos, é um acordo estabelecido entre dois países que não possuem formalmente um tratado de extradição, mas ainda assim um dos lados aceita proceder com a extradição a pedido da outra parte, assumindo, para tanto, que haverá reciprocidade em um eventual caso semelhante.

ConJur – Chen foi julgado pela Justiça de Israel?
Yuval  Kaplinsky – Sim. Atualmente cumpre uma sentença de 25 anos de prisão.

ConJur – Então a negociação para firmar um tratado de extradição está em curso entre os dois países?
Yuval  Kaplinsky – Sim e também em outras áreas para a cooperação jurídica. Quanto mais acordos tivermos, melhor e mais amplo será a continuidade do diálogo entre Brasil e Israel. Poderemos assim garantir, de forma mais efetiva, que as leis israelenses e brasileiras possam ser aplicadas, principalmente nas situações em que cidadãos de ambos os países estiverem em risco. A outra questão a que me referi anteriormente é que acreditamos que o Brasil é um ponto estratégico, até para que possamos estender e estreitar nosso diálogo com outros países da América Latina.

ConJur – Em que outras formas de cooperação jurídica há interesse?
Yuval Kaplinsky – As negociações são para estabelecer tratados internacionais referentes à execução penal, centralizados em dois pontos: tratados de extradição, ou seja, ambos os países contratam que as partes podem requerer a extradição de fugitivos que deixarem o país, e também tratados onde as partes acordam que devem colaborar mutuamente em investigações em curso, como a assistência da polícia na obtenção de provas e o envio dessas provas às autoridades do país que as requereu.

ConJur – Para combater que crimes esse nível de colaboração é necessária?
Yuval Kaplinsky – Nos últimos dez anos, o número de solicitações que Israel tem feito a países, tanto na Europa quanto nas Américas, tem crescido muito. Estamos sobrecarregados com a necessidade de estabelecer colaboração jurídica com outros países. Isso porque o crime hoje é quase sempre internacional. Temos, em primeiro plano, o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. A lavagem de dinheiro não raro envolve bancos estrangeiros. E aí temos fraudes financeiras. O mesmo vale para os crimes cibernéticos. Praticamente todo o tipo de combate aos crimes que envolvem o uso de computadores demanda alguma forma de colaboração internacional para se obter evidências. São muito raros os casos de crimes online em Israel que têm todos os agentes e circunstâncias envolvidos circunscritos à fronteira nacional.  Mesmo quando temos que usar ferramentas amplamente conhecidas como o Google ou Gmail, precisamos de alguma ajuda dos países que sediam essas empresas, como os EUA, no caso do Google. Por todas essas razões, é fundamental darmos curso ao um diálogo efetivo entre as autoridades israelenses e brasileiras, entre a polícia dos dois países e o os ministérios da Justiça. O crime organizado beneficia-se desse vácuo entre as fronteiras.

ConJur – Pode-se afirmar então que o terrorismo é mais uma preocupação dos serviços de inteligência do que do Poder Judiciário em termos de cooperação internacional?
Yuval Kaplinsky – Não é necessário dizer que o terrorismo é uma preocupação enorme para Israel. Mas não é algo com o que o Ministério da Justiça se ocupe diretamente, porque quando os terroristas se articulam para cometer atos de terror em Israel, a maior parte senão todas as evidências do crime geralmente são encontradas dentro dos limites do país. A jurisdição israelense tem, portanto, como obter as evidências. São poucos os casos em que a ação terrorista em solo nacional requer que busquemos, no âmbito legal, cooperação internacional. A maior parte dos atos terroristas acabam tratados dentro das leis e do sistema legal do país.

ConJur – Em termos domésticos, as ações judiciais envolvendo terrorismo são ainda muito frequentes?
Yuval Kaplinsky – Passamos por períodos em que o terrorismo era muito frequente e custou inúmeras vidas inocentes. Ainda é uma ameaça, embora, nos últimos anos, o número de atos terroristas tenha caído.

ConJur – E essa queda está relacionada com a preocupação com a segurança?
Yuval Kaplinsky – Evidentemente. Acreditamos também que, com a expertise que fomos obrigados a desenvolver, Israel possa auxiliar outros países, como uma referência na área de segurança, com o fim de dividirmos nossa experiência com países como o Brasil, que se vê na condição de anfitrião de eventos internacionais do porte de uma Copa do Mundo, no próximo ano. Os outros países podem aprender muito com a experiência de Israel, tanto no nível operacional quanto nos aspectos jurídicos envolvendo o terror. Aprender sobre questões difíceis que envolve o que pode ou não pode ser feito pelas autoridades. E isso responde em parte sua outra pergunta. Quais os limites legais para enfrentar o terrorismo? Sempre haverá tensão entre as motivações para se prevenir o terror e proteger a população e questões referentes ao devido processo legal e aos direitos humanos. É uma tensão inerente a esse contexto.

ConJur – E é um problema que chega às cortes?
Yuval Kaplinsky – Sim, essa é uma questão que a Justiça de Israel se depara o tempo todo. Enfrentamos muito desses dilemas. Até onde se pode testar os limites dos direitos humanos em favor da segurança das pessoas? É uma questão séria e muito complexa. A Suprema Corte de Israel tem inúmeras decisões envolvendo esse dilema. E outro fator importante, mais no nível operacional, é como combater o terror sem impor uma presença muito ostensiva do Estado na vida cotidiana dos cidadãos. Como combater o terror sem ser visto.

ConJur – Como?
Yuval Kaplinsky – Se você for a um aeroporto em Israel, você não verá agentes ostentando armas, mas ainda assim é um lugar muito seguro. Tivemos, portanto, que aprender a fazer isso sem ser vistos, porque quando a segurança é ruidosa temos dois efeitos. O primeiro é que os cidadãos e turistas não se sentem mais seguros. O segundo é que, por outro lado, quando você tem grandes eventos ocorrendo, quer mostrar aos cidadãos e aos visitantes que eles podem se sentir seguros, que há policiamento. Porém, não se pode, com isso, passar a sensação de permanente insegurança, como se todos estivessem em uma zona de guerra. É um equilíbrio delicado e enfrentamos esse dilema nas nossas ruas, aeroportos e durante os grandes eventos. Esse know how pode ser compartilhado com países com preocupações ou problemas semelhantes. 

ConJur – Como a ameaça constante do terrorismo impacta o Poder Judiciário e a jurisprudência dos tribunais israelenses?  Como um juiz lida com esse tipo de problema?
Yuval Kaplinsky – Em termos legais, há uma linha vívida entre o Estado de Israel e o que chamamos os territórios em disputa. Há palestinos vivendo nesses territórios, em lugares sob o controle de Israel. Este tem sido o caso por mais de 46 anos, desde a guerra de 1967 [A Guerra dos Seis Dias]. Isso faz com que as questões de direitos humanos se tornem ainda mais complicadas nesses lugares. Um ex-presidente da Suprema Corte israelense, quando serviu como assessor-chefe de assuntos jurídicos das Forças Armadas, tomou uma decisão histórica nesse sentido. Pode-se dizer que foi uma das mais importantes decisões na história do Estado de Israel no que toca a o conceito de direitos humanos.

ConJur – E que decisão foi essa?
Yuval Kaplinsky – Quando palestinos que viviam nos assentamentos na margem ocidental, na Cisjordânia, tentaram entrar com uma ação na Suprema Corte de Israel, a reação inicial da assessoria jurídica das Forças Armadas foi de que não procedia, que eles não tinham o direito de fazer aquilo. A Suprema Corte é da jurisdição do Estado de Israel, então o entendimento foi que eles deviam procurar um tribunal militar. Ninguém numa zona de guerra procura a Justiça comum. Você pode pegar qualquer guerra no passado e verá isso. Mas Meir Shamgar [presidente da Suprema Corte entre 1983 e 1995], quando serviu como chefe de assuntos jurídicos do Exército, disse: “Vamos deixar os requerentes serem ouvidos pelo mérito, vamos deixar a Suprema Corte escutá-los”. Daquele ponto em diante, abriu-se o precedente para que a Suprema Corte tivesse competência para se pronunciar sobre as ações das Forças Armadas. Sobre a ação dos militares nos territórios em disputa. E, ao longo dos anos, esta tem sido uma questão complexa para o nosso tribunal máximo.

ConJur – E foi aberto o precedente para que uma série de casos controversos chegasse à Justiça…
Yuval Kaplinsky – Sim, imagine que a decisão de hoje influi na possibilidade da ocorrência eventual de uma ação terrorista amanhã. E não se pode dizer que isso não afeta as decisões dos juízes da Suprema Corte. Não gostaria de estar sentado em uma daquelas cadeiras. É um dilema e tanto. As autoridades israelenses,  o Ministério da Defesa, as Forças Armadas, as Forças de Segurança, todos entendem que, para prevenir ações terroristas, é necessário agir. E a ação é severa. Pode ser muitas vezes contraditória em termos de direitos humanos. São ações que não ocorrem todo o dia. Devem ser permitidas ou não? Devem ser então proibidas? Proibi-las pode ser uma grande decisão em termos jurídicos, pode repercutir bem em jornais e revistas. Mas se a decisão interferir numa ação que pode prevenir a explosão de um ônibus dias depois. Talvez uma decisão em sentido oposto pudesse impedir a violência. Esse dilema tem tirado o sono de juízes da Suprema Corte ao longo dos anos, tenho certeza disso. Eu não falei com eles, li o que escreveram. Não são decisões simples.

ConJur – E a política deve também desempenhar um papel  nesse quadro que já é complexo.
Yuval Kaplinsky – Em termos. A política e a Justiça estão formalmente separadas.  Sei que é assim na maioria dos países democráticos, mas temos algumas diferenças importantes. Por exemplo, temos um comitê de nove pessoas que escolhe e nomeia magistrados. 

ConJur – Formado por quem?
Yuval Kaplinsky – Três deles são juízes da Suprema Corte e dois deles membros da Ordem dos Advogados. O que nos dá cinco membros que não vêm da política. Entre os outro quatros, dois são congressistas e dois ministros de Estado, do Executivo.

ConJur – E escolhem também os juízes para a Suprema Corte?
Yuval Kaplinsky – Sim.

ConJur – Isso limita o peso dos critérios políticos na escolha?
Yuval Kaplinsky – Até mesmo os quatro políticos que integram o comitê sabem que aquele não é um painel político, mas um comitê técnico. Não é perfeito, porque nada é perfeito, mas ainda assim faz com que o critério político não seja prevalecente.

ConJur – E para promotores e procuradores?
Yuval Kaplinsky – São servidores públicos, mesmo nos cargos mais altos. Não somos eleitos.

ConJur –  No Brasil, como em outros países, há essa tensão entre políticos e o Ministério Público por conta da atuação deste em casos de corrupção.  Em Israel essa tensão é maior?
Yuval Kaplinsky – Não sei se maior. Mas há uma tensão inerente em Israel entre políticos e membros dos Ministério Público por conta da natureza da nossa atividade. Um político pegar um telefone e ligar para mim, independente do assunto, seria algo chocante e embaraçoso para um membro do Ministério Público israelense. Algo totalmente inapropriado. Nos consideramos servidores técnicos, uma equipe técnica. Somos todos servidores. Não ganhamos muito dinheiro com nossos salários, mas temos orgulho de servir ao nosso país. 

ConJur – Da forma como o senhor fala, parece que há um orgulho de estar longe da política. O senhor hoje não considera que desenvolve uma atividade política?
Yuval Kaplinsky – Não. E digo mais. Na história de todo o Ministério Público de Israel, não preciso de uma mão para contar o número de membros que deixaram a promotoria e foram para a política. Como disse, há uma tensão entre os procuradores e promotores e o sistema político no país, resultado de que, por conta de nossa atuação, políticos de alto escalão acabaram condenados. Infelizmente, tivemos um  ex-primeiro ministro condenado por corrupção [Ehud  Olmert, que ocupou o posto entre 2006-2009 e foi condenado em 2012 por corrupção], um ex-presidente preso por crimes sexuais [Moshe Katzav, que exerceu o cargo entre 2000 e 2007, quando renunciou e acabou condenado pela Suprema Corte de Israel, em 2011, a sete anos de prisão por estupro e assédio sexual], entre outros casos que também tiveram ampla repercussão na mídia. Por essa razão, os políticos israelenses tendem a olhar o Ministério Público com desconfiança e acham que os promotores estão ávidos para processá-los. Então, estivemos sob fogo cerrado inúmeras vezes e tivemos que aprender a nos manter longe da política.

ConJur – Israel é  um Estado judeu. Logo, a religião exerce uma influência na organização política e no sistema judiciário do país. Que papel é esse?
Yuval Kaplinsky – Israel é um fenômeno. Alguns dizem que é um enigma. É uma democracia e ao mesmo tempo é um Estado para os judeus. Como são equilibradas essas duas noções de Estado?  Se você é um Estado para judeus e eu não sou judeu, como se pode garantir a igualdade de direitos?  Se eu for árabe, um muçulmano que vive em Israel, sendo cidadão de Israel, essa passa a ser uma questão central.  Porém, embora consideremos Israel um Estado para judeus e embora nós não tenhamos uma Constituição, temos textos-base, como nossa Declaração de Independência, e um conjunto de leis básicas que são nossa referência em termos de liberdade, igualdade e dignidade humana.

ConJur – Com a dificuldade política de ser estabelecer uma Constituição, esse conjunto leis básicas exerce essa função?
Yuval Kaplinsky – Sim. São o que temos que mais se aproxima de uma Constituição. Algumas dessas leis básicas colocam a noção de igualdade como um dos princípios fundamentais. Em inúmeras decisões de nossa Suprema Corte, você pode constatar que a noção de igualdade foi a base para que a Justiça concedesse uma série de direitos a minorias.

ConJur – O que faz dos país uma democracia não-laica.
Yuval Kaplinsky – Nos vemos como uma democracia e também nos vemos como um Estado para os judeus A preocupação com a iniquidade de direitos pode se colocar quando pensamos que, se você for um judeu no Brasil e desejar migrar para Israel, então você tem o direito de migrar para Israel. Mas se você não for judeu, for cristão ou muçulmano, a situação é completamente diferente. Isso vem do fato de Israel ser o lar dos judeus.

ConJur – O que também cria uma situação jurídica complexa.
Yuval Kaplinsky – Isso é um fato. Somos uma democracia e somos um Estado judeu. A igualdade depende do reconhecimento de que Israel é o lar dos judeus, depois de tudo o que enfrentamos. Uma vez que nossas fronteiras estão estabelecidas, uma vez que nos tornamos um país de 7 milhões de pessoas, aí então a igualdade de direitos se coloca entre nossos cidadãos, judeus e não judeus. É um desafio. Há inúmeras tensões e dilemas.

ConJur – A lacuna deixada pela ausência de uma Constituição torna ainda a situação mais complexa
Yuval Kaplinsky – Muitos juristas em Israel veem isso como um acidente histórico. O acidente foi que nossos fundadores falharam em não elaborar uma Constituição em 1948. 

ConJur –  Houve resistência e dificuldade em conciliar interesses para estabelecer a Constituição nos anos seguintes à fundação do Estado de Israel, certo?
Yuval  Kaplinsky – Sim, em vez de elaborarem uma Constituição, decidiram estabelecer um grupo de leis básicas, que em certo ponto devia servir de base futura para nossa Constituição. Mas então veio a política. E a política prevaleceu. E vale assinalar que a política em Israel é muito diferente do que qualquer outro lugar no mundo. Os Estados Unidos, com mais de 300 milhões de habitantes, têm dois grandes partidos. Israel, com 7 milhões, teve, em sua última eleição, se não me engano, uns 25 partidos.  

ConJur –  Temos no Brasil mais de 30 partidos, embora sejamos um país de mais de 200 milhões de habitantes.
Yuval  Kaplinsky – Mas, no caso de Israel, não é somente sobre o número elevado de legendas. Os partidos maiores representam interesses de âmbito nacional, enquanto os partidos menores representam interesses muito específicos e restritos. Há partidos que representam religiosos de uma linha mais moderada e moderna, e há aqueles que defendem interesses dos ultraortodoxos. Entre estes últimos há partidos que representam os judeus de origem sefaradita [descendentes de judeus originários da Península Ibérica], por exemplo, e por aí vai. Isso além dos partidos de direita e de esquerda e todas as suas divisões. Então, depois de poucos anos da fundação do Estado de Israel, com tantos e tão diversos interesses, como conceber uma Constituição, como conceber um documento que depende do consenso de todos? Sou bastante pessimista. Não acho que verei uma Constituição israelense enquanto viver. Não acho que você viverá para poder ver uma Constituição de Israel. É muito complexo.

ConJur –  E uma Constituição faz tanta falta como se imagina?
Yuval  Kaplinsky – O preço de não termos uma Constituição não é tão grande quanto a maioria das pessoas pode imaginar. As cortes israelenses aplicam plenamente noções de direitos civis, ao ponto de alguns poderem até afirmar que é como se tivéssemos uma Constituição. A Suprema Corte de Israel já rejeitou leis formuladas pelo Parlamento por considerá-las em desacordo com os direitos humanos, em desacordo com o conjunto de leis básicas do país. Embora não tenhamos um documento chamado Constituição, temos a noção de direitos constitucionais. Quando estava no primeiro ano da faculdade de Direito, uma das disciplinas fundamentais no currículo era Direito Constitucional. Não estávamos, contudo, estudando a Constituição americana.  Era um curso sobre o Direito Constitucional israelense. Uma das primeiras aulas que tive foi sobre como aprender sobre Direito Constitucional sem uma Constituição. A resposta veio imediatamente: não temos uma Constituição escrita, mas temos uma Constituição não escrita. E temos um grupo de leis que defendem os direitos constitucionais do cidadão. Não temos o documento chamado Constituição, como disse,  mas esse grupo de leis está reverberado em nossa tradição jurídica.

ConJur –  Sendo um país com cerca de 7 milhões de habitantes,  como é o volume de processos na Justiça?
Yuval  Kaplinsky – Israel é uma sociedade litigiosa.  Estamos entre os países com o maior número de advogados per capita.

ConJur –  Algo relacionado com a antiga tradição judaica do debate?
Yuval  Kaplinsky – Gostamos de discutir [risos].  Mas o fato é que nossos juízes estão sobrecarregados. Uma das razões de eu não ter escolhido a magistratura é o volume impensável de casos que afogam nossos magistrados. Posso ver a expressão de frustração dos juízes quando estou diante deles. Sei que anseiam por cumprir suas obrigações, que anseiam por fazer Justiça, mas estão engolidos por um volume de processos muito grande. 

ConJur –  Qual a razão para isso? Há alguma medida para resolver esse quadro?
Yuval  Kaplinsky – As razões são complexas e envolvem, em parte, o que falamos aqui. Não temos ainda uma solução imediata para esse problema. Estamos concebendo nosso sistema de arbitragem e há outras propostas. Mas ainda não temos uma solução já definida. Há propostas relacionadas mais ao Direito Civil, não Penal. É onde o volume de processos é muito, muito pesado. Um dado sobre os juízes israelenses é que eles são extremamente qualificados e enfrentam uma carga de trabalho monstruosa. São essas as duas características fundamentais sobre nossos magistrados.

ConJur –  O grande volume de processos judiciais seria o dado mais singular sobre a Justiça do país se tivesse que explicá-la a um estrangeiro ?
Yuval  Kaplinsky – Seria um dado importante. A forma como escolhemos magistrados, que mencionei antes, também é importante. E o fato de nosso sistema penal ter que lidar muito com o tráfico de drogas.

ConJur –  E o volume processual é grande em todas as instâncias ?
Yuval  Kaplinsky – Sim, nas três instâncias. No primeiro grau, nos tribunais de Distrito e na Suprema Corte.

ConJur – Também na Suprema Corte?
Yuval  Kaplinsky – Nossa Suprema Corte não tem o luxo de filtrar os casos que deve julgar como a Suprema Corte do Reino Unido, a antiga House of Lords,  ou mesmo a Suprema Corte americana. São lugares onde você tem uma média de 80, 85 decisões por ano. Quando se pode decidir sobre o que julgar, cada decisão pode ser perfeita, pode expressar, em si, as virtudes do sistema legal. Mas, em Israel, qualquer um pode peticionar à Suprema Corte.

ConJur –  Não há filtros?
Yuval  Kaplinsky – Qualquer caso que chega a um Tribunal Distrital, seja ele um processo criminal ou cível. Esses processos podem render um recurso na Suprema Corte. Diretamente. Sem filtro.

ConJur –  E não há propostas para reformar o sistema ou criar óbices aos recursos?
Yuval  Kaplinsky – Há no país um amplo debate sobre se deve ser criada uma instância intermediária entre as cortes distritais e a Suprema Corte. Esse tribunal de apelação atrairia para si todos aqueles casos que sobem direto à Suprema Corte, permitindo assim aos juízes do tribunal supremo algum ócio, permitir que tomem um fôlego e possam ser mais, de fato, como uma Suprema Corte.

ConJur –  E também reduzir, nas instância ordinárias, o tempo de trâmite das ações?
Yuval  Kaplinsky – Seria bom. A situação é que todos trabalham muito. Os juízes, em geral, oscilam entre a satisfação com o trabalho realizado e a frustração com o tempo que se leva para alcançar a Justiça. Há uma satisfação na sociedade com a eficiência da Justiça naquilo que toca a qualificação dos magistrados, que têm a sensibilidade para compreender as partes, ir a fundo no processo, mas há, em contrapartida, a frustração com a morosidade, por conta da sobrecarga de trabalho. O tempo é um grande desafio para a Justiça israelense.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!