Leilão judicial

Leiloeiro não pode transferir suas obrigações para juiz

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15 de setembro de 2013, 6h01

O crescente e assustador número de leilões anulados (ou os que mesmo não anulados acabam por prejudicar os arrematantes), bem como o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.035.373-MG, nos fez refletir acerca da responsabilidade civil dos leiloeiros, que atuam tanto na esfera extrajudicial quanto judicial.

O leilão extrajudicial é tratado pelo Decreto-Lei 70/66 (com redação dada pela Lei 8.004/90) e ainda é tema de discussão ressurreta no Judiciário. Isso porque o STF havia decidido no Recurso Extraordinário 223.075-DF, de relatoria do ministro Ilmar Galvão, julgado em 23 de junho de 1998, que esse dispositivo teria sido recepcionado pela Constituição Federal, visto que “além de prever uma fase de controle judicial, antes da perda da posse do imóvel pelo devedor (artigo 36, §2º), não impede que eventual ilegalidade perpetrada no curso do procedimento de venda do imóvel seja, de logo, reprimida pelos meios processuais próprios”.

Contudo, a matéria ressurgiu das cinzas nos REs 556.520 e 627.106, sob o rito da Repercussão Geral reconhecida no Agravo de Instrumento 771.770-PR, com voto de quatro ministros — Luiz Fux, Carmen Lúcia, Ayres Brito e Marco Aurélio — no sentido de não recepção do indigitado decreto pela Constituição. O julgamento está suspenso desde agosto de 2011 em razão do pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Caso haja alteração da jurisprudência pacífica por décadas, caberá ao STF estabelecer no voto quais os critérios que permitem essa mudança abrupta de posicionamento (que não pode ser apenas a mudança da composição da corte), bem como modular os efeitos da sua nova decisão, sob pena de flagrante insegurança jurídica.

Além do Decreto-Lei 70/66, também prevê o leilão extrajudicial a Lei 9.514/97, com a diferença de que nesta há transferência da propriedade resolúvel quando da instituição da garantia, razão pela qual, no leilão extrajudicial, o credor-fiduciário aliena um bem próprio (e não de terceiro), persistindo todas as garantias de purga da mora, intimação pessoal e acesso ao Judiciário para discussão de eventuais ilegalidades no procedimento.

O leilão extrajudicial foi previsto na legislação na tentativa de se resguardar a circulação do crédito, mediante desburocratização da execução das garantias reais, já que as vetustas hipoteca, penhor e anticrese não respondiam a contento aos anseios dos que possuíam direito de crédito, seja em razão do custo e morosidade da execução judicial, seja em virtude de privilégios de terceiros sobre essas garantias (por exemplo: Estado e créditos trabalhistas até 150 salários mínimos).

A par da discussão acerca da constitucionalidade dessa modalidade de leilão direto, é certo que, em ocorrendo, deverá ser conduzido por leiloeiro oficial e em respeito as regras processuais à espécie aplicadas (artigos 686, 698 entre outros do CPC).

Entretanto, são comuns as ações pedindo a declaração de nulidade do leilão e/ou reparação de danos em razão de vícios inúmeros e, pior, a procedência dessas demandas também é elevada.

Considerando sobre o Leilão Judicial
A hasta pública, popularmente leilão judicial, consiste em instrumento indispensável ao Judiciário para realização do seu mister, qual seja, colocar fim às controvérsias patrimoniais. Por isso, quanto maior a publicidade e amplitude de participação, mais eficiente será o procedimento do leilão, cujo arremate possibilitará a extinção do processo de execução ou alienação judicial. Sempre foi assunto nebuloso, que exigia destemor e especialização daqueles que quisessem participar das hastas. Geralmente, era assunto para investidores à procura de bons negócios.

Em razão da possibilidade de compra de bens por preços mais em conta, rotulou-se como “aproveitadores” aqueles que participavam de hastas públicas em busca de negócios vantajosos. Aliás, conforme notícia publicada na ConJur, o desembargador Enio Zuliani do Tribunal de Justiça de São Paulo chegou decidir em acórdão na Corte Especial que “quem arremata imóveis em leilões judiciais sãos os corvos, os urubus, já que conseguem fechar negócio por preços ínfimos”.

Discordamos completamente. Os arrematantes são indispensáveis para o sucesso da hasta pública, que por sua vez é instrumento indispensável ao Judiciário. Bons negócios são lícitos. É natural que pessoas na compra de um bem (móvel ou imóvel) procurem fazê-lo em condições mais vantajosas do que o preço de mercado (vedando-se o preço vil).

Além disso, é de se ter em conta que com o advento do artigo 689-A do CPC, que tornou possível a alienação judicial eletrônica, uma gama variada de pessoas (no mais das vezes leigas) passou a se interessar pelas ofertas de bens constritos. Há propaganda de leilões eletrônicos em jornais de grande circulação, nos comunicados de condomínio etc. Essas pessoas atingidas pela publicidade, ao se candidatarem como licitantes, confiam que as informações constantes do portal eletrônico e do edital são corretas e seguras. Sucede que nem sempre são, como segue.

Da Responsabilidade Civil
A ideia de responder pelo dano causado a outrem, embora bastante antiga, vem se transformando sobremaneira nas últimas décadas em nosso país e fora dele. A punição do ofensor, num contexto em que se exigia o ressarcimento dos prejuízos pela conduta culposa do agente, com evidente enfoque moral, estava condicionada à efetiva demonstração de um ato ilícito, ou seja, um comportamento contrário ao direito que provocasse um dano. O ponto central nessa clássica visão da responsabilidade civil estava na pessoa daquele que praticava o evento danoso e não na pessoa do lesado.

Para que o ato comissivo ou omissivo culposo possibilitasse a real reparação do prejuízo sofrido pela vítima, duas outras fases eram indispensáveis para que o agente fosse compelido a reparar o dano: a demonstração da existência deste e o nexo de causalidade.

Com a transformação de atos negociais em atividade empresária, verificou-se que na sociedade moderna, na maioria das situações, a conduta culposa era dispensável para a configuração da responsabilidade civil. Assim, embora lícito, em razão do risco da atividade a reparação do dano causado era necessária. De um sistema centrado na teoria da culpa, passou-se à teoria do risco.

Dessa forma, da ideia de retribuição do dano causado, passou-se à reparação fundada na justiça distributiva, num verdadeiro caminho de solidariedade para a reparação do dano. Com isso, estudos recentes têm apontado a necessidade de flexibilização e/ou presunção do nexo causal e, ainda, responsabilização pressuposta, consoante brilhante obra da festejada professora titular da USP, Giselda Hironaka.

Essa transformação da responsabilidade civil atinge não apenas os seus pressupostos e seu ponto central, que passa a ser a figura do lesado, mas impõe numa relação contratual, antes de sua formação e posteriormente à extinção da relação obrigacional, ou em qualquer outra relação jurídica, um comportamento digno dos contratantes. Esse comportamento exigido é resultado da inserção de princípios, ou seja, mandamentos do direito natural que integram nosso ordenamento jurídico.

Um dos mais importantes princípios positivados no atual Código Civil foi o da boa-fé, que, anteriormente ao texto constitucional de 1988, havia sido praticamente esquecido nas relações contratuais, sob a alegação de que inexistia norma expressa nesse sentido. Na realidade, o princípio da boa-fé objetiva poderia ter sido utilizado com muito mais constância nas relações contratuais, por ser um princípio geral do direito. Essa questão, no entanto, já está superada, pois o CDC (artigos 4º, III, e 51, § 1º) e o atual Código Civil (artigos 113 e 422), por intermédio dessas cláusulas gerais, impõem um comportamento correto, ético, equilibrado e honesto nas relações contratuais.

Além dessa cláusula geral de boa-fé, que permite a integração do sistema, há que se destacar, que as relações contratuais possuem os deveres principais, secundários e, ainda, os acessórios de conduta. Segundo António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, esses deveres acessórios de conduta podem ser classificados em deveres acessórios de informação, proteção e lealdade, que são decorrentes do princípio da boa-fé.

Os deveres acessórios são analisados a partir do cumprimento inadequado, imperfeito da obrigação, visto que há situações em que se cumpre a obrigação, mas, mesmo assim, acaba por causar danos à contraparte.

Da Responsabilidade Civil do Leiloeiro
Não há mais dúvida de que a arrematação é uma forma derivada (e não originária) de aquisição da propriedade, tanto é verdade que, à guisa de exemplo, eventuais garantias reais continuarão existindo sobre o bem na hipótese do credor não ter sido intimado do leilão (artigo 698, CPC). Também persistirão servidão, usufruto, uso, habitação, entre outros gravames (artigo 619, CPC). Ocorre que, sobrevindo prejuízo ao arrematante em razão da falha na indicação e especificação completa das características do bem pelo leiloeiro, restará o dever deste reparar os danos eventualmente suportados por aquele.

A profissão de leiloeiro é regulamentada pelo Decreto 21.981/32, que impõe, no seu artigo 40, dois importantes caracteres jurídicos do contrato que se estabelece entre o leiloeiro e arrematante (ou autoridade judicial), quais sejam: 1ª) prestação de serviços; 2ª) mandato ou comissão.

Entendemos desnecessário o debate sobre a característica jurídica da responsabilidade do leiloeiro, se objetiva ou subjetiva, visto que só haverá responsabilidade se existir no mínimo dano e nexo causal, e para que haja liame de causalidade é indispensável que o leiloeiro tenha deixado de cumprir ao menos uma das suas obrigações legais, fato esse que por si só redundaria na sua culpa.

Nessa linha, nunca poderá o leiloeiro, portanto, ser responsabilizado por vícios ocultos no bem que não tinha condições óbvias de conhecer para incluir no edital. Nessas hipóteses de vício oculto, evidente que o arrematante tem direito de desfazer a arrematação e pedir reparação dos danos em relação ao comitente vendedor. Se esse vício resultar na perda do bem (como, por exemplo, as hipóteses de chassi adulterado ou matrículas sobrepostas), o arrematante terá direito de postular ação evictória (no prazo de 10 anos a contar da perda do bem — artigo 205, CC), também apenas contra o comitente vendedor.

O mandato está previsto nos artigos 653 e seguintes do Código Civil. É contrato de prestação de serviços, por meio do qual mandatário age de acordo com as indicações e instruções do mandante ou ainda em nome próprio, com dever de zelo e diligência (artigo 667, CC). Já na comissão, o comissário contrata em seu próprio nome, mas por conta e risco do comitente, assumindo perante terceiros a responsabilidade pessoal pelos atos que praticar, também devendo fazê-lo com toda cautela e transparência.

Segundo bem pontuou no REsp 1.035.373-MG o prestigiado ministro Marco Buzzi, que vem se destacando pela lucidez e perspicácia das suas decisões:

“Em que pese as sutis diferenças entre os institutos (mandato e comissão), verifica-se que em ambos a obrigação de lealdade e cooperação é requisito essencial, consectário do princípio expresso no artigo 422 do Código Civil segundo o qual as partes devem proceder de boa fé tanto no cumprimento da obrigação quanto ao exercício do direito respectivo e tem inteiro fundamento na natureza de cooperação entre pessoas, assente numa relação de confiança que deve viger nos contratos.

A boa fé não se resume às partes contratantes (mandante-mandatário, comitente-comissário), mas deve ser exercida perante toda a sociedade afetada pelo cumprimento do contrato, mormente na sociedade contemporânea na qual a figura do consumidor é elemento essencial do mercado, tendo proteção fortalecida no âmbito da Carta Constitucional de 1988 (artigos 5º, XXXII e 170, V), bem como na política nacional que reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (artigo  4º, I do CDC).

A aplicação do princípio da boa fé se mostra ainda mais evidente no desempenho da atividade de leiloeiro, haja vista que a sua função é de prestar um serviço que aproxima o vendedor do comprador, auxiliando-os na consecução de um objeto comum, qual seja, a formulação de um contrato de compra e venda do bem leiloado, nos termos do art. 19 do Decreto que regulamenta a profissão de leiloeiro.”

Boa-fé é princípio geral do direito transformado em cláusula geral no Código Civil de 2002, com vinculação aos deveres acessórios de conduta (informação, proteção e lealdade). Na hipótese dos serviços do leiloeiro, os atos suficientes para satisfazer esses deveres acessórios estão previstos no Código de Processo Civil e nas próprias normas que regem o leilão extrajudicial, que contêm previsões claras para a segurança, informação, proteção e lealdade do procedimento de excussão do patrimônio do devedor: o artigo 686, I a VI do CPC, que trata dos requisitos do edital, com destaque para o dever de constar claramente a descrição do bem e todas as informações, os ônus e causas pendentes que possam atingir (ou interessar) (a)o bem a ser arrematado; artigo 692 do CPC, que veda o lanço vil; artigo 694, estipula as hipóteses de desfazimento da arrematação; artigo 26, §3º da Lei 9.514/97, e também o artigo 31, §1º, do Decreto-Lei 70/66, que determinam a intimação pessoal do devedor para purgar a mora; etc.

Entretanto, é comum se ler nos editais, sobretudo nos de imóveis, a fatídica frase, que transfere abusiva e absurdamente a responsabilidade dos leiloeiros para os particulares: “Eventuais ônus sobre o imóvel correrão por conta do arrematante, exceto débitos de IPTU e demais taxas e impostos que serão sub-rogados no valor da arrematação nos termos artigo 130 do CTN.”

Nos leilões judiciais, os editais são atos processuais, assinados por juiz togado. Entretanto, são precedidos da nomeação de um leiloeiro que os elabora, e por isso é dele a responsabilidade pelo que consta (ou não) no edital.

Essa cláusula excludente de responsabilidade somente seria válida se no próprio edital constassem todas as características e ônus que deveriam ser assumidos pelo arrematante, posto ser dever do leiloeiro indicá-los no edital, por expressa determinação legal (artigo 686, V, do CPC), sob pena de causar nulidade absoluta (artigo 694, III, CPC), sem prejuízo da necessidade de reparação dos danos causados ao arrematante pelo leiloeiro, em razão da prestação de serviço defeituosa. Também é dever do leiloeiro aferir a regularidade das intimações pessoais e editalícia obrigatórias.

Os arrematantes, como, aliás, todos os participantes de negócios em geral, devem guardar as cautelas de praxe. Contudo, não precisa ser um expert na área jurídica e nem gastar recursos com pesquisas antes do leilão, já que a cautela do arrematante está sempre atrelada às informações que o leiloeiro inclui no edital, e se houver falha a responsabilidade será do leiloeiro. Não é dever do juiz e muito menos do interessado no leilão fazer a investigação de eventuais ônus ou informações importantes sobre o bem. Também não é obrigação dos interessados na hasta pública irem consultar o processo judicial. Também não há obrigação de se fazer vistoria no bem. Tudo isso compete ao Leiloeiro e é dever dele preceder o edital com todas essas buscas.

Em resumo, as frequentes irregularidades nas intimações obrigatórias e menções nos editais que imputam responsabilidade exclusiva do arrematante, por ônus ou características do bem que não foram destacadas no edital pelo leiloeiro, não podem se sobrepor aos comandos da lei e nem têm o condão de afastar a responsabilidade do leiloeiro pelos danos perpetrados mediante defeituosa prestação de serviço, ainda que exista no edital essa previsão que o isenta do seu dever legal (informar) e imputa ilegalmente as consequências dessa (sua) desinformação ao arrematante (desinformado).

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