Inconstitucionalidade aplaudida

A Lei Anticorrupção no fundo é um retrocesso

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14 de setembro de 2013, 7h36

Recentemente aprovada, talvez, como resposta às manifestações sociais que marcaram a primeira das grandes competições desportivas que daqui para frente atrairão os olhos do mundo para o Brasil, os Poderes Executivo e Legislativo presentearam a sociedade brasileira com a Lei 12.846, de dois de agosto passado, com início de vigência previsto para fevereiro de 2014.

Essa lei veio acompanhada do discurso de que se trata de mais um instrumento legal de combate à corrupção, praga que, ninguém nega, assola a nação brasileira desde a sua mais remota origem. A responsabilização administrativa das pessoas jurídicas — privadas — passa a ser de ordem objetiva, ou seja, independente de culpa, por atos “lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira”, tipificados, por sua vez, em comportamentos – prometer, oferecer, dar, financiar, frustrar, impedir etc. – naturalmente afetos à figura do ser humano. A opção pela natureza — objetiva — dessa nova modalidade de responsabilidade jurídica recebeu aplausos entusiasmados, em especial porque impõe de uma vez por todas a cultura da ética organizacional — compliance — objetivando eliminar ou reduzir riscos de ofensas a bens ou interesses jurídicos próprios do Estado, mas que, por certo, não se confunde com a clássica responsabilidade civil – em regra subjetiva e excepcionalmente objetiva – e, menos ainda, com a – sempre subjetiva – responsabilidade penal.

O novo elenco de sanções civis ou administrativas criado pela lei anticorrupção também foi celebrado e, neste ponto, se aproximou muito das sanções criminais, como, v.g., as penas cominadas às pessoas jurídicas pela lei penal ambiental, onde, sabe-se bem, não prospera a responsabilidade objetiva. A multa, o perdimento de bens, a suspensão da atividade, a proibição de receber incentivos ou a dissolução compulsória da entidade jurídica são, fácil ver, penas ou sanções restritivas de direitos e de inegável caráter retributivo, ou seja, o castigo pelo ilícito como forma de reafirmar a soberania estatal, inclusive mantendo o ideal de prevenir a reiteração de condutas infracionais.

Por fim, o poder de polícia anticorrupção foi ampliado significativamente com a previsão de dois sistemas punitivos: um no âmbito da administração pública, via procedimentos administrativos; outro na esfera judicial e com sanções extremamente graves, sempre com a legitimidade ativa destacada do Ministério Público na ação civil pública, de qualquer maneira garantindo — formalmente — o devido processo legal à responsabilização da pessoa jurídica por atos lesivos ao patrimônio público, aos princípios da administração pública e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Deixando expresso o respeito nutrido por quem pensa diferente, longe de se tratar de um avanço, a lei anticorrupção no fundo é um retrocesso, considerando que o discurso ou a “boa vontade” do diploma legal não inibe a necessidade de adequar-se ao sistema repressivo desenhado pela Constituição Federal, todo ele baseado na responsabilidade subjetiva — dolo ou culpa — e na regra da legalidade estrita, em particular, na função que veda o bis in idem.

Vale lembrar, aqui, que a expansão do poder de polícia, seja o exercido pelas agências repressivas tradicionais — Polícia Judiciária, Ministério Público e Justiça Criminal —, como o atualmente conferido a diferentes órgãos administrativos — CGU, Cade, Ibama, RFB etc. — ou da Justiça cível — ou fazendária, obviamente também gera a ampliação da incidência das garantias individuais da pessoa física ou jurídica exposta ao poder punitivo estatal. Não é porque esse ou aquele ato infracional recebe o apelido de penal, civil ou administrativo — tributário, econômico, ambiental ou improbidade administrativa — que vamos, agora, abandonar o viés libertário da Lei Maior de 1988. O direito do “inimigo” não se resume ao discurso sobre o crime, também dá sinais que caminha sobre o direito “sancionatório”, qual seja, aquele em que não se fala em reparação de danos, mas sim na repressão ou na punição da pessoa jurídica formal ou informal, o que bastaria para atrair para tal direito “sancionatório” postulados elementares da direito penal, como a culpabilidade, a legalidade, a inocência presumida, o favor rei etc..

Não me parece, portanto, que a responsabilidade objetiva criada pela lei anticorrupção tenha espaço em um sistema repressivo construído sobre o pilar da culpa lato senso, mas isso, por si só, seria uma tema extremamente longo para caber neste rápido ensaio. Fica, contudo, a crença de que todo e qualquer ato infracional, penal ou administrativo, obrigatoriamente carrega a condição de ato reprovável, porque admitir o contrário implica negar qualquer valor a excludentes tradicionais de responsabilidade jurídica — por exemplo estado de necessidade ou coação irresistível.

De outro lado, há outra questão que anda meio esquecida: a lei anticorrupção expressamente consagrou a autonomia entre os atos lesivos à administração pública nela modelados, em relação aos atos de improbidade administrativa. Ao que parece, pretendeu o legislador estabelecer uma repartição da jurisdição cível sem qualquer vínculo jurídico, para o julgamento e imposição de sanções administrativas voltadas à tutela de bens jurídicos idênticos: a jurisdição especializada em atos lesivos da Lei 12.846/2013 e; outra vocacionada para os atos ímprobos da Lei 8.429/1992.

É que as pessoas jurídicas privadas costumam responder, na forma do concurso de agentes, por atos de improbidade administrativa imputados aos agentes públicos, muito dos quais se confundem com várias das infrações administrativas tipificadas na lei anticorrupção. A possibilidade de ocorrência de bis in idem é real, até porque as condutas ilícitas e os bens jurídicos tutelados ou se identificam ou se relacionam de uma maneira tão próxima que acabam levando a uma hipótese de conflito aparente de normas sancionatórias. Diferente do que consignado no diploma legal aqui abordado, creio que daqui para frente, o juiz irá se deparar com a necessidade de prestigiar a regra da legalidade estrita na escolha da lei cabível nesse ou naquele caso concreto, afinal o ato de improbidade não deixa de ser, também, um ato lesivo à administração pública.

Encerrando, se a opção política segue a linha do endurecimento da repressão contra as entidades jurídicas por comportamentos dolosos ou culposos de autoria exclusiva do ser humano, que se avance, então, na construção de uma culpabilidade corporativa ou organizacional capaz de impedir a presunção de culpa, quando em jogo a aplicação de sanções altamente agressivas a direitos fundamentais como a propriedade ou a livre iniciativa. Não se cuida de reparação de danos causados ao Estado pelo preposto ou pelo gestor, onde se presume a culpa da pessoa jurídica, mas de punição da entidade aplicada simplesmente por ser o que é: uma criação do direito!

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