Diário de Classe

Julgamento do mensalão reedita mítico voto de Minerva

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14 de setembro de 2013, 8h00

É difícil deixar de escrever sobre o polêmico julgamento acerca do (des)cabimento dos embargos infringentes na Ação Penal 470. A sociedade brasileira — e, sobretudo, a comunidade jurídica — aguarda ansiosa o término do processo do mensalão. Nos últimos dias, as sessões do Supremo Tribunal Federal foram acompanhadas por todos. Sua audiência não ficou devendo em nada para a reta final do Campeonato Brasileiro, a apuração de desfile de Escola de Samba ou, ainda, o sempre concorrido último capítulo da novela das oito. Até a próxima quarta-feira — quando o ministro Celso de Mello deverá proferir o voto que irá desempatar o julgamento —, os especialistas e leigos formularão as mais diversas críticas, lançarão suas opiniões e projetarão o resultado.

A fim de escapar desta celeuma, ma non troppo, este Diário de Classe propõe-se a resgatar a origem mitológica do famoso “voto de Minerva”. Isto porque nada é mais triste do que ouvir as pessoas falando sobre algo que muitos ainda desconhecem.

Do mito à tragédia
A Oresteia, de Ésquilo (clique aqui para ler), é uma trilogia composta por três tragédias: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Com ela, o fundador da tragédia retoma o mito dos atridas (descendentes de Atreu) e conta a história de Orestes, que teria ocorrido por volta do século XII a.C., após a conhecida guerra de Tróia.

Antes de adentrar na narrativa, entretanto, impõe-se contextualizar o leitor, a fim de auxiliar na compreensão da trilogia. Na Grécia antiga, se um dos membros da família cometesse um erro, todos os demais seriam, de alguma forma, culpados.

Sobre a família de Orestes paira uma maldição que atravessa gerações. Diz-se que Tântalo, o primeiro da estirpe, filho de Zeus com uma mortal, a fim de testar a onisciência dos deuses, ofereceu-lhes um banquete no qual serviu as carnes de seu próprio filho. Ressuscitado pelos deuses, Pélops se apaixona por Hipodâmia. Todavia, para com ela casar, precisa antes matar seu sogro. Desta união surgem os gêmeos Tieste e Atreu. Ambos lutam pelo trono de Micenas e nutrem entre si um ódio profundo, alimentado por traições, adultério, incesto etc. Ao descobrir que sua mulher era amante do irmão, Atreu mata os sobrinhos e — tal qual o banquete de Tântalo — os serve a Tieste, revelando a procedência da carne ao final. Advertido de que só poderia se vingar se tivesse um filho com sua própria filha, Tieste a violenta. Após o nascimento de Egisto, ele finalmente se vinga do irmão e o mata. O falecido Atreu, por sua vez, tivera dois filhos: Menelau, rei de Esparta, casado com Helena; e Agamêmnon, rei de Argos, casado com Clitemnestra.

Mas, afinal, quem é o tal Orestes? Pois, então. Ele é um dos quatro filhos resultantes da união de Agamêmnon com Clitemnestra. O único problema foi que, para de obrigá-la a com ele se casar, Agamêmnon precisou matar o marido e o filho dela.

Todos estes episódios integram a mitologia grega e eram conhecidos pelos atenienses. Este é, portanto, o pano de fundo que inspira a obra de Ésquilo.

A institucionalização da Justiça
Na primeira peça da trilogia, Agamêmnon retorna vitorioso da guerra de Tróia. O coro de anciões relembra que, antes de partir com seu exército rumo à guerra, Agamêmnon sacrificou uma de suas filhas, Ifigênia, atendendo à exigência da deusa Artémis para que, então, soprassem os ventos favoráveis. Após acalentar por uma década o desejo de vingar a morte de sua filha, Clitemnestra finalmente consegue assassinar o marido.

Na segunda peça, após longo exílio, Orestes retorna para o funeral. É seu dever, contudo, cumprir as ordens de Apolo e vingar a morte do pai, matando a própria mãe. Isto o transforma em matricida, de um lado, e em justiceiro, de outro. Após a vingança, Orestes passa a perseguido pelas Erínias, que eram antigas divindades femininas, representantes da Justiça (Díke), que punem aqueles que matam seus consanguíneos.

Na terceira peça, por fim, Orestes dirige-se até o santuário de Apolo, em Delfos, para se purificar do crime que cometera. Então, Apolo assume perante as Erínias ter sido o responsável por haver ditado o matricídio e envia Orestes, na companhia de Hermes, para ser julgado pela deusa Palas Atena.

Em Atenas, a deusa recebe os litigantes: primeiro, ouve a acusação da Erínias, que exigem a punição dos crimes contra consanguíneos; depois, ouve Orestes, que alega ter feito justiça à memória de seu pai. Em seguida, temendo pelas consequências que qualquer decisão sua pode resultar, Palas Atena determina a institucionalização do primeiro tribunal da história:

É caso muito difícil, realmente,
Para um homem julgar. Por outro lado
Em caso de homicídio não compete
A mim deter o braço da Justiça
[…]
Nomearei juízes escolhidos
Que formarão um tribunal perpétuo
Que julgará os casos de homicídio.
Para eles transfiro o julgamento.
Trazei as vossas provas, convocai
As vossas testemunhas, que irão,
Por juramento feito confirmadas,
O braço da Justiça sustentar.
Vou procurar os cidadãos mais sábios
E mais prudentes para aqui trazê-los
A fim de que, depois do juramento,
Decidam com rigor e integridade
(Ésquilo, Oresteia, v. 470-489).

O voto de Minerva
Reunido o conselho, sob a presidência de Palas Atena, inicia-se o julgamento de Orestes. Com a palavra inicial, as Erínias apresentam seu libelo acusatório. Em seu interrogatório, Orestes confessa ter matado a mãe com um golpe de espada, sob o álibi de que obedeceu à determinação de Apolo, que intervém em seu favor. Apolo declara que, na verdade, seu oráculo era uma ordem de Zeus e, portanto, nada poderia prevalecer sobre ela:

Zeus assim ordenou e estava certo
Não se comparam em nada as duas mortes
[…]
Não é a mãe que gera realmente
Aquele filho que é chamado seu.
Ela não passa de uma guardiã
[…]
Que um pai sem a mãe pode gerar
Temos aqui presente, como prova,
Palas, filha de Zeus, que nenhum ventre
Guardou antes de vir à luz do mundo
(Ésquilo, Oresteia, v. 1404-1406 e 1531).

Encerrados os debates, Palas Atena pede aos membros do conselho de sentença que respeitem o juramento prestado e votem para fazer justiça, cientes de que são o respeito às leis e o temor à punição que afastam os cidadão da prática criminosa. Antes de abrir as urnas, porém, ela antecipa seu voto:

Eis minha função, decidir por último.
Depositarei este voto a favor de Orestes.
Não há nenhuma mãe que me gerou
[…]
sou sem reservas pelo Pai
[…]
Vence Orestes, ainda que empate
(Ésquilo, Oresteia, v. 734-741).

Após a contagem dos votos, o resultado do julgamento é anunciado por Palas Atenea. Orestes é absolvido da acusação — graças ao voto de Palas Atena — em virtude do empate na votação em 6 x 6. Na mitologia romana, em razão da latinização do nome da deusa grega, este voto de desempate é conhecido como o famoso “voto de Minerva”.

Com a palavra, agora, o ministro Celso de Mello.

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