Ajuste e aperfeiçoamento

A jurisprudência defensiva ainda pulsa no novo CPC

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6 de setembro de 2013, 7h11

A jurisprudência defensiva consiste, grosso modo, em um conjunto de entendimentos — na maioria das vezes sem qualquer amparo legal — destinados a obstaculizar o exame do mérito dos recursos, principalmente de direito estrito (no processo civil, Recursos Extraordinário e Especial) em virtude da rigidez excessiva em relação aos requisitos de admissibilidade recursal.

Criticada por ampla doutrina, a jurisprudência defensiva vinha encontrando abrigo, em maior ou menor medida, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, com base em fundamentos puramente pragmáticos: o excessivo número de recursos aportados ano após ano nos tribunais de cúpula.

Assim proliferaram orientações formalistas, como a inexistência de recurso interposto por advogado não regularmente constituído (em que pese o artigo 13 do CPC não fazer distinção a campo de sua aplicação); a exigência do número do processo de origem na guia de recolhimento das custas judiciárias, sem possibilidade de regularização; a impossibilidade de comprovação de feriado local após a interposição do recurso para os tribunais superiores; a intempestividade de de recurso interposto antes da publicação em diário oficial do acórdão recorrido e o não conhecimento de recurso especial não ratificado após o julgamento de embargos de declaração da parte contrária.

Relativo enfraquecimento, porém, vem sendo observado nos últimos anos na jurisprudência defensiva, em parte pelas inúmeras críticas doutrinárias, em parte pelo advento de institutos como a repercussão geral no Supremo Tribunal Federal, que têm possibilitado alguma redução do número de recursos distribuídos,[1] o que confirma ser a jurisprudência defensiva um artifício puramente pragmático).[2]

Assim é que, recentemente, por exemplo, asseverou-se possível a comprovação a posteriori de feriado local que importe ampliação do prazo para o Recurso Extraordinário ou Especial, como se vê em STF, RE 626.358 AgR, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, julg. 22.3.2012 e STJ, AgRg no AREsp 137.141, Corte Especial, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julg. 19.2.2012.

O número de recursos excepcionais, de todo modo, continua bastante elevado, assim como a jurisprudência defensiva persiste como obstáculo importante aos tribunais superiores, pulsando ainda forte nos julgados de nossos Tribunais.

O projeto do novo Código de Processo Civil, para resolver esse quadro de excessiva litigiosidade, aposta no fortalecimento da jurisprudência dos tribunais e em institutos como o incidente de resolução de demandas repetitivas, que amplia a técnica do julgamento por amostragem, a ser suscitado perante tribunal de justiça ou tribunal regional federal (artigo 988, § 1º). Ainda que de forma um tanto quanto tímida, busca igualmente estimular a atuação dos órgãos e agências reguladoras competentes para a fiscalização da prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, determinando que sejam comunicados do resultado do julgamento do incidente correspondente para que assegurem o efetivo cumprimento da decisão (artigo 995, § 2º).

Em que pese tratar-se de providências insuficientes para debelar o mal da morosidade na justiça brasileira — cujas verdadeiras causas vão muito além de uma simples reforma processual, passando pelas deficiências estruturais e de gestão do serviço público judiciário, pela formação excessivamente formalista e contenciosa dos profissionais do Direito e pela indevida utilização do Judiciário como instrumento de moratória da dívida pública —, há que se reconhecer que são propostas importantes e positivas.

Por outro lado, o projeto do novo CPC, de forma bastante elogiável, busca eliminar a famigerada jurisprudência defensiva do ordenamento jurídico brasileiro.

Destaque-se, nesse sentido, os seguintes dispositivos, ilustrativos dessa orientação do projeto do novo Código:

(i) art. 76, § 2º – deixa claro que o regramento do art. 13 do atual CPC se aplica à instância recursal, de modo que, em caso de incapacidade processual ou irregularidade de representação da parte, deverá o relator possibilitar a correção do vício em prazo razoável, antes que não conheça do recurso ou determine o desentranhamento das contrarrazões[3];

(ii) art. 218, § 4º – estabelece a tempestividade do ato praticado (interposição de recurso, por exemplo) antes do termo inicial do prazo;

(iii) art. 1020, § 2º – determina que o equívoco no preenchimento da guia de custas (como, por exemplo, a falta de referência ao número do processo na origem) não resultará na aplicação da pena de deserção, incumbindo ao relator, em caso de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício em cinco dias ou solicitar informações ao órgão arrecadador;

(iv) art. 1038 – admite o prequestionamento implícito ou virtual, no sentido de se considerar incluídos no acórdão recorrido, os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade;

(v) art. 1039, § 2º – afasta a necessidade de ratificação de recurso interposto anteriormente ao julgamento de embargos de declaração opostos pela parte contrária, desde que não se altere a conclusão do julgamento da decisão embargada[4];

(vi) art. 1042, § 3º – prevê que o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave (consunção processual), dispositivo este que, evidentemente, dependerá da conformação mais ou menos formalista da jurisprudência dos tribunais superiores;

(vii) art. 1045 – permite o aproveitamento do recurso especial e sua conversão em extraordinário, caso se considere que a insurgência versa sobre questão constitucional; e

(viii) art. 1046 – permite o aproveitamento do recurso extraordinário e sua conversão em especial para o Superior Tribunal de Justiça, caso o Supremo Tribunal Federal considere como reflexa a ofensa à Constituição nele veiculada, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado.

Em que pese todos esses aspectos positivos, a tramitação legislativa do projeto — concentrada em apenas alguns poucos dispositivos, como aqueles que dizem respeito ao efeito suspensivo automático da apelação — não acompanhou a recente evolução da jurisprudência e permitiu que um dos aspectos da jurisprudência defensiva persista no novo CPC.

Vale dizer: em pelo menos um dos pontos relacionados à jurisprudência defensiva, a aprovação do projeto tal como se encontra representará verdadeiro retrocesso.

Trata-se exatamente do ponto que diz respeito à comprovação do feriado local que acarreta a prorrogação do prazo recursal. Como já se viu, a jurisprudência mais recente do STF e do STJ têm admitido sua demonstração após a interposição do recurso. Tal orientação, no entanto, não foi observada no projeto, que assim dispõe em seu artigo 1007, parágrafo 2º:

§ 2º O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso.

Como se vê, mesmo em um dos pontos mais decantados pelos defensores do projeto, o texto ainda necessita de ajuste e aperfeiçoamento.

Para compatibilizar o projeto com a recente evolução da jurisprudência, extirpando mais este aspecto da jurisprudência defensiva, seria conveniente alterar o dispositivo, não somente para admitir a comprovação do feriado local após o ato de interposição, como também para ampliar sua incidência aos casos de suspensão do expediente forense. Eis a proposta:

§ 2º A ocorrência de feriado local ou suspensão de expediente forense na instância inferior poderá ser comprovada após o ato de interposição do recurso.

Tal alteração ao projeto do novo CPC, conquanto pontual, seria bastante positiva, tornando-o mais compatível com seus propósitos fundamentais. Aqui se encontra mais uma prova cabal, entre tantas outras já apontadas em escritos anteriores, da necessidade de aprofundamento dos debates antes que se ultime o processo legislativo.


[1] A repercussão geral do Recurso Extraordinário foi regulamentada pela Lei nº 11.418/2006, que passou a produzir efeitos a partir de 2007. Em 2006, foram distribuídos 116.216 processos no STF. No ano de 2007, o número ainda continuou bastante alto, atingindo 112.938 processos. A partir de 2008, esse número se reduziu para 66.873. Nos anos seguintes, houve ainda maior redução: 42.729 (2009); 41.014 (2010); 38.109 (2011) e 46.392 (2012). A maior redução de processos distribuídos coube justamente aos Recursos Extraordinários: 54.575 (2006); 49.708 (2007); 21.531 (2008); 8.348 (2009); 6.735 (2010); 6.388 (2011) e 6.042 (2012). Todos os dados se encontram disponíveis em http://www.stf.jus.br, menu “Estatística”, submenu “RE, AI e ARE – % Distribuído” (acesso em 30.8.2013).

[2] Nesse sentido, para promover semelhante redução no número de feitos distribuídos ao Superior Tribunal de Justiça, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012, que visa a alterar o art. 105 da Constituição e estender ao Recurso Especial o requisito da repercussão geral, de forma análoga à estabelecida para o Recurso Extraordinário.

[3] Buscando afastar o entendimento consolidado no Enunciado de Súmula nº 115 do STJ: “Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos.”

[4] Buscando afastar o entendimento consolidado no Enunciado de Súmula nº 418/STJ: “ É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação.”.

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