Justiça Tributária

Nossos sacrifícios não podem ser inúteis

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

2 de setembro de 2013, 8h00

Spacca
Somos defensores da Justiça Tributária e pregamos, com insistência, que pagar imposto é dever cívico e forma de promoção do bem comum. Mas o dever vai e o bem não vem, pelo menos não na mesma proporção.

Na história antiga há registros da destruição de imagens e templos de deuses que não atendiam os sacrifícios recebidos. Os nossos governantes certamente se julgam deuses e como tal exigem sacrifícios. Estes já não são bois ou carneiros, ou mesmo cabeças de soldados inimigos, mas são coisas mais valiosas: são partes importantes daquilo que ganhamos.

Se fizermos um cálculo criterioso do que pagamos de impostos no ano passado, certamente vamos nos espantar com o resultado. Uma família que gasta R$ 10 mil por mês, no fim do ano terá sacrificado não um boi, um carneiro ou a cabeça de um inimigo, mas um automóvel novo. A conta é simples: basta somar os impostos sobre o consumo e mais o que incidiu no rendimento.

Por tudo isso, não podemos permitir que os nossos sacrifícios, transformados em impostos, sejam desprezados e utilizados de forma indevida, seja em desvios criminosos que cotidianamente vemos divulgados na mídia seja empregados em gastos desnecessários ou inúteis.

Em todos os níveis de governo vemos, ao longo da nossa história, que os governantes (que se julgam deuses) dilapidam de forma vergonhosa os impostos arrecadados. Exemplos típicos de uso inadequado de nossos recursos são as verbas de propaganda destinadas apenas à promoção pessoal de políticos.

Municípios que alegam não ter verba para melhorar o ensino municipal, onde pessoas carentes enfrentam sérias dificuldades no atendimento da rede pública de saúde, cujas ruas não são bem cuidadas etc., atrevem-se a fazer mirabolantes campanhas televisivas, com o objetivo de enganar os desinformados, boa parte dos quais não lê jornais ou revistas.

Alguns desses municípios também se esforçam para enganar as pessoas, patrocinando festas supostamente populares, onde artistas de talento discutível são contratados a peso de ouro (superfaturado, é claro) para espetáculos de mediocridade absoluta, de gosto mais que duvidoso, onde crianças e adolescentes desde cedo deformam seus conceitos sociais e adotam comportamentos amorais, já que se incentiva o sucesso sem trabalho e o brilho falso das celebridades cuja mensagem artística limita-se aos glúteos e partes pudendas.

Nos estados não é muito diferente. Quem acaba de se eleger, imediatamente esquece-se das promessas de campanha, a não ser as que se referem à nomeação de seus acólitos. Repartidos os cargos, loteados os órgãos estatais, parte o governante para o único objetivo que move a maioria desses deuses de segundo grau: as próximas eleições.

Para alcançar o objetivo eleitoral, nos estados amplia-se um pouco a atuação deletéria vista nos municípios. Admitem-se obras superfaturadas, cujos exageros só são descobertos depois de muito tempo, como se nas repartições só existissem pessoas que ignoram os preços das coisas e não sabem fazer conta de coisa alguma.

Órgãos de controle ou de fiscalização, quando existem, pouco fazem, até porque muitos de seus integrantes foram nomeados pelos que deveriam ser fiscalizados. Mais uma vez são as raposas a tomar conta das galinhas, muito embora nesse terreiro ninguém tenha certeza quem é um bicho ou outro.

Em quase todos os estados as empresas mantidas pelo povo fazem publicidade desnecessária. Caso clássico são as empresas de saneamento, donas de monopólio, que anunciam suas obras e suas outras maravilhas, a um público que não pode utilizar serviços de outrem, ainda que o desejasse.

Fica a impressão de que as verbas publicitárias são utilizadas com outra finalidade que não seja a de realmente favorecer o anunciante. Não perece improvável que os beneficiários dessa farra feita com dinheiro público não tenham que, de alguma forma, reverter ao anunciante o exagero da inútil publicidade.

No topo desses imensos disparates, são idolatrados os deuses federais, aqueles que controlam nada menos que cerca de dois terços de toda a arrecadação nacional.

Tamanho volume de recursos entorpece a qualquer um, gerando a certeza do poder absoluto. Raríssimas pessoas estão mentalmente preparadas para suportar o assédio permanente de toda espécie de gente que se aproxima para tentar tirar uma lasquinha ou mesmo um grande pedaço do Estado. 
Tal ambiente pode tornar qualquer ser insignificante e medíocre num gigante megalomaníaco, sem qualquer noção de auto-crítica, sem o mínimo de senso do ridículo, desprezando qualquer coisa que vá  além do próprio umbigo.

Esse estado absurdamente pródigo, a ponto de pretender conceder benesses a todos, torna-se absolutamente inviável, na medida em que já se aproxima o momento em que todos desejarão ser funcionários públicos para perceber gordos proventos, aposentando-se com o menor tempo possível.

Nesse quadro já não bastam as reformas tributária e fiscal, mas torna-se imprescindível uma reforma geral do Estado, inclusive política, eliminando-se todos os mecanismos cuja permanência não se justifica neste século.

Nessa reforma o Brasil precisa ser visto em sua realidade, não sob a ótica de devaneios absurdos onde se pretenda um estado de castas, ignorando-se os princípios básicos da ética contemporânea. Não faz nenhum sentido, por exemplo, que servidores públicos, qualquer que seja o poder de que participem, alimentem o sonho de auferir salários estratosféricos, só porque tais valores são pagos em outros países, com economias totalmente diferentes que a nossa.

Já vimos afirmações de auditores do fisco que desejavam salários semelhantes aos dos seus colegas alemães. Ainda que o serviço seja similar, a realidade é diferente. Não há na Alemanha as carências sociais que temos aqui, as necessidades de investimentos que temos, enfim, trata-se de comparação totalmente descabida.

De igual forma inadequada  é a comparação que no Judiciário se fez entre os salários de nossos juízes e os pagos em Cingapura, pequeno país com cerca de 5 milhões de habitantes e renda anual per capita que gira em torno de US$ 50 mil e onde o Índice de Desenvolvimento Hhumano (IDH) está em 18º lugar na avaliação do planeta, enquanto o nosso amarga um 85º.

Tratam-se de países com economias, histórias, sociedades, tradições e necessidades totalmente diferentes. Assim, pretender que se pague ao juiz  daqui o mesmo que ao de lá parece ser uma brincadeira.

Diante disso tudo,  não resta a menor dúvida de que precisamos rever todos os nossos conceitos, revendo o grande estatuto social que regula nossa sociedade, que é a nossa Constituição. Isso, claro, passa pela questão dos servidores, pois não podemos admitir o país dividido em nobres e plebeus, os primeiros sendo os que ocupam cargos públicos e os últimos os que trabalham na iniciativa privada para sustentar aqueles e seus privilégios.

Por falar em privilégios, parece-nos que o primeiro, sem dúvida, seja a aposentadoria por tempo de serviço.

Os sacrifícios de toda a sociedade, através dos impostos, não pode se destinar a pagar vencimentos a pessoas que, ainda saudáveis, resolvam aposentar-se baseadas em supostos direitos adquiridos.

Numa reforma constitucional não há espaço a direitos adquiridos. Ora, o sistema previdenciário atual está baseado em cálculos antigos, onde se levava em conta expectativa de vida diferente da atual e compromissos sociais menores.

Chega a ser imoral, ainda que seja legal, o servidor público aposentar-se com proventos confortáveis e, não raras vezes, ser nomeado sem concurso para outro cargo público, ainda que num diferente nível de governo.

Em muitos países só há duas espécies de aposentadoria: por idade e por invalidez. E a idade,  no caso, não pode ser menor que 70 anos, aliás a mesma que serve para o afastamento compulsório do servidor.

Pensar na questão da aposentadoria sob o ângulo da Justiça Tributária não é  impróprio, pois os tributos são invariavelmente utilizados para cobrir o déficit da previdência. Há evidente sinergia entre essas questões: impostos cobrem o déficit previdenciário.

Também devem ser considerados inúteis os impostos que pagamos quando utilizados nos salários de servidores que nada fazem, especialmente quando não concursados. 

Deve-se respeitar, contudo, os servidores não concursados que trabalham seriamente e muitas vezes por salários ridículos. Isso existe aqui no estado de São Paulo, o que pior paga aos servidores que trabalham: professores, policiais, psicólogos, médicos etc.

Tais considerações levam-nos à conclusão de que a constituição de 1988 está velha e moribunda. São tantas suas normas ignoradas, que chega a ser difícil enumerá-las. Uma delas é o artigo que ordena a instituição do imposto sobre grandes fortunas. Muito já se debateu sobre o assunto, mas nada se resolveu.

Esperamos que o novo Congresso, a ser eleito no ano que vem, seja renovado não só de pessoas, mas sobretudo de ideias. O legislativo é o representante legítimo do povo na questão de elaboração de leis. Cabe-lhe o comando dessa árdua tarefa de reforma do estado. A nós, o povo, cabe a escolha criteriosa de seus representantes.

Infelizmente temos visto o crescimento de uma onda de descrédito em relação aos políticos que em nada melhora o país. Se há os que não honram o mandato recebido, é incrível que continuem se perpetuando em cargos obtidos pelo voto.

O que nos falta não é a crítica aos maus políticos, mas ações  positivas da sociedade no sentido de preparar novos quadros para assumir as vagas que se abrirão com o afastamento dos que hoje são criticados mas mesmo assim, beneficiados pela nossa omissão.

Só com uma educação que envolva também a de natureza sociológica e política, teremos uma verdadeira cidadania. Não basta ensinar a ler, escrever e calcular. Mais que tudo há de se incentivar a cultura. Só assim seremos um país civilizado e teremos uma sociedade evoluída, capaz de promover o bem comum que o preâmbulo da CF define mas a prática não viabiliza.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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