Decisão equivocada

Caso Donadon revela desrespeito à Justiça brasileira

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  • Camilo Zufelato

    é professor de graduação e de pós-graduação da FDRP-USP mestre em Master Universitario II Livello - Università degli Studi di Roma Tor Vergata e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco) e coordenador do Observatório Brasileiro de IRDRs da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

2 de setembro de 2013, 17h16

Que existe um notório descompasso entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário no Brasil não se discute. De fato, o processo recente de ampliação de direitos, operado sobretudo pela Constituição de 1988, tem permitido que juízes decidam sobre temas que até pouco tempo atrás era do domínio exclusivo dos demais poderes, num juízo de discricionariedade pura do administrador público que atualmente está em profunda crise com a denominada judicialização da política.

No âmbito do STF essas tensões ficam ainda mais evidentes, já que esse é o guardião da Constituição e emergem inúmeras discussões acerca das possibilidades e limites do controle judicial de políticas públicas. Mas, segundo o modelo constitucional brasileiro, a essa Corte não cabe somente apreciar matérias que envolvam discussões estritamente constitucionais: o Supremo tem também competência em matéria penal, tanto originária quanto recursal.

Num país em que a corrupção é fenômeno entranhado na vida política, inclusive nos mais altos cargos do governo federal, não é de se estranhar que o Supremo enfrente colisões, sejam políticas, sejam jurídicas, com membros do Poder Legislativo também em matéria penal. O famigerado mensalão é o melhor exemplo disso.

Contudo, na última semana o caso, também de natureza penal, que colocou em evidência a tensa relação entre os dois poderes, que a princípio era de impacto social bem menor — mesmo se tratando da primeira execução de pena de parlamentar em exercício determinada pelo Supremo —, muito embora pudesse configurar uma antecipação daquilo que o Congresso poderia também fazer no caso dos mensaleiros: o deputado federal Donadon, sem-partido RO, já cumprindo pena pela condenação excelsa, teve mantido seu mandato como deputado por seus pares, na Casa das Leis.

Para alguns o ocorrido só se deu porque o STF não teria expressamente declarado a perda do mandato do parlamentar na própria condenação, de modo que a cassação do deputado não seria imediata, mas sim após votação pela Câmara dos Deputados.

Na relação entre a condenação penal transitada em julgado oriunda do STF, e a não cassação do mandato do deputado, tecnicamente culpado por formação de quadrilha e peculato a 13 anos de prisão, fica mais do que evidente a tensão e a descompasso entre os Poderes. Se para alguns casos é razoável cogitar-se de politização excessiva do Judiciário, no caso Donadon não há o menor cabimento: o que existe, além de um corporativismo vergonhoso e inexplicável, que passa também pela votação secreta da matéria, é um flagrante desrespeito às instituições jurídicas do país, especialmente o STF, e sobretudo um aviltamento à Constituição da República.

Com a decisão de manutenção do mandato do parlamentar que já cumpre pena em regime fechado, a Câmara dos Deputados, a um só tempo, viola uma série de mandamentos constitucionais. O equívoco fundamental está, em realidade, na própria votação realizada pelo Legislativo, que deveria ter dado cumprimento imediato à decisão do STF naquilo que lhe competia, inclusive por imposição constitucional.

A perda de mandato parlamentar pode se dar de dois modos: uma automática, na qual é mera consequencia da violação de direitos já previamente reconhecida na esfera judicial; a outra dependerá da análise, pelo Legislativo, dos fatos imputados ao parlamentar e que poderiam gerar, segundo o juízo de seus pares, a cassação do mandato. Só poderá haver votação e deliberação na segunda situação, podendo o parlamentar perder ou não o mandato após a definição soberana da própria Casa.

No caso Donadon a decisão penal condenatória com trânsito em julgado do STF gera a cassação dos direitos civis, nos termos do artigo 15, III, da Constituição Federal. E é também a Constituição que determina, artigo 55, que perderá o mandato o Deputado ou Senador: “VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.” Note-se que a Constituição não diz que poderá perder o mandato, mas sim que perderá.

É preciso deixar claro que a condenação penal definitiva é muito diferente da cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar. Nessa última hipótese sim os deputados e senadores podem avaliar se o comportamento do parlamentar é incompatível com o decoro que lhe é exigido.

Ou seja, a perda de mandato de parlamentar, na relação entre os dois Poderes constituídos, tem sentidos diferentes de acordo com o seu fundamento: se houver investigação ou processo judicial em curso para apurar ou julgar conduta criminosa, a Câmara ou o Senado poderá cassar o mandato do parlamentar por quebra de decoro; se, contudo, a conduta delituosa está reconhecida em condenação transitada em julgado, não, a perda do mandato é inexorável imediata.

Teria, então, se equivocado o STF ao não cassar imediatamente o mandato de Donadon? Não, pois tal ato é de competência exclusiva da mesa da Câmara dos Deputados, uma vez que o mandato de parlamentar está a ela vinculado. O erro foi da própria Câmara ao ter submetido a cassação à votação dos parlamentares quando esses nunca poderiam deliberar se a condenação penal com trânsito em julgado leva ou não a perda de mandato: essa é certa.

Nessa hipótese a perda do mandato é um ato administrativo complexo, que se inicia com a decisão imutável do Judiciário e se perfaz com a decisão do Legislativo, que simplesmente declara a perda. Em outros termos, deve haver total vinculação da mesa da Câmara dos Deputados à decisão do STF, sob pena do cabimento de reclamação ao próprio STF.

Se em outros casos a relação entre Judiciário e Legislativo gera problemas de difícil solução quanto à prevalência de um ou de outro, no caso Donadon, muito pelo contrário. Por se tratar de matéria penal não há qualquer dúvida sobre a prevalência da decisão judicial final que leva à perda do mandato parlamentar. No mensalão o Supremo deixará registrado que os réus parlamentares devem perder seus mandatos. A rigor isso deveria ser totalmente didático, ilustrativo, mas, com o precedente Donadon parece fazer sentido o comando.

Em suma, a decisão do presidente da Câmara em submeter à votação a perda do mandato do deputado Donadon, além de tecnicamente equivocada e eivada de inconstitucionalidades, em realidade revela profundo desrespeito à Justiça brasileira.

O resultado da votação que manteve o mandato de Donadon choca pelo caráter dos seus pares, ao manterem ocupando o Legislativo um homem que se encontra cumprindo pena em regime fechado; mas choca ainda mais o desrespeito institucional da Câmara dos Deputados pela decisão final condenatória do órgão máximo do Judiciário brasileiro. Sem dúvida é o caso de cabimento de Reclamação Constitucional ao STF.

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