Experiência francesa

"É inaceitável esperar anos por uma decisão judicial"

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27 de outubro de 2013, 12h24

Responsável por mudanças significativas no Judiciário francês o presidente do Conselho Constitucional da França, Jean-Louis Debré, esteve no Brasil para apresentar a experiência francesa a advogados e ministros brasileiros, entre ele o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

Em entrevista ao repórter Pieter Zalis, da revista Veja, Debré admitiu ser um admirador do Judiciário brasileiro e disse que veio também para aprender. O presidente do Conselho Constitucional da França apontou o excesso de ações nas cortes supremas como um dos principais problemas e afirmou que é preciso que os julgamentos sejam mais rápidos. “Com o ritmo acelerado da vida de hoje é inaceitável esperar dois, três ou quatro anos para uma decisão”, diz.

Durante seu mandato Jean-Louis Debré adotou a “questão prioritária constitucional”, que permite que o Judiciário passe a debater decisões do Legislativo, o que era vedado historicamente. Ele também impôs prazos para o julgamento de processos e simplificou as sentenças, para torná-las compreensíveis mesmo para os cidadãos pouco afeitos à linguagem jurídica. “Estamos nos aproximando de países como Brasil e Estados Unidos. A sociedade francesa não estava acostumada a questionar a decisão de representes eleitos”, afirma. Debré foi ministro do Interior do governo de Jacques Chirac e presidente da Assembleia Nacional, o Congresso francês, entre 2002 e 2007.

Leia abaixo a entrevista concedida à Veja:

O senhor veio ao Brasil para apresentar a questão prioritária de constitucionalidade. O que é exatamente esse projeto?
A Corte Constitucional francesa não podia arbitrar sobre uma lei já aprovada pela Assembleia Nacional. Com a questão prioritária de constitucionalidade, isso foi permitido. Não estávamos habituados, como no Brasil, a essa análise posterior da lei pelo Judiciário. Herdamos da Revolução Francesa o princípio de deixar a lei ao poder dos representantes políticos eleitos pelo povo.

Quais foram as consequências dessa mudança?
Reforçamos o princípio de a liberdade ser um direito fundamental que deve ser protegido. Um exemplo: quando uma pessoa era abordada pela polícia, só tinha direito a um advogado depois de duas horas. Agora, se não há a presença imediata de um advogado o processo é anulado.

O senhor disse que veio aprender com a Justiça brasileira. O que há para ensinar por aqui?
Tenho muita admiração por essas decisões coletivas e públicas no Brasil. Mas acho que não estamos prontos para isso na França. As deliberações na Justiça francesa são fechadas e só é tornada pública a decisão final, sem que o voto de cada magistrado seja revelado. Acredito que é extremamente democrático haver juízes deliberando para o público, mas eu penso que na França isso iria retardar as decisões, já que temos uma paixão pela discussão.

O Congresso brasileiro tentou aprovar uma emenda constitucional que dá poder ao Legislativo de arbitrar sobre algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. O senhor já foi presidente da Assembleia Nacional e agora é presidente da Corte Constitucional. Qual poder é mais eficiente para garantir o bom uso da Constituição?
Eu não posso dizer o que é eficaz para a Constituição do Brasil. Na França, após a decisão do Conselho Constitucional, não há mais discussão possível. Tivemos grandes debates, por exemplo, para saber se permitiríamos ou não que mulheres andassem cobertas pela burca. Foi uma discussão extremamente difícil, que exaltou os ânimos dos franceses. O Parlamento votou uma lei que impediu o uso da burca em público. A lei foi contestada e a Corte indicou que essa lei era constitucional. Pronto, acabou. É proibido usar burca em público.

Foi legal deportar a estudante cigana Leonarda Dibrami para o Kosovo durante uma excursão da escola, como aconteceu semana passada?
Não podemos misturar. Eu não sou de uma jurisdição política. Uma vez que o governo decidiu expulsar a estudante, fez por um ato de governo e não cabe a mim, como membro do Judiciário, formular hipóteses.

Esse caso evidencia o problema da xenofobia na Europa. Como enfrentá-lo?
A xenofobia sempre existiu. Na história do mundo, sempre houve o olhar do estrangeiro e as reações xenofóbicas. Quando você está num mundo totalmente aberto, você terá com certeza problemas que se exacerbam, como a xenofobia, o racismo e o antissemitismo. Cabe a todos os governos e às Cortes Constitucionais lutar contra isso.

Diferentemente do senhor, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, costuma dar declarações sobre política. O que o senhor acha desse estilo?
Cada um tem sua tradição. Na França, os membros do Conselho Constitucional não estão lá para fazer comentários políticos. Estamos lá para dizer o que é a lei e se há liberdade. Para dar autoridade a nossas decisões, para que o presidente do Conselho Constitucional não seja suspeito de estar ligado a um grupo político, há um princípio marcado no texto que é a não intervenção na vida política.

As cortes supremas normalmente são compostas por indicações políticas. No Brasil, quem escolhe é apenas o presidente da República. Na França, as nomeações dividem-se entre o Senado, a Assembleia e o presidente. Esse sistema torna a corte mais equilibrada?
Todas as nomeações do Supremo são políticas, independente do país. Numa democracia, os eleitos pelo povo têm o direito de nomear. Apesar disso, temos que julgar com independência, sem ceder às pressões de políticos nem da opinião pública. A opinião pública não é um elemento jurídico.

Qual o principal problema do Judiciário pelo mundo?
As cortes supremas estão completamente atoladas. Demoram dois anos ou três anos para julgar cada processo. A Corte Europeia chega a levar cinco anos para ter uma decisão. Quando eu coloquei em prática a questão prioritária de constitucionalidade, tinha três objetivos. O primeiro era implementar um processo contraditório, no qual os advogados e os membros do governo deveriam ser escutados. Queria também dar um prazo máximo de três meses para as decisões, porque com o ritmo acelerado da vida de hoje é inaceitável esperar dois, três ou quatro anos para uma decisão. Por fim, queria que nossas decisões fossem facilmente compreendidas. Nós tínhamos muitas decisões jurídicas com mais de cinquenta páginas. Apenas os especialistas entendiam. Nossas decisões agora devem ser mais simples e ter até dez páginas.

Há um excesso de recursos no Brasil, o que provoca uma lentidão extrema. Como é na França?
Na França, as decisões do Conselho Constitucional não são cabíveis de recurso. O fato de tomarmos decisões em até três meses impossibilita qualquer tipo de recurso. Quanto mais longo um julgamento maior a possibilidade de recursos e de lentidão.

Como reduzir os gastos e aumentar a eficácia de uma corte?
Há coisas que vejo em outros países e não quero ver na França. Os membros do conselho francês não têm assessores. Há nove membros, um secretário-geral, um serviço jurídico e um serviço de documentação. No total, são 65 membros. Assessores influenciam e retardam a decisão. Quanto mais gente há, maior são as interferências nas decisões e mais elas tornam-se complexas.

É possível ter uma corte eficiente quando há 49 mil decisões em um semestre, como no Brasil?
Não quero que o Conselho Constitucional tome milhares de decisões. Pode ser 50 ou 200, não sei qual o número correto. Se nós temos milhares e milhares de decisões, não somos mais acessíveis e eficientes.

Os mandatos dos membros da corte francesa têm nove anos. Já no Brasil, os ministros só se aposentam aos 70 anos. Qual a vantagem do mandato com tempo definido?
É importante garantir a independência dos membros do Conselho Constitucional. Nove anos é bom porque as outras instituições do estado têm um mandato mais curto. O mandato do presidente da República e do Parlamento têm cinco anos. Um membro do Conselho Constitucional terá forçadamente presidentes diferentes. Assim, saímos do tempo político. Além disso, para julgar a lei, o cargo de juiz da lei deve ser uma ocupação temporária e não deve ser uma ocupação profissional.

No Brasil há membros que estão há mais de 20 anos no Supremo…
Eu não dou lição para as pessoas. Cada país tem sua cultura, o direito é a expressão da alma de um país. Se o Brasil tem outras regras e ao país convém, é perfeito. O importante é que essas instituições sejam feitas de juízes que não tenham outra missão do que julgar. As instituições precisam ficar fora da política.

Pode-se censurar um livro com o argumento da vida privada?
Se um autor francês desejar escrever uma biografia sobre Serge Gainsbourg, ele terá que pedir autorização da família? Na história da Justiça, há inúmeros processos sobre obras. Nós julgamos a lei, não um livro. O princípio é de respeito à vida privada. Se qualquer um escreve um livro que respeita a vida privada, não tem problema. Nós não queremos que uma lei questione esse princípio. 

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