Direito ao silêncio

É direito do acusado responder as perguntas que quiser

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23 de outubro de 2013, 12h05

Situação real, ocorrida no decorrer da última semana durante audiência realizada em uma das varas criminais de Brasília: o réu acabara de responder a todas as perguntas feitas pelo juiz da causa em seu interrogatório, oportunidade em que a palavra foi passada ao promotor de Justiça para que fizesse seus questionamentos.

O acusado, porém, afirmou que apenas responderia ao Juiz e seu Advogado. Foi quando o promotor fez questão de registrar um “requerimento em Questão de Ordem” no sentido de que as perguntas da defesa “também fossem indeferidas”, já que ao acusado não seria facultado “selecionar” as perguntas que queria responder.

Continuou aquele representante do Ministério Público afirmando que, a partir do momento que passou a exercer seu “direito constitucional ao silêncio”, o réu não mais poderia responder as perguntas que quisesse, ou seja, seu silêncio deveria valer para todos os questionamentos futuros, mesmo os de sua defesa. Em suma, por mais bizarro que possa parecer, este foi o “requerimento” formulado naquela assentada pelo órgão ministerial.

A impressão que se deu é que tanto o juiz da causa quanto todos os advogados (mais de uma dezena se contados todos os réus) aguardavam que o senhor promotor de Justiça justificasse as razões que o levavam a pensar daquela forma, porém, o “requerimento” parou ali. O entendimento do Ministério Público ali era aquele e pronto, sem qualquer razão jurídica que o sustentasse.

O desfecho da audiência será contado ao final do presente ensaio. Por ora, o advogado que vos fala prefere contar as reflexões que vieram a sua cabeça em relação ao vulgarmente chamado direito ao silêncio enquanto o promotor ditava seu “requerimento”, afinal de contas, quem sabe estivessem os advogados presentes na audiência equivocados e desatualizados em relação ao tema e existissem elementos que justificassem doutrinariamente aquele pedido, embora o representante do Parquet não os tivesse ainda externado?!

E os primeiros pensamentos foram remetidos logo para a nossa Constituição Federal, mais especificamente para o rol de cláusulas pétreas do artigo 5º, onde se encontra disposto no inciso LXIII que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Isto para não falar na Convenção Americana de Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica —, ratificada em nosso país desde 1992; e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; ambos diplomas internacionais aos quais se submete nosso país.

Foram logo lembradas também as primeiras aulas de direito constitucional e processual penal, ainda nos bancos da faculdade, quando os mestres da época já explicavam que o chamado direito ao silêncio nada mais é do que a manifestação mais comum da expressão latina nemo tenetur se detegere, que encontra sua tradução literal em “ninguém é obrigado a ser descobrir” e estabelece que ninguém é obrigado a produzir prova si mesmo.

Seguiram elas (as lembranças) para alguns anos mais tarde, rememorando os tempos de estudos em terras lusitanas, onde se ouvia constantemente do brilhante professor Canotilho que as normas constitucionais referentes a garantias fundamentais devem ser interpretadas sempre da forma que as tornar mais efetivas; ou de Figueiredo Dias, para quem “embora não tenham exatamente o mesmo conteúdo, o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação estão incindivelmente ligados”.

Veio à mente também uma noite em que este autor saiu do Supremo Tribunal Federal, às 2 horas da manhã, com uma liminar deferida pelo ministro Celso de Melo em HC impetrado naquela corte, pela qual se permitiu a determinada pessoa o direito de silenciar com relação a perguntas que lhe seriam formuladas na manhã seguinte em conhecida CPMI realizada no Congresso Nacional.

Não foi possível, da mesma forma, ignorar o famoso e histórico caso Miranda v. Arizon, julgado em 1966 pela Suprema Corte Americana, onde se anulou uma prisão que não foi precedida do alerta de que a pessoa não seria obrigada a responder quaisquer questionamentos da autoridade policial que o prendia. Lembrou-se, outrossim, que até na antiga redação do artigo 186 do Código de Processo Penal, pelo qual era disposto que "antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa", se respeitava o direito ao silêncio, embora àquela época apenas ao juiz fosse facultado formular perguntas ao acusado.

Não foi possível também ignorar as centenas de precedentes do nosso Supremo Tribunal Federal, desde que promulgada a Constituição Federal, dando ampla efetividade à referida garantia, dentre eles merecendo citação, por ser dos mais elucidativos acerca da matéria, um de relatoria do ministro Celso de Melo, onde restou consignada a seguinte ementa: "O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado" (STF, HC n. 79.812, rel. Min. Celso de Mello, DJU de 16.2.2001)

Precedente este baseado também em autores atuais, dentre os quais se destaca Aury Lopes Junior quando nos ensina que o princípio da não auto-incriminação decorre não só de poder calar no interrogatório, como também do fato de o imputado não poder ser compelido a participar de acareações, de reconhecimentos, de reconstituições, de fornecer material para exames periciais, tais como exame de sangue, de DNA ou de escrita, incumbindo à acusação desincumbir-se do ônus ou carga probatória de outra forma.

E no Código de Processo Penal atual? Imediatamente lembrou-se este autor de ter orientado inúmeros clientes seus com base no artigo 186 do Código de Processo Penal, onde previsto que "depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.

E aí, em meio a todas estas recordações e reflexões, encerrou-se o requerimento do promotor. O estarrecimento tomou conta de todos, especialmente pelo fato de que o “requerimento” foi encerrado pelo senhor promotor afirmando que “o Ministério Público, portanto, não concorda com a seletividade do acusado em responder apenas o que lhe convém”. Todos esperaram, em vão, a fundamentação daquela última assertiva.

Até poderia o ilustre promotor ter argumentado — mas não o fez —, embora não tivesse qualquer influência na discussão aqui posta — mas ao menos tentaria de alguma forma fundamentar o requerimento —, que o direito de não produzir prova si mesmo possui um alcance amplo no nosso país; que há julgados no sentido de restringir o direito de mentir dos acusados, podendo medida do tipo configurar o crime de falsa identidade em determinadas situações; que já houve críticas contundentes ao princípio feitas no passado por autores como Beccaria e Bentham, para quem impedir a produção da prova contra si mesmo feriria a possibilidade maior de se obter a confissão, então tratada como rainha das provas; enfim, utilizar algum destes argumentos para justificar a pretensa impossibilidade de “seleção” por parte do acusado das perguntas a que queria responder.

Nada disso, porém, foi feito. O silêncio, então, imperou na sala de audiência até ser quebrado pelo Juiz, que indeferiu aquele “requerimento” dizendo que poderia fundamentar sua decisão em inúmeros argumentos que seriam dispensáveis e soltou um sonoro “o réu responde o que ele quiser doutor”, em seguida formalizando suas razões.

Naquele momento todos na sala — exceto o promotor — sentiram-se aliviados e perceberam que o desatualizado ali era alguém que não eles; que continuam a viver em um estado Democrático de Direito; que as garantias constitucionais continuam a ser preservadas; que a lei é para ser cumprida; enfim, que o acusado permanece, sim, a ter em seu favor o direito ao silêncio, de não produzir prova contra si próprio e, especialmente, de “selecionar” os questionamentos que pretende responder.

E a audiência? Ah, encerrou-se com uma grande gargalhada de todos, inclusive do juiz, com o último comentário do promotor, que foi mais ou menos assim: pelo que os doutores estão falando, parece que estão partindo do princípio que o Ministério Público está aqui para condenar e não como fiscal da lei. É, pelo teor do brilhante “requerimento”, parece que a intenção é realmente esta. Triste. Torçamos para que o posicionamento seja isolado e não da instituição Ministério Público.

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