Doutrina Parot

Mudança jurisprudencial não retroage, diz corte europeia

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23 de outubro de 2013, 10h02

O princípio da não retroatividade vai fazer com que dezenas de presos sejam soltos na Espanha, entre eles, terroristas do ETA, grupo separatista basco. A Corte Europeia de Direitos Humanos derrubou a aplicação retroativa da chamada Doutrina Parot, que garantia que presos cumprissem 30 anos atrás das grades, sem direito à remissão da pena.

A decisão da Corte Europeia foi anunciada na segunda-feira (21/10) e já nesta terça (22/10) começou a produzir efeitos. A Audiência Nacional da Espanha, como é chamada o tribunal superior espanhol, mandou soltar Inés Del Río Prada, condenada a mais de 3 mil anos por atentados terroristas (clique aqui para ler a decisão em espanhol). A liberdade de Inés atende à determinação dos juízes europeus, que também ordenaram que ela recebesse 30 mil euros (cerca de R$ 90 mil) de indenização por ter ficado presa ilegalmente desde julho de 2008.

A doutrina Parot recebeu esse nome em referência a Henri Parot, um militante do ETA que foi condenado a 4,8 mil anos de prisão. A tese marcou uma mudança fundamental de jurisprudência no Direito espanhol, ao propor uma nova interpretação à pena máxima de 30 anos prevista no Código Penal de 1973 do país.

Por mais de três décadas, a Justiça espanhola entendeu que a remissão da pena devia ser calculada sobre o máximo de 30 anos, e não sobre a pena total aplicada. Por esse entendimento, uma pessoa na situação de Inés Prada, condenada a mais de 3 mil anos, podia sair da cadeia antes mesmo de cumprir os 30, caso trabalhasse e conseguisse remir anos da pena.

Em 2006, a Suprema Corte da Espanha reabriu a discussão, ao julgar um recurso de Parot, e propôs uma nova interpretação. Na ocasião, os juízes definiram que a remissão deve ser calculada sobre o total das penas aplicadas. Quer dizer, no caso de Inés, por exemplo, todos os dias que ela trabalhou enquanto presa deveriam ser descontados dos 3 mil anos, e não dos 30 anos. Na prática, isso significa que ela nunca conseguiria remir nada e acabaria tendo de cumprir os 30 anos atrás das grades.

Com a mudança de jurisprudência, Inés, que havia conseguido remir nove anos da pena e, depois de 21 anos presa, deveria ter sido solta em julho de 2008, foi avisada de que só recuperaria sua liberdade em 2017, quando cumprisse as três décadas na cadeia. Depois de tentar reaver o cálculo em todas as instâncias da Justiça espanhola, Inés recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos.

O tribunal europeu já havia julgado a apelação favorável à terrorista em julho de 2012, mas o governo da Espanha apelou à câmara principal de julgamentos da corte. Nesta segunda, a câmara anunciou sua decisão, que é definitiva e não pode mais ser revista (clique aqui para ler em inglês).

Os juízes europeus consideraram que a aplicação retroativa da nova jurisprudência violou a segurança jurídica. Para eles, desde a década de 1970, a previsão da pena máxima no Código Penal vinha recebendo o mesmo tratamento da Justiça. O entendimento sobre a remissão ser calculada em cima dos 30 anos já havia sido consolidado pela Suprema Corte do país e era aplicado por toda a Justiça.

Não havia como a condenada prever a mudança repentina, considerou a corte. Os juízes equipararam a aplicação do novo entendimento para modificar a data da sua liberdade como uma punição não prevista em lei nenhuma, o que viola o artigo 7 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Uma vez firmado esse entendimento, o tribunal considerou que Inés estava presa ilegalmente desde julho de 2008, ou seja, mais de cinco anos de prisão indevida. Por conta disso, a corte aplicou um dispositivo pouco usado pelos juízes, que é o artigo 46. Por esse dispositivo, os julgadores europeus podem determinar qual atitude deve ser tomada pelo país violador de direitos fundamentais. Foi com base nele que a corte determinou a imediata soltura da Inés. Na maioria dos casos, o tribunal apenas constata a violação, fixa uma indenização a ser paga para vítima e fica a cargo da Justiça do país aplicar o julgamento europeu.

Efeito cascata
O julgamento da Corte Europeia de Direitos Humanos tem efeito prático apenas para o caso de Inés Del Río Prada, mas a Espanha terá de aplicar o entendimento para todos os outros condenados na mesma situação caso queira evitar uma avalanche de ações e condenações por violação de direitos fundamentais. De acordo com notícia do jornal espanhol El País desta quarta-feira (23/10), o governo deve se reunir com as associações de vítimas para explicar a questão jurídica envolvida.

Desde segunda, quando foi anunciado o veredicto do tribunal europeu, associações de vítimas do movimento ETA têm se mobilizado pedindo ao governo que não aplique a decisão da corte europeia para outros casos. Em um comunicado, a Fundación de Victimas Del Terrorismo se mostrou indignada com a decisão que derrubou a aplicação retroativa da Doutrina Parot. O grupo considerou o julgamento europeu um desrespeito às famílias daqueles que foram mortos pelo ETA. Já a Asociación Victimas Del Terrorismo convocou uma manifestação para o próximo domingo (27/10), em Madri, para pedir Justiça.

O ETA (Euskadi Ta Askatasuna, em basco) foi fundado no final da década de 1950. A principal reivindicação do grupo é a formação de um país independente basco, que englobaria a região nordeste da Espanha e um trecho da região noroeste da França. Desde a sua fundação, dezenas de atentados terroristas, que deixaram centenas de mortos e milhares de feridos, foram atribuídos ao movimento separatista.

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