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Retroatividade benigna deve ser verificada caso a caso

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23 de outubro de 2013, 7h00

É a natureza jurídica da sanção que determina o regime jurídico a que ela se sujeita e, consequentemente, os limites quantitativos e qualitativos a ela aplicáveis, bem como as garantias que serão oponíveis por parte daqueles que sofrem a sua imposição[1].

O que define essa natureza não é a função que a pena exerce (que pode ser repressiva, indenizatória, didática ou preventiva), mas o ilícito que lhe é pressuposto.

Nesse passo, a sanção relativa a infrações ou ilícitos tributários tem natureza específica tributária[2] e, consequentemente, a sua aplicação deve ser feita à luz dos princípios, regras e limites quantitativos e qualitativos previstos nas normas que também tenham essa natureza.

Mas, isso não quer dizer que não devam ser mantidas e também aplicadas as garantias e os limites previstos no Direito Penal, na medida em que esse ramo do direito tem mais maturidade no tratamento do ilícito. Tanto assim, que princípios e institutos muito semelhantes (e, por vezes, idênticos) norteiam a aplicação de ambas as normas, as penais e as tributárias.

Em ambos os ramos do Direito, por exemplo, o princípio da legalidade (segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei) é enfatizado para impossibilitar a cobrança de tributo (e suas penalidades) ou a aplicação de pena que não tenham sido previamente previstos em lei.

O reforço da aplicação desse princípio no Direito Penal tem por fundamento a demonstração inequívoca de que, para que determinado comportamento seja considerado passível de aplicação de penalidades (a ponto de poder retirar a liberdade daqueles que o adotam), a sociedade terá que se manifestar nesse sentido por meio dos seus representantes legitimamente eleitos. Os ilícitos penais nada mais são, portanto, do que comportamentos repudiados pela sociedade que, se praticados, ensejam a aplicação de penas.

Já no que concerne à cobrança de tributos, o reforço ao princípio da legalidade se justifica pela necessidade de que a sociedade autorize o poder público a retirar uma parcela da sua riqueza para financiar as atividades necessárias à manutenção do bem comum[3]. Em outras palavras, a Constituição protege o direito de propriedade, mas autoriza que parcela do patrimônio do contribuinte seja expropriada de forma a que seja atendida aquela finalidade. No que diz respeito a penalidades tributárias, há regra expressa no sentido de que somente lei poderá estabelecê-las (CTN, artigo 97, inciso V), e os fundamentos para essa necessidade são os mesmos que a justificam no Direito Penal.

Por se tratar de regras para as quais há a determinação (reforçada) de que elas sejam criadas por meio de lei (e jamais por um ato proveniente do Poder Executivo), há ainda, em relação a esses dois ramos do Direito (Penal e Tributário), a necessidade de que se observe o princípio da tipicidade, pelo qual somente as práticas ou situações que se adequem literal e especificamente ao tipo legal podem ser configuradoras de crime ou consideradas fato gerador da obrigação de pagar tributos.

Outros institutos que demonstram muita semelhança são o do arrependimento eficaz, no Direito Penal, e o da denúncia espontânea, no Direito Tributário.

Pelo primeiro deles, o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na execução do ilícito ou impede que o seu resultado se produza, só responde pelos atos já praticados. Na denúncia espontânea, a responsabilidade por infrações é excluída, quando acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo, sendo certo que não se considera espontânea a denúncia que é apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo relacionado com a infração.

São ambos institutos que objetivam evitar a aplicação de penalidades àqueles que efetivamente impediram que das suas práticas decorresse dano à vítima ou ao Erário, respectivamente.

Outra regra que impõe limites à aplicação das sanções penais e encontram absoluta identidade com as previstas na legislação tributária é a da interpretação mais favorável ao contribuinte infrator, pela qual a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se daquela forma em caso de dúvida quanto: à capitulação legal do fato; à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; e à natureza da penalidade aplicável ou à sua graduação (CTN, artigo 112).

Há, por fim, a regra da retroatividade benigna prevista em ambos os ramos do Direito, pela qual a lei se aplica a ato ou fato pretérito, quando deixe de defini-lo como infração, ou quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática (CP, artigo 2º, parágrafo único, e CTN, artigo 106, inciso II, alíneas “a” e “c”).

Como o título deste artigo sugere, nós nos ateremos a essa última regra para examinar as alterações promovidas pela Lei 12.766/2012 relativas às penalidades aplicáveis ao descumprimento de normas relativas à escrituração digital. Essas penalidades eram antes previstas pela Lei 8.218/1991, com a redação que lhe fora dada pela MP 2.158-35/01.

À época da edição dessa lei (12.766/12), noticiou-se na imprensa que ela teria trazido benesses aos contribuintes, na medida em que as penalidades nela referidas seriam menos gravosas do que as antes aplicáveis.

Contudo, do exame das referidas normas, verificamos que essa característica (de serem as novas penalidades mais brandas do que as anteriores) só pode ser constatada na sua aplicação prática, tendo em vista que são distintos os critérios e parâmetros utilizados pela lei anterior e pela atual para os respectivos cálculos.

De fato, as penalidades anteriores relativas à entrega extemporânea daquelas informações eram apuradas com base na aplicação de percentual sobre a receita bruta no período de apuração, enquanto as novas penalidades passaram a ser aplicáveis em valores fixos. Já no que diz respeito aos erros e omissões relativos às informações prestadas, as antigas penalidades resultavam da aplicação do percentual de 5% sobre o valor da operação, e as novas passaram a ser calculadas mediante a aplicação de 0,2% sobre o faturamento mensal.

São parâmetros não comparáveis em tese, já que, no primeiro caso, os valores fixos (nova penalidade) podem ser maiores ou menores do que o percentual sobre a receita bruta no período de apuração, bem como, no segundo caso, tendo em vista a diversidade da natureza das bases de cálculo sobre as quais recaem o antigo e o novo percentual (valor da operação e faturamento), a nova penalidade poderá ser maior ou menor, conforme os valores envolvidos num caso e noutro (se, por exemplo, o valor da operação for ínfimo, 5% dele poderá ser muito inferior do que decorrerá da aplicação de 0,2% sobre o valor do faturamento mensal).

A questão que então se põe é a seguinte: tendo em vista a impossibilidade de constatação abstrata do aumento ou diminuição da intensidade das penalidades aplicáveis àquela infração, seria, ainda assim, possível a aplicação da regra da retroatividade benigna em situações de fato específicas, em que restasse demonstrado que a aplicação da nova norma resultaria em pena menos gravosa do que a anterior? Em outras palavras, a aplicação da regra da retroatividade benigna dependerá sempre da diminuição da pena em abstrato, ou poderá decorrer do exame da situação fática em cada caso?

A meu ver, impõe-se o exame da situação fática para que se constate a possibilidade de aplicação da retroatividade benigna, independentemente de ter ou não havido a diminuição da pena em termos absolutos (em abstrato).

Situação muito semelhante foi examinada pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida em 12 de maio de 2010, no âmbito do Direito Penal, que, como vimos, deve sempre orientar a melhor interpretação que deva ser dada a matéria dessa natureza.

Tratava-se, no caso, da pena aplicável ao crime de tráfico de drogas (Embargos de Divergência em REsp 1.094.499, relatado pelo ministro Félix Fischer). Até 2006, o referido crime estava submetido à Lei 6.368/1976, que estabelecia pena de reclusão de 3 a 15 anos, sem previsão de qualquer redução da pena mínima. Contudo, com a edição da Lei 11.343/2006, embora a pena cabível tivesse sido majorada (passando a ser de 5 a 15 anos), houve a introdução de “causa de diminuição[4]” que, em termos práticos (considerando as circunstâncias específicas do réu) poderia resultar em aplicação de pena de apenas 1 ano e 8 meses de reclusão.

Note-se que, apesar de ter havido majoração em termos absolutos, a penalidade poderia ser de fato minorada, quando aplicada em um caso específico (se considerada a referida redução e observada as características da hipótese em julgamento).

Ao julgar, o STJ decidiu que “deve-se, caso a caso, verificar qual a situação mais vantajosa ao condenado: se a aplicação das penas insertas na antiga lei — em que a pena mínima é mais baixa — ou a aplicação da nova lei na qual, muito embora contemple penas mais altas, prevê a possibilidade de incidência da causa de diminuição.”

Esse precedente ganhou ementa da qual extraio o seguinte trecho: “Todavia, a verificação da lex mitior, no confronto de leis, é feita in concreto, visto que a norma aparentemente mais benéfica, num determinado caso, pode não ser. Assim, pode haver, conforme a situação, retroatividade da regra nova ou ultra-atividade da norma antiga.”

O mesmo raciocínio foi adotado pelo STF, ao examinar o efeito confiscatório das penalidades, que também é parâmetro cuja medição pode gerar a mesma dúvida (a sua constatação ser em tese ou apurada em cada caso). O referido tribunal entendeu que “eventual efeito confiscatório da multa aplicada deverá ser aferido tendo em consideração as peculiaridades do caso concreto (…).” (Ag. Reg. no RE 550.329, Unânime, Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 26.10.2012; e AI 805745 ED, Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJ 27.06.2012)

Na doutrina penal, destacamos a lição de Damásio de Jesus no sentido de que “o conceito de lei mais benéfica (…) só pode ser alcançado após acurado exame das normas em conflito em face do caso concreto” (Código Penal Anotado, editora Saraiva, SP, 1991, págs. 6 e 7).

Note-se, por fim, que essa conclusão é corroborada pela própria regra da interpretação mais favorável. De fato, a questão em exame (de aplicar-se a norma em sentido abstrato ou com fundamento na situação fática específica) configura dúvida quanto à capitulação legal do fato, que, nos termos do artigo 112 do CTN, acima comentado, é uma das causas que determina a sua aplicação.


[1] Nesse sentido, Paulo Coimbra, em sua obra “Direito Tributário Sancionador” (Quartier Latin, São Paulo, 2007, p. 89).
[2] Sobre o tema, João Dácio Rolim, no artigo “Sanções Administrativas Tributárias” (na obra “Sanções Administrativas Tributárias”, organizada por Hugo de Brito Machado, p. 232) e Paulo Coimbra, em seu artigo “Sanção Tributária – Natureza Jurídica e Funções” (Revista Fórum de Direito Tributário, ano 3, n. 17)
[3] Trata-se do “no taxation without consent”, previsto na Magna Carta do Rei João Sem Terra
[4] “(…) desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”

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