Contas à Vista

Saúde não precisa só de dinheiro, mas de boa gestão

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22 de outubro de 2013, 7h00

Foi-se o tempo em que os médicos usavam termômetro, estetoscópio, medidor de pressão, e, principalmente, conversa, como seus únicos instrumentos de trabalho. A consulta e os exames eram um ato só. Diagnósticos se faziam a partir dos exames disponíveis: medição de temperatura, pressão e frequência cardíaca. O restante ficava por conta da experiência do clínico em sua conversa com o paciente. Bons tempos, alguns dirão, pois pelo menos tudo se resolvia mais rapidamente, sem necessidade de ir ao laboratório (eram poucos há duas décadas) para realização de dezenas de exames de nomes e siglas indecifráveis para os leigos. Incrível é constatar que, em não poucas vezes, faziam diagnósticos mais corretos e precisos do que atualmente. Mas isso é passado.

O fato é que a medicina se desenvolveu muito. Doenças que há duas ou três décadas eram fatais e incuráveis, como câncer e Aids, hoje não mais o são. É inegável a significativa melhoria na vida das pessoas trazidas pelos avanços na área da saúde.

No entanto, este progresso veio acompanhado de um significativo aumento nos custos e complexidade dos tratamentos, e o financiamento da saúde passou a ser um grave problema a ser enfrentado pelas pessoas e pelo Poder Público.

Deixando de lado os incontáveis litígios entre os particulares e os planos de saúde privados, que abarrotam a Justiça brasileira, uma vez que o propósito desta coluna é tratar de Direito Financeiro, passemos para o financiamento do sistema público de saúde.

Nossa Constituição, que recentemente completou 25 anos, foi generosa com a saúde, dando-lhe atenção diferenciada. Em seus artigos 6º e 196, reconhece a saúde como um direito social, direito de todos e dever do Estado, em perfeita consonância com os objetivos fundamentais da nossa República Federativa, enumerados no artigo 3º. Não seria exagero considerá-lo o mais importante direito assegurado pelo Estado brasileiro, e que exige dele atuação efetiva para torná-lo real, configurando um dos chamados “direitos fundamentais de segunda dimensão”, conforme consagra a doutrina, e que como tal importa em custos. Que, nesse caso, como já se pode antever, não são pequenos. Médicos são profissionais de alta qualificação e, portanto, caros. Eles e os demais profissionais da área da saúde também são — ou deveriam ser — muito bem remunerados. No caso da saúde, os custos se agravam em muito diante das novas tecnologias, com aparelhos sofisticados e caros, o mesmo ocorrendo com os medicamentos necessários ao tratamento das doenças.

Garantir direito à saúde é, portanto, um ônus que pesa — e como — sobre os ombros do Estado brasileiro.

Ônus que nem todos os governos gostam de assumir, O maior exemplo é o que se pode observar nos Estados Unidos, que no último dia 1º de outubro viu paralisar a administração pública pela não aprovação de sua lei orçamentária pelo Parlamento, o que deixou o governo sem autorização para gastar dinheiro e consequentemente pagar as despesas imprescindíveis para o funcionamento do setor público. Motivo? Divergências com relação à implementação da legislação do chamado “Obamacare”, que amplia a participação do setor público no sistema de saúde, facilitando o acesso e reduzindo os custos para a população, o que consequentemente aumenta as despesas do Estado americano[1].

Sistematizado nos artigos 196 a 200 da Constituição, o sistema de saúde no Brasil prevê ampla atuação do Estado, que deve assegurar acesso universal e igualitário de toda a sociedade às políticas públicas voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde.

Em um Estado federal como o Brasil, o financiamento público da saúde é especialmente complexo, dadas as peculiaridades do setor. Típica política pública exercida no âmbito do federalismo cooperativo que vigora em nosso país, é financiada e executada de forma conjunta por todos os entes da federação, o que, evidentemente, exige a participação, cooperação e coordenação entre eles, tanto na execução, quanto no financiamento.

Sendo os entes da federação dotados de autonomia, cujos governantes são eleitos democraticamente pela população, o que leva a um verdadeiro mosaico político, com prefeitos, governadores e presidente oriundos de partidos, ideologias e estilos diferentes, vê-se não ser fácil fazer com que todos atuem de forma coordenada e cooperativa em função de objetivos comuns.

O artigo 198 da Constituição dá as diretrizes gerais para o setor de saúde, cujas ações e serviços públicos “integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, regulamentado pelas leis 8.080 e 8.142, de 1990, e pela Lei Complementar 141, de 2012, em que estão delineadas as atribuições de cada ente federado e a forma de financiamento[2].

A descentralização dos encargos em matéria de saúde é complexa e delicada, em face das especificidades do setor, uma vez que há múltiplos fatores a serem levados em consideração. Urgência, gravidade, complexidade, custo, demanda — há muitos itens a sopesar na delimitação de quem vai fazer o que e como. E imperfeições nessa alocação geram efeitos perversos para todos. Quantas vezes não se constata na área da saúde a ocorrência de fenômenos conhecidos dos estudiosos de federalismo fiscal, como o free rider efect, ou “efeito carona”, em que determinadas unidades da federação, especialmente os municípios, por fornecerem esse serviço público com competência e eficiência, atraem para si pacientes de outros municípios, e acabam arcando com as despesas para o tratamento de um cidadão que não reside em seu território. Prefeitos que, ao invés de se esforçarem para construir e manter postos de saúde e hospitais que prestem um serviço de boa qualidade, optam por comprar ambulâncias que levam os pacientes para serem atendidos em municípios vizinhos, e com isso deixam de arcar com altas despesas, onerando outro ente da federação. Organizar todos estes fatores de modo e construir um sistema eficiente e evitar externalidades de toda sorte é tarefa árdua, a exigir muito esforço, estudo e dedicação, que depende ainda de muita vontade política para ser implementado, tornando-o realidade.

Em matéria orçamentária, o Sistema Único de Saúde (SUS) é financiado com recursos “do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”, explicita o parágrafo 1º do artigo 198. Ou seja, por todos os entes da federação. Recursos estes cuja distribuição dá-se por um sofisticado mecanismo de financiamento, operacionalizado por meio do Fundo Nacional de Saúde e os fundos estaduais e municipais de saúde, compondo um sistema de transferências intergovernamentais fundo a fundo. Sem esquecer da intensa participação, com remuneração pelos cofres públicos, de entidades públicas, filantrópicas e organizações não governamentais.

A dificuldade em organizar as finanças na área da saúde tem sido ainda agravada pela forte interferência do Poder Judiciário, com decisões determinando o fornecimento de medicamentos e tratamentos caros, exigindo esforço redobrado dos gestores para realocar recursos orçamentários, alterando a programação financeira dos entes federados. A judicialização da saúde é tema de tal relevância e interesse que motivou a realização de audiência pública no Supremo Tribunal Federal em 2009 para debater o tema, que é por demais complexo para ser analisado nesta coluna, mas seguramente o farei oportunamente.

A saúde é priorizada em termos financeiros, contando com a garantia constitucional de aplicação mínima de recursos no setor por parte de todos os entes federados, na forma do artigo 198, parágrafo 2º e 3º da Constituição e na Lei Complementar 141. Recentemente a saúde foi contemplada com a destinação de parcela da arrecadação dos royalties de petróleo, na forma da Lei 12.858, de setembro de 2013, sem contar outras leis em vias de aprovação que dispõe no mesmo sentido, o que permite vislumbrar não ser por falta de recursos que nossa saúde anda mal.

Uma boa gestão deste complexo sistema de saúde pública é evidentemente fundamental, pois, como já tenho repetido exaustivamente em várias colunas, mais do que dinheiro, o setor público precisa é de uma administração mais eficiente, o que exige estudos, planejamento e medidas não só de curto, mas também e principalmente de médio e longo prazos.

Características que não parecem, à primeira vista, presentes no recente programa “Mais Médicos”, implantado por medida provisória (MP 621/2013), com a “importação” de médicos realizada de forma ao que tudo indica apressada, deixando entrever que se trata de mais uma das tantas ações governamentais praticadas à revelia do sistema de planejamento governamental e voltadas a obter resultados imediatos de curto prazo, contrariando as boas técnicas e princípios da administração pública[3].

Porque vai mal nosso sistema de saúde, e qual o remédio para curá-lo é a grande questão que se coloca. Questão esta cuja resposta muito provavelmente não será dada pela medicina, mas sim pelo Direito Financeiro e pela Administração Pública.


[1] Aliás, para aproveitar a oportunidade, registro que, na coluna do último dia 24 de setembro de 2013, Planejamento municipal precisa ser levado a sério, chamei a atenção para o possível desinteresse da mídia para a importante data de 30 de setembro, quando seria — como efetivamente foi — apresentada a proposta de plano plurianual de grande parte dos municípios do país, incluindo São Paulo, e dos projetos de lei orçamentária de Estados e municípios em todo o país. Infelizmente constato o acerto da previsão, pois com raras exceções o assunto foi tratado no noticiário. Mas há que se lamentar o fato de que, na mesma data, o Parlamento americano deliberou sobre a proposta orçamentária dos EUA e isto teve grande destaque no noticiário — e continua tendo até hoje pp, o que mostra estarmos dando mais importância e levando mais a sério o orçamento americano do que o nosso!
[2] Vê-se ter o direito sanitário melhor sorte do que o direito financeiro, uma vez que, passados 25 anos da promulgação da Constituição, a legislação infraconstitucional regulamentando seus artigos está em vigor – ainda que tardiamente, pois a LC 141 é bastante recente. Já o direito financeiro espera até hoje a lei complementar prevista no artigo 165, parágrafo 9º, essencial para a organização das leis orçamentárias, como já alertei em coluna anterior (Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, publicada em 12 de março de 2013)
[3] Veja-se neste ponto a precisa e pertinente análise de Élida Pinto, Cláudia Pereira e Gabriel Léger: Importação de médicos tem contradições constitucionais, publicada em 6 de julho de 2013.

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