Dados na internet

'Direito fundamental ao esquecimento' é insustentável

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21 de outubro de 2013, 6h31

A popularização da internet, a partir da década de 90, fez aumentar de forma sensível a disseminação e o acesso à informação. A capacidade de armazenamento de dados quase ilimitada e a facilidade com que a informação é gerada, distribuída e localizada na internet passaram a permitir que os mais variados tipos de conteúdo permaneçam ao alcance do público por um longo período. Notícias publicadas e outras informações geradas há longa data são mantidas na rede e encontradas por qualquer pessoa de forma extremamente simples e rápida. Não raramente, porém, esse conteúdo pretérito, considerado no contexto atual, é reputado ofensivo às pessoas a que se refere, colidindo com alguns de seus direitos, sobretudo aqueles relativos à personalidade.

É nesse contexto que se insere o chamado “direito ao esquecimento”, concebido com a finalidade de impedir a exploração de fatos pretéritos pelos veículos de comunicação em geral e, especificamente no âmbito da internet, de permitir ao indivíduo a remoção de informação antiga e obsoleta a seu respeito[1]. Nas palavras do jurista espanhol Pere Simón Castellano, tradicional defensor do direito ao esquecimento, “cuando hablamos de ‘derecho al olvido’ hacemos referencia a posibilitar que los datos de las personas dejen de ser accesibles en la web, por petición de las mismas y cuando estas lo decidan; el derecho a retirarse del sistema y eliminar la información personal que la red contiene[2].

Nos países que integram a Comunidade Europeia, o direito ao esquecimento resulta da aplicação de normas que regem a proteção de dados pessoais, em especial os princípios do consentimento e da finalidade, expressamente previstos na Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 24 de outubro de 1995[3]. Em linhas gerais, o princípio do consentimento estabelece a necessidade de prévio consentimento do titular para a coleta, armazenamento e tratamento de seus dados pessoais. E o princípio da finalidade impõe que os dados sejam mantidos e utilizados sempre em estrita consonância com os específicos propósitos de sua coleta.

Com base nesses princípios, as agências de proteção de dados europeias têm invocado o direito ao esquecimento como fundamento para a remoção de dados disponíveis na internet, quando não mais sirvam aos propósitos para os quais foram coletados e armazenados[4]. Esse posicionamento já foi adotado, por exemplo, pelas agências de proteção de dados francesa (Comission Nationale de L’informatique et des Libertés)[5], italiana (Garante per la Protezione dei Dati Personali)[6] e espanhola (Agencia Española de Protección de Datos — “AEPD”), no âmbito de respostas a solicitações de indivíduos que requereram a sua intervenção para viabilizar a exclusão de dados pessoais da internet[7].

O posicionamento adotado pelas agências de proteção de dados europeias ensejou um amplo debate sobre o tema, que resultou no reconhecimento, pela Comissão Europeia, do direito ao esquecimento como um dos mais relevantes desafios da atualidade em matéria de proteção de dados pessoais. No início de 2011, foi concluída uma consulta pública realizada pela Comissão Europeia com o objetivo de colher manifestações acerca do regime jurídico de proteção de dados pessoais, incluindo o direito ao esquecimento, sobre o qual divergiram vários dos países participantes, especialmente no que diz respeito à sua aplicação na internet[8]. O direito ao esquecimento continua sendo discutido no âmbito das propostas de revisão da legislação de proteção de dados vigente na Europa.

Recentemente, foi submetido à Corte Nacional Espanhola, pela primeira vez, um caso envolvendo a aplicação do direito ao esquecimento na internet. No referido procedimento, a AEPD determinou que o Google removesse do resultado de pesquisas realizadas com a sua ferramenta de busca na Web links de acesso a sites em que exibidos anúncios relacionados à venda de imóveis de propriedade do reclamante em hasta pública, para quitação de dívidas junto à Seguridade Social[9]. Os anúncios, que mencionavam o nome completo do reclamante, haviam sido publicados na versão impressa de um jornal e, posteriormente, foram inseridos na internet a partir da digitalização daquelas edições.

Em seu parecer, o advogado-geral Niilo Jääskinen, do Tribunal de Justiça da União Europeia, concluiu que os princípios assegurados pela Diretiva 95/46/CE não abrangem o direito ao esquecimento na forma pretendida pela AEPD. Posicionando-se contrariamente à pretensão do reclamante, o parecer mencionou que o direito à informação abrange necessariamente “o direito de pesquisar informação relativa a outras pessoas singulares”, de modo que, “Na sociedade da informação contemporânea, o direito de pesquisar informação publicada na internet por meio de motores de pesquisa é uma das formas mais importantes de exercer esse direito fundamental[10]. Se acolhido, esse parecer terá efeito vinculante para todos os tribunais nacionais dos países membros[11].

No Brasil, merecem destaque dois julgados do Superior Tribunal de Justiça, proferidos em maio de 2013, em que foi analisada a aplicação do direito ao esquecimento “especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva” relacionadas a crimes ocorridos há longa data[12]. Embora tenha sido reconhecida a existência de um direito ao esquecimento, cuja aplicação deve ser avaliada caso a caso, o Superior Tribunal de Justiça deixou claro que o seu entendimento não se aplica à internet, em que a questão ganha contornos próprios e se torna mais complexa, fazendo necessária uma análise mais aprofundada. Vale conferir trecho constante de ambos os acórdãos:

A ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade — mas também se torna mais complexa — quando aplicada à internet, ambiente que, por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado, sendo desnecessário lembrar o alcance potencializado de divulgação próprio desse cyberespaço. Até agora, tem-se mostrado inerente à internet — mas não exclusivamente a ela —, a existência de um ‘resíduo informacional’ que supera a contemporaneidade da notícia e, por vezes, pode ser, no mínimo, desconfortável àquele que é noticiado.

Da leitura dos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, assim como de julgados anteriores de outros Tribunais brasileiros a respeito do tema[13], constata-se que o reconhecimento de um direito ao esquecimento, no ordenamento jurídico brasileiro, é resultado da ponderação, no caso concreto, entre princípios consagrados pela Constituição, em especial a liberdade de informação e, em colisão com esta, os direitos da personalidade e/ou a dignidade da pessoa humana. Não se trata de um direito assegurado de forma expressa ou específica pelo texto constitucional ou pela legislação infraconstitucional.

A ausência de contemporaneidade da informação, traço característico de toda pretensão fundada no direito ao esquecimento, é apenas um dos vários elementos fáticos a serem considerados na ponderação com os direitos da personalidade e/ou com a dignidade da pessoa humana, assim como são, por exemplo, a sua veracidade e o interesse público de que se reveste a sua divulgação. Pode-se afirmar, nesse sentido, que o direito ao esquecimento confunde-se, na verdade, com o resultado de uma ponderação entre direitos fundamentais colidentes que, consideradas todas as circunstâncias jurídicas e fáticas do caso concreto, induz ao preterimento da informação desatualizada.

Assim como o conjunto de circunstâncias jurídicas e fáticas do caso concreto pode levar a esse resultado, é totalmente plausível, e bastante frequente, que a decisão judicial seja no sentido de permitir a veiculação da informação, ainda que desatualizada, quando a totalidade dos elementos considerados na ponderação assim determinar. Embora os reflexos de uma decisão nesse sentido sejam mais sensíveis quando se trata da veiculação de informação na internet, em vista da facilidade de acesso e do seu alcance global, esta não é uma circunstância capaz, por si só, de determinar o resultado da ponderação. Daí porque não se sustenta a afirmação de um “direito fundamental ao esquecimento”, autônomo, que franqueie ao indivíduo a prerrogativa de tornar inacessível toda e qualquer informação existente na internet a seu respeito, pelo só fato de não ser atual.


[1] Conforme se extrai de reportagem publicada em 2011 pelo jornal espanhol “El Pais” (Quiero que Internet se olvide de mí), “El mundo cibernético ha traído consigo la demanda de derechos que no figuran expresamente en ninguna Constitución. Uno de ellos es el llamado ‘derecho al olvido’, que ampara la capacidad de una persona para borrar de Internet información irrelevante sobre sí misma y preservar de este modo su privacidad.” [disponível em http://elpais.com/diario/2011/01/07/sociedad/1294354801_850215.html, acesso em 28/07/2013].

[2] El derecho al olvido en el universo 2.0.

[3] É importante referir que, à época de sua aprovação, em 1995, como a Internet ainda era pouco utilizada, não houve qualquer debate acerca da matéria, inexistindo, por essa razão, qualquer dispositivo na Diretiva que reconheça o direito ao esquecimento de forma específica.

[4] CASTELLANO, Pere Simón. The right to be forgotten under European Law: a Constitutional debate, Lex Electronica, v. 16, n. 1, Hiver/Winter, 2012, p. 21-22.

[5] Pere Simón Castellano. The right to be forgotten under European Law: a Constitutional debate, Lex Electronica, v. 16, n. 1, Hiver/Winter, 2012, p. 19.

[6] Com base no artigo 11.b do Codice in materia di protezione dei dati personali, que prevê que: “Art. 11. Modalità del trattamento e requisiti dei dati […] b) raccolti e registrati per scopi determinati, espliciti e legittimi, ed utilizzati in altre operazioni del trattamento in termini compatibili con tali scopi […]”.

[7] LOMBARTE, Artemi Rallo. El derecho al olvido y su protección. Revista TELOS (Cuadernos de Comunicación e Innovación), Madrid, out.-dez., 2010, p. 3.

[8] O Governo Federal Alemão entendeu ser imprescindível que a nova diretiva de proteção de dados trate o direito ao esquecimento de forma clara, mediante a delimitação precisa de seus requisitos e das entidades sobre as quais poderá ser requerido. A autoridade belga de proteção de dados ponderou que o direito ao esquecimento deve ser implementado sem prejuízo do armazenamento de informações históricas e culturais. O Reino Unido requereu à Comissão Europeia maiores esclarecimentos sobre a extensão desse direito, na medida em que sua aplicabilidade prática seria restrita, não podendo abranger informações disponibilizadas publicamente na Internet. De acordo com a manifestação do Reino Unido: “It is important that the Commission is clear about the extent to which this right can be effective in practice, as it could have a very limited application […] the ICUK can see some situations where ‘the right to be forgotten’ could work well in practice, such as where an individual wishes to delete their record from a social network, but these situations are limited […] It could also be technology difficult for this right to be delivered in practice in some circumstances, such as when the information has been made publicly available on the Internet. The ICUK therefore welcomes the Comission`s proposal to clarify the ‘right to be forgotten’.”

[9] Procedure TD/00463/2007, Decision n. R/01046/2007, de 20/11/2007.

[10] A íntegra do parecer encontra-se disponível em https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-google-direito-esquecimento.pdf [acesso em 07/08/2013].

[11] Pere Simón Castellano. The right to be forgotten under European Law: a Constitutional debate, Lex Electronica, v. 16, n. 1, Hiver/Winter, 2012, p. 23.

[12] Recursos especiais nºs. 1.334.097/RJ e 1.335.153/RJ, Quarta Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgados em 28 de maio de 2013.

[13] Como, por exemplo, Tribunal Regional Federal da 4ª Região, apelação cível nº 2003.70.00.058151-6/PR, Quarta Turma, Relatora Desembargadora Marga Inge Barth Tessler, julgado em 6 de maio de 2009; e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, agravo de instrumento nº 0210606-89.2012.8.26.0000, Sexta Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Alexandre Lazzarini, julgado em 25 de outubro de 2012.

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