Direito sem papel

Relatório Justiça em Números deve ser referência para o PJe

Autor

  • Alexandre Atheniense

    é sócio de Alexandre Atheniense Advogados coordenador do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) membro das Comissões de Proteção de Dados Pessoais da OAB-MG e Direito Digital no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

21 de outubro de 2013, 7h52

Há nove anos, os presidentes dos tribunais superiores entregaram ao então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos uma proposta de modernização do Judiciário, sugerindo uma série de ações, em especial a unificação das bases de dados dos tribunais, para a criação de uma importante referência estatística a ser produzida a cada ano sobre o desempenho da atividade jurisdicional. A base do projeto também incluía o aproveitamento das ações positivas já desenvolvidas e testadas em órgãos públicos, para se evitar desperdício de ideias e recursos.

O principal objetivo era fazer com que os órgãos da Justiça se interligassem, de forma a reduzir o tempo de tramitação dos autos judiciais, ampliando o acesso do cidadão e tornar mais transparente as ações do Judiciário de modo a deixar para trás o perfil de atuarem como ilhas isoladas, por gerarem conhecimento sobre as atividades e desempenho apenas em caráter local e não no âmbito federativo.

Três anos após, com a aprovação da Lei do Processo Eletrônico, estas ideias foram se concretizando, com a contínua implantação das práticas processuais por meio eletrônico, nos 94 tribunais, em que até 2012 tramitam cerca de 92,5 milhões de autos judiciais ativos.

Para que as metas de gestão do Judiciário fossem gradualmente alcançadas, foi necessário implantar uma coleta de dados a partir de cada tribunal, que revelasse a performance das atividades de cada tribunal, que, posteriormente seriam consolidadas e tabuladas pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.

Para dar seguimento e ampla publicidade a este trabalho, foi criado o Relatório Anual Justiça em Números. Não há dúvidas da relevante contribuição e eficiência que esta pesquisa contribui para o Judiciário, pois a transparência dos resultados se torna uma referência incentivadora, para que haja uma constante busca pelo conhecimento visando uma avaliação e melhoria da qualidade dos serviços.

Porém, apesar de toda expertise desenvolvida, é chegada a hora, ao meu ver, de estender o foco desta pesquisa para conhecer com mais detalhes quem são “os clientes” do Judiciário.

Em outras palavras, o modelo de apuração de dados merece ser ampliado, pois a metodologia de pesquisa ora empregada só consegue revelar, em grande parte, fatos sobre os números relativos ao próprio Judiciário e não efetivamente sobre a Justiça.

É necessário que o CNJ amplie o alcance desta coleta dos dados estatísticos, para dar transparência sobre o perfil do usuário da Justiça, e, sobretudo, quais são suas reivindicações mais recorrentes.

Enquanto o Judiciário continuar a limitar ao alcance de suas pesquisas as informações restritas ao cenário interno de cada tribunal, será difícil evoluir quanto à ampliação do conhecimento e à busca da qualidade na prestação jurisdicional. A linha de conduta que não efetiva a contribuição dos anseios e as principais demandas dos atores processuais não corrobora para tornar a Justiça mais eficaz.

Precisamos desvendar informações sobre: quantos jurisdicionados se socorrem da Justiça Brasileira a cada ano? Quantas jurisdicionados são pessoas jurídicas ou físicas e quais os tipos de demandas inerentes a cada espécie? Quem são os autores e réus mais contumazes ? Quem são os usuários que estão cadastrados para acesso aos sistemas de processo eletrônico por cada Tribunal ? Quais são os atores processuais que ainda não tem como acessar a íntegra dos autos eletrônicos por impedimento dos atuais sistemas? Quantos advogados são cadastrados como usuários dos sistemas de processo eletrônico e o seu respectivo mapeamento geográfico dentre os sistemas existentes? Quais são as principais dificuldades encontradas com o uso dos sistemas de tramitação processual sem papel?

O relatório Justiça em Números 2013, publicado em meados de outubro, já contribuiu em parte para a revelação de alguns dados interessantes.

No ano de 2012, 20% dos novos processos que foram distribuídos na Justiça foram eletrônicos. Neste mesmo ano, 45% dos autos que tramitaram no juizado especial eram sem papel e 65% estão nas turmas recursais.

Outros indicadores que contribuem para diagnosticar o atual momento da Justiça no que diz respeito à implantação do processo eletrônico podem ser obtidos pela revelação do número de certificados digitais emitidos para os advogados.

Até setembro de 2013, a Ordem dos Advogados do Brasil possuía cerca de 790.000 inscritos, sendo que 255 mil já estão inseridos no mundo digital, pois já adquiriram certificados digitais para as práticas processuais por meio eletrônico.

Em média, cada unidade da federação possui cerca de 32% de advogados com certificados digitais. O estado que possui maior nível de inclusão digital dos advogados, se considerarmos o número de certificados digitais emitidos, é o Mato Grosso do Sul (75,99%), e o menor é o Piauí com (10%).

Se somarmos os certificados digitais emitidos para os advogados pela OAB, Associação dos Advogados de São Paulo, tribunais via sistema Projudi e outras certificadoras, constataremos que em 2013 existem cerca de 330 mil advogados atuando na justiça brasileira como usuários dos sistemas de prática processual por meio eletrônico.

Se estes números não justificam que existe uma enorme massa crítica sedenta para contribuir com o aprimoramento do processo eletrônico, mais significativo ainda, é o indicador que revela a taxa de crescimento da inclusão digital no processo eletrônico nos últimos 12 meses (setembro 2012 a setembro de 2013). Segundo a OAB, foi registrado um aumento de emissão de certificação digital para advogados de cerca de 389%.

Um dos fatores predominantes que contribuiu para este aumento significativo foi o avanço ocorrido com a audaciosa e promissora implantação do processo eletrônico no Tribunal de Justiça de São Paulo, que decolou de 1% do volume dos processos eletrônicos sobre o total dos autos judiciais ativos, em 2011, para cerca de 40% das varas (685 varas) com tramitação dos atos judiciais sem papel, marca significativa que deve ser o resultado final de 2012.

Se analisarmos o ranking de inclusão do número de certificados digitais emitidos para advogados em cada unidade da federação, que revela por consequência o grau de evolução do processo eletrônico nos respectivos tribunais em cada estado, os dez mais avançados são: MS (75,99%), Amazonas (74,93%), Paraná (73,33%), Alagoas (54,70%), Ceará (51,77%), Acre (48,42%), Rio Grande do Norte (47,29%), Santa Catarina (45,72%), Pernambuco (41,96%) e Sergipe (39%).

Nos estados onde estão localizados os Tribunais de maior porte o índice de inclusão por emissão de certificados digitais por advogado correspondem a: São Paulo (29%), Rio de Janeiro (38%), Minas Gerais (13%), Distrito Federal (18%) e Rio Grande do Sul (17%).

Não há dúvidas que surgirão outras inúmeras constatações de enorme relevância que poderão ser construídas e a aprimoradas a partir da expansão da business intelligence obtida pelo Relatório Justiça em Números se houver a expansão e for conhecido o perfil dos seus usuários.

Enquanto o CNJ ainda não se aprofundou quanto a uma efetiva e contínua interação sobre as necessidades dos atores processuais quanto as melhorias dos sistemas de processo eletrônico, a AASP se mobilizou em 2013 para fazer uma enquete pública visando apurar quais são as principais reivindicações dos advogados.

O resultado do estudo de grande relevância foi obtido a partir da coleta de cerca de 1,5 mil contribuições pelo site da entidade. As contribuições para o aprimoramento do processo eletrônico mais recorrentes foram a instabilidade dos sistemas que permitem o acesso aos sites dos tribunais, causando insegurança e retrabalho e falta de suporte especializado nos tribunais para solucionar dúvidas sobre o sistema de processo eletrônico. Há registros de que os números telefônicos para atendimento disponibilizados para suporte sequer conseguem ser acessados, e, quando isto acontece, o suporte é muito superficial.

A falta de uniformização dos sistemas, que apesar de uma certa facilidade de uso possuem muitas regras específicas e individualizadas em cada tribunal, é um dos obstáculos mais graves que afetam a produtividade de prática forense. Não menos relevante são a perda de tempo na geração de documentos e o desconforto causado pela imposição da limitação de tamanho e formato de arquivos que compõem as peças processuais que devem ser transmitidas aos tribunais. Em determinados casos, os advogados não conseguem juntar aos autos documentos, em formatos de áudio, vídeo ou imagem, que excedem o tamanho permitido pelos tribunais e geram prejuízo para defesa.

Outra constatação, foi que certos magistrados adotam procedimentos diferentes para situações semelhantes para as práticas processuais por meio eletrônico, pois percebe-se que alguns deles ainda demandam um conhecimento mais amplo sobre o sistema.

Além destes casos, a intimação eletrônica via portal tem gerado muita insegurança quando há necessidade de elaborar uma prova da constatação de eventual erro sistêmico. A constatação deste incidente se dá em zona de acesso restrita, onde somente o advogado responsável pelo processo tem acesso. Diante desta falta de ampla publicidade, sobretudo se compararmos com a publicação dos atos processuais divulgada pelo Diário de Justiça Eletrônico, nem sempre será possível produzir prova que venha a ser admitida como inequívoca em razão de fato originado a partir do meio eletrônico.

Cabe ao Judiciário aprimorar sua política pública, não só para suprir suas próprias necessidades organizacionais mas, sobretudo, para prover os anseios dos atores processuais. É imperioso o alinhamento das estratégias de gestão dos tribunais com os princípios de governança em tecnologia da informação, pois o seu alcance não pode se restringir apenas à visão estatística fincada no seus próprios interesse sem a abrangência dos demais atores processuais.

Entende-se por exercício da governança em tecnologia da informação na Justiça a busca do consenso nas relações sociais, de modo a alcançar uma concordância sobre qual é o melhor caminho para todos aqueles que exercem suas atividades neste cenário.

A efetivação destas medidas se dá pelo ponto de partida, a partir da crença de que haverá impossibilidade de sucesso de uma solução imposta pelo órgão regulador, mas sim, a busca pela construção elaborada, participativa, transparente, recorrente e amadurecida de um modelo que envolva os representantes legítimos de todos atores processuais.

A utilização dos princípios de governança, em conjunto com outros mecanismos de gestão, revelará que o órgão regulador para exercer a liderança necessariamente não precisa ser autoritário, que a colaboração de todos não é significado de uma divisão de trabalhos e a comunicação, bem como o desenvolvimento da infraestrutura de tecnologia de prestação jurisdicional, não pode servir como um mecanismo de controle.

Portanto, governança de tecnologia da informação é de fato um aprimoramento, ou seja, um conjunto de medidas organizacionais e processos de negócio que devem envolver a alta direção, gerentes de tecnologia da informação e os representantes legítimos dos atores processuais na tomada de decisões, em busca da coordenação das ações decorrentes, bem como o monitoramento dos seus resultados.

É preciso admitir que nem sempre será possível atender a totalidade das expectativas dos atores processuais, porém, será necessário aprimorar sempre a transparência na condução dos projetos, para que este ato possa gerar confiança, bem como que haja planejamento explícito com a participação de todos integrantes da Justiça.

Se analisarmos os episódios recentes que revelam a insatisfação de determinados atores processuais com os rumos da implantação do processo eletrônico, constataremos que o fator causador é a ausência do exercício da governança em tecnologia de informação que causa danos e ônus financeiro inclusive para os próprios tribunais.

É nítida a dificuldade de adesão quanto às mudanças pretendidas por conta da insegurança, bem como o aumento da fragilidade da relação de confiança quanto ao sucesso da implantação do processo eletrônico. Existe uma grande temeridade quanto as violações de prerrogativas.

Os números apresentados pelo relatório Justiça em Números revelam um aumento do custo operacional em 2012 se comparado a 2011. A receita para mitigar este cenário é construir um modelo que atenda as demandas que possam gerar conforto e produtividade e que tenham sido efetivamente apuradas junto aos atores processuais.

O órgão regulador deve manter e ser cada vez mais abrangente quanto ao “desejo de informar”, pois esta medida aumentará o clima de confiança tanto internamente no Judiciário quanto em relação aos terceiros.

O exercício da governança em tecnologia da informação comprovará que o caminho de sucesso trilha passa pela missão que os tribunais devam estar sempre atentos ao clamor dos membros da sociedade.

Estamos as vésperas da aprovação da regulamentação do PJe, Sistema de Processo Eletrônico, que será votado no plenário do CNJ e cuja finalidade poderá significar grandes mudanças quanto a tramitação dos autos processuais sem papel.

Depreende-se da versão atual da minuta que o órgão regulador não só pretende impor padrões sistêmicos relativos ao processo eletrônico para todos tribunais, mas indica que pretende impor aos mesmos que não abortem a evolução dos atuais sistemas utilizados, pois todos devem ser migrados para o PJe.

Conhecendo de perto a evolução deste cenário há mais de dez anos, não estou seguro que, na prática, esta medida imposta poderá vir a alcançar êxito, sobretudo em razão da autonomia orçamentária dos tribunais.

Chego a temer que este impasse poderá acarretar inclusive uma possível judicialização do assunto, caso não haja a construção de um consenso que permita harmonizar os interesses entre o órgão regulador e os tribunais

Por outro lado, caso se concretize a notícia inédita divulgada recentemente pela revista Consultor Jurídico, com a aprovação da proposta na regulamentação do PJe, que prevê a proibição da utilização de softwares robôs, que são comumente utilizados por inúmeros atores processuais, para consultar e obter consideráveis volumes de dados para alimentar outros sistemas, haverá um impacto com danos incomensuráveis para inúmeros usuários dos sistemas.

Com a aprovação desta medida, o CNJ poderá violar as prerrogativas profissionais, além de causar danos concretos à efetividade e para o exercício da advocacia. Este entendimento do órgão regulador, está amparado na falsa premissa de que a maioria dos usuários que hoje utiliza os sistemas de processo eletrônico é formada por advogados que individualmente acessam os seus processos. Como percebemos pelos números revelados pelo Relatório Justiça em Números, o maior volume de processos sem papel está localizado nos juizados especiais, onde prepondera o exercício da advocacia de massa.

Percebe-se que há pouca preocupação em prover atendimento digno a estes, ou mesmo empresas e entidades prestadoras de serviços que dependem diretamente desta coleta de dados em lote para dar sustentabilidade ao seu negócio que gera benefícios para inúmeras pessoas.

A imposição desta medida acarretará sérios danos, não apenas as prerrogativas dos advogados, mas sobretudo ao jurisdicionado.

A solução para este impasse não é apontar culpados que possam supostamente estar causando problemas de indisponibilidade de acesso aos sistemas de processo eletrônico dos tribunais, mas sim fazer com que estes criem canais alternativos de atendimento, para este grupo de usuários que demandam um tratamento diferenciado.

A construção da relação de confiança com os atores processuais deve ser sempre a principal medida estratégica a ser adotada pelo órgão regulador do processo eletrônico. Este princípio se exerce na prática com a adoção de governança, pois a tecnologia da informação precisa cumprir o seu papel primordial de propiciar celeridade, redução de custos e conforto e não semear a insegurança, onerosidade e a segregação digital.

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