Segunda Leitura

Gratidão deve fazer parte das profissões jurídicas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

20 de outubro de 2013, 7h00

Spacca
A gratidão é o reconhecimento de um benefício recebido e pode ser dirigida ao próximo e também a uma divindade. Na Bíblia, há muitas referências à gratidão, como “que a paz de Cristo seja o juiz em seu coração, visto que vocês foram chamados para viver em paz, como membros de um só corpo. E sejam agradecidos” (Colossenses 3:17).

Para Cícero, o grande orador, estadista e filósofo romano, “a gratidão não é apenas a maior das virtudes, mas a mãe de todas as outras”. Mas o que tem a ver gratidão com as atividades jurídicas? Aparentemente, nada. Na realidade, tudo.

O que aqui se escreve não é uma sucessão de devaneios, mas sim algo que influencia diretamente a vida dos estudantes e profissionais do Direito. É o que adiante se mostrará, com relato de casos, reais ou imaginários. A rotina agitada de nossas vidas impede-nos, muitas vezes, de enxergar o que se passa ao nosso lado. E, consequentemente, de exteriorizar um sentimento positivo de gratidão.

Comecemos por um exemplo negativo, ou seja, de ingratidão. Um experiente advogado, vendo no seu jovem funcionário uma inteligência diferenciada, estimula-o a cursar Direito e paga suas mensalidades por anos. Todavia, um dia é surpreendido pela notícia de que ele estava se apropriando de dinheiro do escritório. Fim do benefício.

Mas, não podemos lembrar apenas exemplos de desvio de caráter. É preciso por atenção na possibilidade de agir em sentido positivo. E às vezes não se age por falta de lembrança, de atenção ou de alguém que nos aponte o caminho.

Um estudante de Direito nem sempre percebe o esforço que a direção de sua faculdade está fazendo para auxiliar os alunos. Por exemplo, promovendo atividades extracurriculares, como trazer um professor do exterior, ou ofertando uma atividade complementar, como a visita a um Tribunal ou a uma audiência pública. Enviar uma mensagem eletrônica ao coordenador do curso de Direito servirá de grande estímulo àquele que tenta aprimorar o ensino.

O professor de Direito não deve esquecer que recebe além do salário mensal. É verdade que nem todas as faculdades pagam bem. Mas é verdade, também, que quem ensina adquire um status que se reflete positivamente em outras atividades (v.g., advocacia), tem muitas vezes vantagens adicionais (v.g., plano de saúde) e está em aprendizado constante. Por tal motivo, tentar ir além da sala de aula, participando de outras iniciativas (p. ex., organizando congressos) ou auxiliando alunos que o procuram, será uma boa forma de ser grato e elevará seu conceito.

Um estagiário geralmente quer ter experiências diversificadas. Ao sair de um escritório de advocacia ou órgão público, deve ser grato pelo que aprendeu. E sempre se aprende, mesmo quando as funções se limitem a extrair cópias e entregar processos. Até nisto está se aprendendo, porque mostrará que um lugar de destaque se conquista com luta e exige sacrifícios.

Por vezes, frases duras, indelicadas, ajudam-nos a crescer. No escritório onde estagiei, um advogado criticava muito meu português. Isto me levou a contratar uma professora particular, fato que me ajudou por toda a vida. Ele também não gostava de explicar uma missão. Mandava-me a uma comarca distante fazer isto ou aquilo e ponto final. Isto me forçou a procurar soluções, porque, afinal, a missão tinha que ser cumprida a qualquer custo. Ótimo. Fui obrigado a crescer.

Os servidores públicos nem sempre estão satisfeitos. Com ou sem razão, dependendo das circunstâncias. Surpreendo-me, todavia, quando alguém em cargo de nível médio no Poder Judiciário da União, ganhando cerca de R$ 7 mil ou mais (dependendo do tempo de serviço, muito mais), demonstra revolta. Claro que reivindicar aumento é uma aspiração legítima. Mas, é preciso ser grato quando se recebe bem acima da média salarial e também levar em conta o que se gastaria com um empreendimento privado, por exemplo, aluguel, IPTU, faxineira, telefone, computadores, empregados etc. Gratidão, no caso, se revela executando o serviço com dedicação devolvendo à sociedade o que dela se recebe.

Agentes do Ministério Público têm posição de destaque na sociedade, ganham o mesmo que os juízes (ou mais), têm todas as suas garantias e são menos fiscalizados pela sociedade. Tais circunstâncias devem gerar uma regra não escrita de gratidão para com o Estado, que muito lhes dá. E este sentimento deve ser reconhecido através da busca da prestação de um serviço eficiente e não burocrático. Uma dedicação que extrapole a rotina, como participar de iniciativas da sociedade, onde sua presença terá sempre um efeito positivo. Por exemplo, uma simples visita a um conselho ou uma ONG servirá de estímulo a tantos que ali trabalham sem nada ganhar.

Atualmente, as instituições públicas estão conscientes da necessidade de capacitar seus membros. Ser grato à instituição pelo que se recebe é o mínimo a fazer. Imagine-se um advogado da União que receba autorização para passar dois anos na Europa fazendo mestrado e, por uma ou por outra razão, não defenda sua dissertação. A omissão quebra as regras do pactuado e constitui ingratidão.

O mesmo se dá se um juiz do trabalho de uma região menos desenvolvida é autorizado a fazer seu doutorado em universidade de uma cidade que lhe oferece excelentes recursos culturais e boas opções de crescimento. Imagine-se que, defendida a tese, ao invés de retornar ao seu local de trabalho, procure remover-se para o TRT da região onde estudou, aspirando obter melhor qualidade de vida para si e para a família. Ingratidão pura. Seu dever é devolver à sua região tudo o que aprendeu.

Magistrados e agentes do MP gozam 60 dias de férias por ano e se beneficiam do recesso judiciário de fim de ano. Não é pouca coisa. Utilizar alguns dias desses períodos para colocar o serviço em dia, dando sentenças ou elaborando denúncias ou peças, é mostrar respeito e gratidão à sociedade.

O presidente de um tribunal ou quem exerça função relevante de chefia deve ser grato a tantos quantos o auxiliem a fazer uma boa gestão. Um elogio na folha funcional, um muito obrigado, às vezes um simples gesto, sempre serão bem-vindos e estimularão o destinatário.

O reconhecimento externado acaba auxiliando nas relações humanas, gerando um efeito benéfico multiplicador. Gratidão se demonstra com uma visita ao escritório de advocacia onde se estagiou, com um e-mail, um telefonema, um presente, um cartão de Natal (ainda que eletrônico), com a solidariedade em um momento difícil, enfim, de múltiplas maneiras.

Até os insucessos, as injustiças, o maltrato, podem nos auxiliar e merecer nossa gratidão. Sim, desde que sirvam para o nosso crescimento. Um professor rigoroso que nos reprova pode ser aquele que nos dará o amadurecimento para nos dedicarmos mais ao estudo. Um velho advogado que repreende o jovem integrante do escritório por chegar constantemente depois da hora, pode ser o único a ensinar-lhe que a disciplina é necessária.

Outrossim, é preciso não confundir gratidão com protecionismo, pagamento de favores. Um governante, ao pretender que um ministro de uma Corte Superior lhe pague a indicação, decidindo a favor de seus interesses, mostra uma visão distorcida do que vem a ser gratidão. Pior ainda se o indicado acreditar que deve pagar a indicação.

Registre-se, finalmente, que a gratidão é norma ética e não legal. A única previsão legal está no avesso, ou seja, na sua inexistência em casos extremos. Refiro-me à punição do ingrato impedindo-lhe o direito de herdar nas hipóteses dos artigos 1.814 e 1.962 do Código Civil. Por exemplo, se não der amparo a ascendente com grave enfermidade.

Sintetizando, ao invés de cultivar mágoas, com ou sem razão, que só servem para comprometer a própria saúde, mais inteligente é reconhecer e agradecer àqueles que nos ajudam na caminhada, o que nos torna melhores, mais satisfeitos conosco mesmos e com a vida.

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