Análise Constitucional

Legitimidade está por trás da guarda da constituição

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

20 de outubro de 2013, 7h01

Spacca
“Qualquer sociedade que confia em nove juízes não eleitos para solucionar as mais sérias questões do dia não é uma democracia funcional”. Com essas palavras, o justice Anthony Kennedy, da Suprema Corte norte-americana, surpreendeu os alunos da Universidade da Pennsylvania, no último dia 3 de outubro.[1]

E surpreendeu, em especial, por ser o voto de Kennedy o mais importante para a definição de maiorias numa Corte ideologicamente dividida, ora pendendo para a composição com os quatro juízes indicados por presidentes democratas (Ginsburg, Breyer, Sotomayor e Kagan, tidos como “liberais”), ora formando maiorias com outros juízes que, como ele, foram indicados por presidentes republicanos (Scalia, Thomas, Roberts e Alito, rotulados de “conservadores”).

O voto de Kennedy foi fundamental em temas de grande polêmica, como, por exemplo, a superação da criminalização das relações homossexuais, no caso Lawrence v. Texas, de 2003; a proibição da aplicação da pena de morte a delinquentes juvenis, no caso Roper v. Simmons, de 2004;[2] e, mais recentemente, a rejeição de obstáculos ao reconhecimento de direitos a casamentos homoafetivos, no caso United States v. Windsor, de 2013.[3]

Nesse quadro, a declaração de Kennedy surpreende exatamente por que ele, de modo direto e incisivo, reconhece a natureza antidemocrática — ou pelo menos não democrática — de seu próprio papel como responsável pelas grandes decisões jurídico-políticas que tem tomado a Suprema Corte americana ao longo dos últimos anos.

Essa recente declaração do Justice Kennedy, ademais, serve como provocação inicial para a retomada de um debate proposto há um mês nesta coluna da ConJur, quando se iniciou um processo de revisão de alguns (pre)conceitos em matéria de jurisdição constitucional, que podem ser resumidos nas seguintes frases: “O controle de constitucionalidade no Brasil nasce com a República”; “o Tribunal Constitucional exerce um papel contramajoritário”; “a jurisdição constitucional é expressão da democracia”; e “no debate sobre quem deve ser o guarda da Constituição, Kelsen triunfou sobre Schmitt”.

No texto de 22 de setembro passado, foram examinadas as duas primeiras afirmações acima indicadas, restando para a análise deste domingo (20/10) as duas últimas. Sendo que em relação à legitimação democrática da jurisdição constitucional já se teve, neste espaço, a interessante abordagem da última coluna de José Levi Mello do Amaral Junior.

A afirmação de que a jurisdição constitucional é expressão da democracia, em especial quando difusa entre os vários membros e órgãos do Poder Judiciário, é bastante comum, Mas deve, porém, ser sopesada com as considerações de José Levi Mello do Amaral Junior no artigo antes mencionado, as quais podem ser complementadas com alguns comentários acerca do conhecido texto de Jeremy Waldron, “The Core of the Case Against Judicial Review”[4].

Para Waldron, numa muito apertada síntese, a discordância acerca da delimitação de direitos é algo natural e comum nas sociedades democráticas, devendo ser tais disputas resolvidas a partir de processos que levem em consideração as opiniões das populações envolvidas, tratando-as como iguais. Esses problemas, na visão do autor, podem muito bem ser superados por meio do processo legislativo comum, no qual as diferentes forças da sociedade se fazem representar.

Fazer com que as decisões oriundas desse legítimo e democrático processo legislativo sejam revistas pelos tribunais, na sua visão, pouco acrescenta ao sistema; retirando-lhe, porém, muito de sua força popular e travestindo discussões morais em fórmulas jurídicas incapazes de expressá-las adequadamente.

Nesse quadro, a correta delimitação dos contornos dos direitos deve ficar a cargo do Legislativo, ainda que o autor admita exceções. Waldron registra que sua objeção ao controle de constitucionalidade não se aplica a “situações em que os sistemas legislativo e eleitoral são patológica ou incorrigivelmente disfuncionais”, nas quais a perda de legitimidade popular é um preço razoável a ser pago pela solução das discordâncias acerca dos direitos. Trata-se, portanto, de uma situação excepcional, em que o processo perante os tribunais substituiria o processo legislativo como meio de superação de tais discordâncias.

A partir desses referenciais sintéticos, pode-se voltar à afirmação de Anthony Kennedy que abre este artigo: se há um recurso constante aos nove juízes não eleitos da Suprema Corte americana — ou aos 11 ministros não eleitos do STF brasileiro — é porque as instituições legislativas são disfuncionais, o que gera uma democracia igualmente disfuncional?

No caso específico do Brasil, há muito se aponta a existência de uma crise legislativa, como anotado — já em 1969 — por Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “é notório que os Parlamentos não dão conta das ‘necessidades’ legislativas dos Estados contemporâneos; não conseguem, a tempo e a hora, gerar leis que os governos reclamam, que os grupos de pressão solicitam. As normas que tradicionalmente pautam o seu trabalho dão – é certo – ensejo a delongas, oportunidade a manobras e retardamentos. Com isso, projetos se acumulam e atrasam. E esse atraso, na palavra do governo, no murmúrio da opinião pública, é a única e exclusiva razão por que os males de que sofre o povo não são aliviados”.[5]

A ausência de funcionalidade no parlamento brasileiro já serviu de justificativa, por exemplo, para a ampla assunção de funções legislativas pelo Executivo, por meio das medidas provisórias[6]; e, como preconizado por Waldron, pode também servir de justificativa para intervenções dos tribunais na determinação de direitos.

Entretanto, é necessário questionar o quão disfuncional é o parlamento brasileiro, para que seja possível examinar, de modo isento, quais os momentos em que a discussão acerca da definição de direitos pode se deslocar do processo legislativo para o processo judicial.

Não se pode aferir o caráter disfuncional de um órgão legislativo por aspectos isolados. Para utilizar um exemplo levantado por alunos em sala de aula, não se pode classificar o parlamento brasileiro como patológica e irremediavelmente disfuncional pelo simples fato de contar com um deputado que se encontra preso e se mantém no exercício do mandato.

O que se deve questionar é qual a capacidade que tem o parlmento para lidar com questões polêmicas que envolvem a delimitação de direitos. Nesse campo, porém, não parece que se possa tachar de disfuncional o Congresso Nacional. Isso porque, não raro, tem dado respostas a temas polêmicos, que são amplamente discutidos na Câmara e no Senado, com a crescente participação da sociedade organizada. Exemplo disso é a aprovação do novo Código Florestal, que após longa discussão, implantou novo sistema de proteção ambiental no Brasil, superando o modelo unilateralmente imposto pelo Executivo por meio de medidas provisórias.[7]

Não se pode negar, por outro lado, que há situações em que a crise legislativa dificulta ou impede a delimitação de direitos, situações essas que podem gerar a intromissão das Cortes por meio do controle de constitucionalidade.

Entretanto, esse parâmetro há de ser levado em consideração pelos tribunais, em especial pelo STF, que — na linha defendida por Waldron[8] — deve avaliar se está diante de uma circunstância de inação legislativa que justifique e legitime sua atuação, em sede de controle de constitucionalidade, como instância de delimitação de direitos, o que deve ser feito com humildade e restrição, sob pena de vulneração do regime democrático.

Por fim, resta examinar a última das concepções antes mencionadas, que são impensada e amplamente repetidas quando se discute a jurisdição constitucional. Cuida-se da polêmica — muito citada, mas pouco estudada — envolvendo Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre quem deve ser o guarda da Constituição.[9]

É assente a compreensão de que a consagração do modelo dos tribunais constitucionais representa a demonstração cabal da vitória de Kelsen sobre Schmitt nesse tema. A discussão entre esses dois autores não pode ser dissociada de suas diferentes perspectivas históricas,[10] sócio-políticas[11] ou teóricas[12]. Porém, mesmo guardadas as especificidades, é possível sintetizar as duas teses nos seguintes termos: para Kelsen, a guarda da constituição deveria ser entregue a um único órgão de natureza jurídico-política, que seria responsável por exercer uma jurisdição constitucional, apartada da jurisdição comum; jurisdição constitucional essa que expressaria uma competência legislativa negativa, retirando normas do ordenamento com efeitos gerais e abstratos. Esse modelo foi criticado por Schmitt a partir de pelo menos três grandes argumentos: inicialmente, a atribuição da guarda da constituição a um tribunal acarretaria uma alteração substancial na separação dos poderes, desnaturando a posição institucional do legislador. Ademais, o caráter programático das constituições modernas — e em especial da Constituição de Weimar, de 1919 — seria incompatível com a função jurisdicional, voltada a operações de subsunção. E, por fim, o modelo do tribunal constitucional não seria democrático, criando uma aristocracia togada com competência para formular preceitos constitucionais.[13] No contexto da polarização política, a função de defesa constitucional deveria ser outorgada a um poder neutro e democraticamente legítimo, daí a indicação do presidente do Reich como o guarda da Constituição.[14]

Essas teses, ainda que aparentemente opostas, podem ser entendidas como complementares, como meios distintos e concorrentes de preservar a constituição, entendida tanto como diploma normativo máximo quanto como decisão política fundamental do Estado.

Ainda que aos tribunais constitucionais seja dada a função de guarda cotidiana da constituição, o que indica o triunfo da tese kelseniana; é inegável que há situações em que a defesa da constituição não pode ficar sob a responsabilidade de um órgão jurídico-político, desaparelhado para o enfrentamento de graves crises institucionais. Nesses casos, a intervenção de um poder político se faz necessária, voltando à tona o ideário de Schmitt.

Exemplo disso se tem na crise vivida na Espanha, com a tentativa de golpe de 23 de fevereiro de 1981, nos primeiros anos da redemocratização e da vigência da Constituição de 1978. Nesse dia, enquanto o Congresso dos Deputados votava a investidura de um novo governo, o Parlamento foi invadido por militares, que anunciaram a tomada do poder. Nesse mesmo instante, a televisão estatal foi igualmente dominada por militares e as tropas de algumas regiões militares espanholas — assim como a mais poderosa divisão blindada de Madrid — se revoltaram.[15]

Fica claro, nesse episódio, que a decisão política fundamental para a Espanha democrática estava em risco e que contra esse atentado nada poderia fazer — como de fato nada fez — o Tribunal Constitucional espanhol, por meio da prolação de decisão alguma no exercício da jurisdição constitucional.

A defesa da constituição veio pela da intervenção, na madrugada do dia 24 de fevereiro, do rei da Espanha, que por meio de um pronunciamento em rede de televisão — já recuperada dos rebelados —, garantiu a opção pelo regime democrático e pelo sistema parlamentar de governo, determinando o retorno de todos os revoltosos a seus quartéis.

Assim, como bem registra Carolina Cardoso Guimarães Lisboa, tribunal constitucional e chefe de Estado “têm, nos limites de suas competências, o papel de guarda da Constituição: um na dimensão política e o outro na jurídica; dimensões essas necessariamente complementares”.[16]

Isso demonstra não só que é um equívoco afirmar o categórico triunfo de Kelsen sobre Schmitt, mas também que a discussão sobre o guarda da constituição, sim, tem como pano de fundo a questão da legitimidade democrática dos órgãos de controle, que podem ser classificados a partir de referenciais de maior ou menor responsabilidade política e ainda de maior ou menor tecnicidade jurídica, em sistemas que se completam para a máxima garantia da estabilidade institucional.


[1] Cf. notícia publicada no blog “Politico”: http://politi.co/16mXJU3
[2] Para uma análise jornalística do papel de Kennedy como swing vote da Suprema Corte americana, ver: Jeffrey Toobin. The Nine. Inside the secret world of the Supreme Court, New York: Anchor Books, 2007,Kindle edition, posição 3095 e seguintes.
[3] Para a íntegra da decisão da Suprema Corte neste último caso: http://www.documentcloud.org/documents/717750-supreme-court-ruling-on-doma-annotated.html
[5] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do processo legislativo, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 14.
[6] “Quem tem alguma experiência e honestidade intelectual sabe que o uso e o abuso da medida provisória estão associados a uma crise do processo decisório no âmbito do Poder Legislativo, que tem razões bem mais profundas”, Gilmar Ferreira Mendes, “Prefácio”, in: José Levi Mello do Amaral Junior. Medida Provisória: edição e conversão em lei, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 15. Interessante notar que, no Brasil, muitos dos que criticavam – e ainda criticam – a concentração da função legislativa no Executivo, por conta da crise parlamentar, utilizam a mesma justificativa da crise para explicar as decisões mais “ativistas” do Supremo Tribunal Federal.
[7] Esse é um caso interessante: o instrumento de legiferação do Executivo, ante a inoperância do Legislativo – a medida provisória –, foi superado por uma lei democraticamente votada no Parlamento, que agora se encontra impugnada por meio de ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI 4901, rel. Min. Luiz Fux).
[8] “But defenders of judicial review ought to start making their claims for the practice frankly on that basis — and make it with a degree of humility and shame in regard to the circumstances that elicit it — rather than preaching it abroad as the epitome of respect for rights and as a normal and normatively desirable element of modern constitutional democracy” (cf. “The Core of the Case Against Judicial Review”, p. 1406).
[9] Os textos dessa polêmica estão em: Hans Kelsen. Jurisdição constitucional, São Paulo: Martins Fontes, 2003; e Carl Schmitt. O guardião da constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
[10] Carolina Cardoso Guimarães Lisboa anota os peculiares contextos históricos em que Kelsen e Schmitt desenvolveram suas teorias (cf. “O guarda da constituição e sua legitimidade: a polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre a proteção da Constituição”, in: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 457-468).
[11] Carlos Miguel Herrera ressalta como a polêmica foi influenciada pelo contexto de crise social decorrente do crash de 1929 (cf. “La polemica Schmitt-Kelsen sobre el guardian de la Constitucion”. Revista de Estudios Politicos (Nueva epoca), n. 86, 1994, p. 195-227).
[12] Virgílio Afonso da Silva sublinha que a polêmica deve ser analisada a partir da concepção própria que cada autor tinha em relação ao termo “constituição”: “Essa polarização, frequentemente utilizada quando se discute o controle de constitucionalidade, tem que ser vista com grandes temperamentos. O primeiro deles decorre da clássica diferença que Schmitt fazia entre constituição e lei constitucional, diferença esta já suscitada anteriormente por Barthélemy e Duez. Constituição, segundo Schmitt, seriam as decisões fundamentais de uma ordem política. Já lei constitucional aproximar-se-ia daquilo que muitas vezes é chamado de constituição em sentido formal, ou seja, o documento – ou os documentos – solenemente promulgado e hierarquicamente superior às leis ordinárias em decorrência de um processo mais difícil de emenda. O importante aqui é salientar que é ao primeiro conceito de constituição que Schmitt quer fazer referência quando fala em ‘guardião da constituição’” (cf. “O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública”. Revista de direito administrativo, n. 250, 2009, p. 197-227).
[13] Para um precisa síntese das posições dos dois autores, ver: Roger Stiefelmann Leal. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, São Paulo: Saraiva. 2006, p. 46-58.
[14] Registre-se aqui que Schmitt defende ser o Presidente do Reich, dentro das atribuições previstas na Constituição de Weimar, o guarda da Constituição e não o Führer, como alguns autores brasileiros, inadvertida e equivocadamente, ensinam em suas obras. Até mesmo porque a polêmica se desenvolveu antes de Hitler ascender à Chancelaria do Reich, o que se deu em 1933, e de assumir, também, as funções de Presidente do Reich com a morte do Marechal Paul von Hindemburg, em 1934. Tal confusão é mais um indício de que essa matéria é muito citada, mas pouco estudada…
[15] Para um interessante relato desses acontecimentos, ver: Javier Cercas. Anatomia de um instante, Biblioteca Azul, 2012.
[16] Cf. “O guarda da constituição e sua legitimidade: a polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre a proteção da Constituição”, p. 468.

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