Critério objetivo

CNJ trabalha contra a independência da magistratura

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16 de outubro de 2013, 7h00

Há alguns meses tive a oportunidade propor no texto “Dever constitucional obriga juiz a fundamentar decisões” uma heterodoxa leitura da norma do artigo 131 do Código de Processo Civil como um fator de constrição do discricionarismo judicial. Dizia que julgar livremente de acordo com as provas constantes dos autos significa estar o juiz impedido de julgar com base em elementos de prova não presentes nos autos (o que é bem óbvio) e, mais do que isso, interditar a possibilidade de que o resultado de um julgamento seja determinado por influências e pressões externas. Nada que não esteja nos autos e que possa ser objeto de ciência e de crítica pelos interessados na decisão judicial pode ser levado em conta no ato de decidir.

A simpatia pessoal do julgador pelos desabrigados, por exemplo, não poderia ser fator determinante para o julgamento de improcedência de uma demanda de reintegração de posse. Semelhantemente, o fato de o julgador possuir terras não deve influir decisivamente no julgamento de uma demanda de usucapião.

Tudo isso porque, num Estado de viés democrático, não existe justiça sem possibilidade de participação e sem chances de influir no resultado das decisões estatais, daí o relevantíssimo papel reservado aos profissionais da advocacia. Dizia, naquela ocasião, que as decisões judiciais, num Estado democrático, não valem como decorrência exclusiva do princípio da autoridade, mas por serem resultado do contraditório e do embate de pretensões contrapostas defendidas com fervor por causídicos independentes.

E embora naquele texto estivesse mais cioso de ressaltar a importância da advocacia, que não seria uma “mera instituição contadora de fatos para um futuro e mágico enquadramento jurídico a ser feito pela autoridade judicial”, deixando transparecer um tom de uma pesada crítica contra certos procedimentos autoritários judiciais, a magistratura, como classe e poder estatal, não foi efetivamente meu alvo. Afinal, só há advogados porque há juízes e vice-versa. Como bem lembra Calamandrei, o destino dessas duas classes de profissionais está tão intimamente ligado que não é exagero dizer que a desgraça de uma delas significa, na mesma proporção, o ocaso da outra. Apontar, portanto, os perigos que rondam a magistratura, é, a um só tempo, salvaguardar a própria magistratura e igualmente a advocacia.

Com esse espírito, advogando concomitantemente em causa própria e prol da magistratura, volto minhas atenções à Resolução 106, de 6 de abril de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que ao dispor “sobre critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2o grau”, introduz desavisadamente na dinâmica do processo fatores externos, em detrimento do contraditório que legitima as decisões judiciais.

Referida Resolução prevê em seu artigo 4o que, na avaliação do merecimento dos postulantes à promoção, os membros votantes do Tribunal deverão declarar os fundamentos de sua convicção, apreciando os seguintes critérios: 1) desempenho (aspecto qualitativo da prestação jurisdicional); 2) produtividade (aspecto quantitativo da prestação jurisdicional); 3) presteza no exercício das funções; 4) aperfeiçoamento técnico; 5) adequação da conduta ao Código de Ética da Magistratura Nacional (2008).

Na ânsia de tornar objetiva a avaliação da qualidade das decisões, propõe-se no artigo 5o da norma do CNJ que seja levado em conta o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais superiores, paralelamente a outros critérios supostamente “objetivos” como a redação, a clareza, a objetividade, e a pertinência de doutrina e jurisprudência, quando citadas. E o respeito às leis? E o respeito à Constituição? E o respeito às provas e as circunstâncias constantes dos autos? Para o CNJ, nada disso importa. Pelo jeito, basta respeitar as súmulas, vinculantes ou não, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores.

Com efeito, por inúmeras razões, a proposta do CNJ é de uma despropósito sem fim. A par de ser praticamente inviável medir-se objetivamente critérios como “objetividade”, “clareza” e “redação”, os membros votantes simplesmente não podem, numa sessão administrativa, exercer qualquer tipo de crítica, elogiosa ou não, sobre a adequação do ato judicial às súmulas do STF ou dos Tribunais superiores. Isso porque o votante possivelmente será um dos desembargadores que apreciará numa sessão jurisdicional a apelação contra a sentença, momento em que precisa ter absoluta isenção para apreciar livremente o recurso interposto.

O magistrado que pretende ser promovido, no mundo ideal do CNJ, é aquele que se mostra propenso a reproduzir mecânica e acriticamente a jurisprudência do STF e dos tribunais superiores. A uniformização dos pronunciamentos judiciais deixou de ser um objetivo mais ou menos secundário dentro da função de fazer justiça, ou um mero reflexo da influência que exerce a excelência de decisões paradigmáticas, assim reconhecidas pela comunidade jurídica, para ser praticamente um fim em si mesmo, e incentivado por normas que trazem sanções premiais como a possibilidade de promoção por merecimento mais expedita.

Para deixar claro esse desiderato, em nome do “princípio da responsabilidade institucional” (???) propõe o CNJ textualmente que o magistrado abdique de seu próprio entendimento, como um fator de disciplina judiciária se quiser ser promovido por merecimento. Verbis: “a disciplina judiciaria do magistrado, aplicando a jurisprudência sumulada do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com registro de eventual ressalva de entendimento, constitui elemento a ser valorizado para efeito de merecimento, nos termos do princípio da responsabilidade institucional, insculpido no Código Ibero-Americano de Ética Judicial (2006)” (cf. parágrafo único do artigo 10).

Com toda essa promessa de valorização na promoção, não espanta a prática de tantos magistrados ressalvarem seu próprio entendimento em suas sentenças. É até possível imaginar que alguns mais marotos, mesmo concordando integralmente com a “jurisprudência sumulada”, afetarão um certo descontentamento ou rebeldia dizendo “ressalvo meu ponto de vista para me curvar à Súmula X” só para ser valorizado na sonhada promoção por merecimento.

Além de sugerir que o magistrado não se atenha aos autos, violando o artigo 131 do CPC, julgando com a mira voltada na sua própria promoção, para o total desespero da advocacia, a Resolução 106, de 2010, parece ter derrogado o Código de Ética da Magistratura, aprovado pelo próprio CNJ em 2008, ao menos no que tange ao disposto no artigo 5o: “Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos”. Afinal, o que seria a norma do parágrafo único do artigo 10 senão uma influência externa e estranha à conformação da convicção do julgador?

Porém, caso se entenda como ainda vigente o artigo 5o do Código de Ética acima mencionado, bem assim a previsão de seu artigo 6o, segundo a qual “é dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise a limitar sua independência”, espera-se que a magistratura, para o bem dos causídicos de todo o país, levante-se contra quaisquer dispositivos regulamentares que, assim como o artigo 5o e o parágrafo único do artigo 10 da Resolução-CNJ 106/2010, representem o mais módico incentivo a que não exerçam seu próprio entendimento sobre os argumentos deduzidos pelas partes, sobre as provas colhidas em contraditório, sobre as leis, e sobre a Constituição.

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