Justiça Tributária

A Receita, o poder descontrolado e a ditadura fiscalista

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

14 de outubro de 2013, 8h00

Spacca
Está em andamento na Câmara a PEC 186/07 que pretende conceder autonomia administrativa, financeira e funcional às administrações tributárias de todos os entes federativos (União,Estados, DF e Municípios).

Essa PEC é de autoria do deputado Decio Lima (PT-SC) e, caso seja aprovada, vai conseguir o que ainda não se alcançou por completo no país: a instituição definitiva da ditadura fiscalista e um novo poder, fragmentado e totalmente descontrolado.

O texto da PEC é curto e singelo: composto de apenas 3 artigos, o que autoriza sua integral transcrição:

“As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:
Art. 1º É acrescentado (sic) os §13 e §14 ao art. 37 da Constituição Federal, com a seguinte redação:
" § 13 – Lei complementar estabelecerá as normas gerais
aplicáveis à Administração Tributária da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, dispondo inclusive sobre
direitos, deveres, garantias e prerrogativas dos cargos de sua
carreira específica, mencionada no inciso XXII deste artigo.
§ 14 – Às Administrações Tributárias da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios são asseguradas autonomia
administrativa, financeira e funcional, e as iniciativas de suas
propostas orçamentárias dentro dos limites estabelecidos na Lei
de diretrizes orçamentárias.”
Art. 2º. A Lei complementar referida no artigo 1° desta Emenda deverá ser apresentada no prazo de cento e oitenta dias, contados da promulgação da mesma.
Art. 3º Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação.”

Parece-nos uma verdadeira temeridade que se discuta tal possibilidade, ante os recorrentes abusos cometidos pelos fiscos de todos os níveis, cujas arbitrariedades provocam verdadeiras avalanches de medidas judiciais que se promovem para proteger o direitos dos cidadãos.

Autonomia funcional
Pretender conceder autonomia funcional aos agentes do fisco é criar uma nova carreira de pessoas especiais, cujos poderes não terão limites razoáveis.

A Lei 8.112/90, conhecida como Estatuto do Servidor Público Civil da União, é composta de 253 artigos, sendo que metade deles refere-se a vantagens e benefícios a tais servidores, cujo somatório os transformou na mais privilegiada e protegida classe de trabalhadores do mundo.

Por isso mesmo, essa carreira é o sonho de milhares ou milhões de brasileiros, que enriquecem os donos de cursinhos. Seria muito interessante que fossem lidos por todos os artigos 40 a 116 e 183 a 230 da referida lei. Muitos brasileiros, lendo-os, poderiam cometer um pecado muito feio: a inveja.

Acreditamos que todos ou pelo menos a grande maioria desses servidores trabalham em benefício do país. Mas isso não justifica que, além desses benefícios todos, possamos dar-lhes autonomia funcional, financeira ou administrativa. Por melhores que sejam, tais servidores não podem constituir um poder dentro do poder.

Autonomia financeira
Quando a PEC fala em autonomia financeira, parece que dará à administração tributária o poder que hoje possuem o Judiciário e o Legislativo.

Tais poderes recebem verbas orçamentárias do Tesouro Público (vale dizer, dinheiro dos brasileiros) e gastam como melhor lhes aprouver, dentro de previsões orçamentárias que eles mesmos fazem.

Assim, suas verbas acabam sendo utilizadas em carros com motoristas, equipamentos cuja qualidade ou utilidade podem ser duvidosas, verbas para moradias, festas, medalhas honoríficas, cursos no exterior, enfim, uma festa enorme.

Se os membros do judiciário e do legislativo e até mesmo delegados fazem questão de ser chamados de excelência, provavelmente os agentes do fisco exigirão igual tratamento. Assim, a tal autonomia financeira não faz sentido.

Autonomia administrativa
A justificação da PEC é muito simples e concisa, apresentada numa única folha. Como os nossos legisladores não são exemplos de concisão, mas esmeram-se na arte de muito falar e escrever, para quase sempre nada dizer, foi difícil encontrar no anexo da PEC o que seria a tal autonomia administrativa.

O que se vê ali, de forma vaga, é a possibilidade de virem as administrações tributárias a organizar seus próprios serviços, dispor dos próprios recursos e estabelecer suas propostas orçamentárias.

Finaliza o autor da PEC, afirmando que deseja assegurar os direitos do cidadão, dando qualidade às Administrações Tributárias eficácia e justiça fiscal.

Se tanto deseja o ilustre parlamentar assegurar os diretos do cidadão, poderia tentar ajudar no andamento do Código de Defesa do Contribuinte (PL 2557/2011) de autoria do deputado Laércio Oliveira (PR-SE).

Esse argumento de “assegurar direitos do cidadão”, dando poderes praticamente absolutos às administrações tributárias, é pelo menos incoerente, para não dizer totalmente absurdo.

Não é preciso ser muito esperto para ler nas entrelinhas. Já verificamos os grandes esforços que os sindicatos de auditores desenvolvem pela aprovação da proposta.

Todavia, isso pode ser um tiro no próprio pé, quando o assunto for amplamente discutido. Não acreditamos que a sociedade brasileira concorde em dar mais regalias a uma categoria de profissionais que já foi, justamente ou não, apelidada de marajás. Afinal, ter todas as regalias da lei 8112,como estabilidade, aposentadoria integral, etc. e ainda poder gastar as verbas como quiser, seria o máximo.

Mas há um porém: na justificativa da PEC fala-se em “dispor dos próprios recursos”. Mas esses recursos são do POVO , não da Receita. Ela administra (aliás, muito bem) o nosso dinheiro, não os “próprios”. Isso se aplicaria à União e a todos os Estados e Municípios. Já se imaginou que beleza isso nos estados mais atrasados, onde sem autonomia já se faz uma festa permanente com o dinheiro dos pobres?

Vê-se, pois, que a PEC foi feita às pressas e vem sendo conduzida de forma quase misteriosa, sem que a sociedade brasileira tenha se tomado conta do perigo de uma nova fragmentação do poder que é do povo, esse mesmo povo $que sofre com uma das maiores cargas tributárias do mundo.

No meio da confusão
No meio dessa confusão toda, recentemente um auditor da Receita, no cargo de chefe da fiscalização, teria reclamado da “ingerência externa em decisões do órgão”, o que o fez exonerar-se.

A tal “ingerência externa”, ao que parece, seria a lei que permite novos parcelamentos de dívidas fiscais, medida contra a qual as associações ou sindicatos dos servidores fazendários foram contrários.

A lei, no caso, tenha ou não sido resultado de MP, veio a lume nos termos da CF. Não se trata de ingerência, mas de decisão legítima, de quem detém o poder de decidir.

Não colocamos em dúvida a capacidade técnica das autoridades fazendárias, o que está mais que comprovado com os constantes recordes de arrecadação, embora a economia esteja aquém do desejado. Sem dúvida a nossa Receita é uma das melhores do mundo.

Todavia, isso não lhe dá poder para decidir como a lei deve ser feita ou mesmo cumprida. Servidor serve. Quem faz a lei é o legislador. Quem julga se a lei está certa ou não é o Judiciário. Como nos ensinou Riachão, o poeta e compositor nordestino: cada macaco no seu galho. Chô! Chuá!

Além das normas da lei 8.112/90, os servidores do poder executivo federal estão ainda sujeitos a um severo Código de Ética, contido no decreto 1.171 de 22/6/94, cujas primeiras 3 regras afirmam:

I – A dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele, já que refletirá o exercício da vocação do próprio poder estatal. Seus atos, comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos.
II – O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal.
III – A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo.

Na regra XIV do mesmo Código, afirma-se que:

XIV – São deveres fundamentais do servidor público:
h) ter respeito à hierarquia, porém sem nenhum temor de representar contra qualquer comprometimento indevido da estrutura em que se funda o Poder Estatal;
i) resistir a todas as pressões de superiores hierárquicos, de contratantes, interessados e outros que visem obter quaisquer favores, benesses ou vantagens indevidas em decorrência de ações imorais, ilegais ou aéticas e denunciá-las;
Assim, de um lado é louvável o fato de que o mencionado servidor decidiu exonerar-se do cargo. Todavia, não nos parece adequado afirmar ingerência externa em decisões do órgão a que pertence ou pertencia, sem que tenha cumprido a regra da letra h acima : representar contra qualquer comprometimento indevido da estrutura em que se funda o Poder Estatal. Quem sai atirando deve dizer qual é o alvo.

As entidades da sociedade civil – especialmente a Ordem dos Advogados do Brasil (à qual estou encaminhando cópia dos estudos a respeito do assunto) devem ficar atentas para impedir que os poderes públicos que tanto nos atormentam, sejam mais multiplicados, com a fragmentação do Executivo, cujo controle já é muito difícil de ser feito.

Vocês já imaginaram termos administrações tributárias dotadas de autonomia financeira, administrativa e funcional, em cada estado, em cada um dos cerca de 6.000 municípios desse imenso país? Não tem como funcionar! Isso seria um super poder descontrolado e, pior ainda, uma verdadeira ditadura fiscalista.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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