Processo Novo

Questão das biografias deve observar casos concretos

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

14 de outubro de 2013, 8h00

Spacca
Em outros textos da coluna Processo Novo, publicados aqui na ConJur, tenho destacado algumas das dificuldades relacionadas à construção de soluções jurídicas fundadas em princípios. A dificuldade cresce ao se tomar os direitos fundamentais, a priori, como princípios.

Muitas vezes, no entanto, os problemas devem ser resolvidos a partir da correta definição dos direitos fundamentais e de seus limites, sem necessidade de se recorrer à ponderação entre tais direitos (ou ponderação entre princípios).

Tome-se, por exemplo, a discussão que gira em torno da exigência de autorização prévia para publicação de biografias. A publicação de biografias não autorizadas estaria em consonância, ou não, com a Constituição?

O âmbito de proteção dos direitos fundamentais é aferível, num primeiro plano, a partir da identificação de seu suporte fático. Materializando-se tal como previsto na norma jurídica de modo abstrato, o suporte fático ganha concretude, tornando-se fato jurídico.1

Assim, como não há fato jurídico senão quando da combinação entre norma e suporte fático, o mesmo se pode dizer quanto à configuração dos direitos fundamentais. Definir o suporte fático de um direito fundamental é o primeiro passo a ser dado para se conhecer seu âmbito de proteção.

Às normas que contemplam direitos fundamentais podem ajustar-se alguns fatos, se vislumbrados isoladamente. Mas, para que tal ajuste ocorra, pode ser necessária a concorrência de outros fatos, a conjugação ou, até, o confronto com outras esferas de direitos fundamentais. É o que ocorre no caso que nos propomos a analisar no texto da coluna de hoje: de um lado, de acordo com o artigo 5º, inciso IV, da Constituição, “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; o artigo 5º, inciso XIV, por sua vez, dispõe que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; por outro lado, o artigo 5º, inciso X, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

É possível dizer, diante disso, que o artigo 20 do Código Civil2 é inconstitucional?

A resposta a questão, creio, deve ser construída a partir das variáveis que se oferecem, em relação aos direitos em conflito.

Parece possível pensar que um direito fundamental surge, desde logo, com seus limites determinados, que seriam seus limites imanentes (teoria interna). Mas isso não explica satisfatoriamente as hipóteses em que a medida de um direito fundamental é obtida quando de seu confronto com outro direito, como sucede no caso ora analisado. É mais adequado compreender, além do direito em si, também as suas restrições (teoria externa).3

Embora seja difícil definir seus limites, afirma-se que os direitos fundamentais contêm algo intocável, que não pode ser sacrificado em nenhuma hipótese. A essa porção costuma-se denominar “conteúdo essencial” ou “núcleo intangível”. Considera-se, diante disso, que as restrições a direitos fundamentais são limitadas. Evita-se, com isso, que alguma cláusula constitucional, em juízos de “ponderação” (realizados pelo legislador ou pelo juiz, ao julgar uma causa), elimine algum direito fundamental.

Para alguns, seria possível definir o núcleo essencial de direitos fundamentais a priori. Trata-se da denominada teoria absoluta, a que se opõe a teoria relativa, segundo a qual o grau de importância de um direito fundamental somente pode ser compreendido à luz de conflitos concretos.4

Assim, por exemplo, a liberdade de expressão tem um núcleo essencial. Liberdade de manifestação de pensamento consiste, basicamente, em direito de expressar algum juízo fruto da consciência, abrangendo qualquer meio que permita comunicar tal faculdade intelectual. Aqui, parece que o direito de publicar algo sem se submeter, previamente, a um censor, é algo que decorre da regra constitucional.5 O artigo 220, parágrafo 2.º da Constituição confirma, literalmente, essa regra básica.6

Há limites ao exercício desse direito, contudo. A liberdade de expressão pode ser balizada, por exemplo, pelo direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, previsto no art. 5.º, X. Também pode ocorrer que, exercido o direito à manifestação de pensamento e detectado que seu conteúdo é racista, sua veiculação seja proibida e o autor da ofensa responsabilizado, civil (cf. art. 5.º, V) e criminalmente (cf. art. 5.º, XLII).7

O mau exercício do direito à liberdade de expressão, assim, pode ser controlado.

Sob esse prisma, não parece adequado afirmar que a publicação de biografias não autorizadas seja uma atitude contrária à Constituição. Mas também não é possível afirmar, a priori, que o artigo 20 do Código Civil seja inconstitucional. Há situações, contudo, em que, à luz do que estabelece a Constituição, as restrições presentes no artigo 20 do Código Civil simplesmente não podem incidir.

Escrevemos, em obra antes referida,8 que a tutela à imagem representa bem que projeta a dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual a concessão de direito de informação sobre a vida e esfera íntima da pessoa depende, como regra, de sua anuência. Não consideramos absoluto o argumento de que prevaleceria, sempre, o direito à informação, face a possibilidade de tutela ressarcitória. A tutela ressarcitória, em confronto com um direito fundamental da personalidade, é secundária, sendo a tutela preventiva específica preferencial, em relação ao ressarcimento.

Por outro lado, o direito à informação deve prevalecer quando patente sua importância para o meio social. Por isso, por exemplo, uma biografia não autorizada, quando se refira a fatos históricos e relativos a questões de interesse social ou cultural, acaba não sendo restringível pelo direito à privacidade e intimidade da pessoa. Mas isso decorre, segundo meu modo de pensar, do modo como a própria pessoa dimensiona sua própria imagem.

A proteção à imagem é limitada, por exemplo, quando a pessoa usa suas características e qualidades pessoais publicamente em seu benefício (em sua vida profissional, por exemplo). Com isso, a pessoa autolimita a proteção à sua privacidade e intimidade, na medida em que tal atributo integre o rol de qualidades relacionadas ao papel social exercido pela pessoa.

Assim, por exemplo, um político, de quem se exige um comportamento irrepreensível no trato com o bem público, não pode obstar a que informações referentes ao aumento significativo de sua riqueza venham a público. Informações íntimas ou da vida privada de um político podem ser relevantes para que seus eleitores o conheçam como homem público.9 Semelhantemente, um artista tem direito a que não se revele a existência de uma doença grave, o que pode não acontecer, necessariamente, com um atleta, que construiu publicamente e explora a autoimagem de pessoa saudável.

A Constituição refere-se a dois níveis de privacidade, um mais amplo, outro mais restrito. Vida privada opõe-se à noção de vida pública, já que se refere a dados e informações da pessoa que não são compartilhados com todos, indistinta e universalmente. Essa diferenciação, a nosso ver, é importante nos dias atuais, em que muitas pessoas optam, deliberadamente, por expor informações de sua vida publicamente (seja em jornais, revistas ou programas televisivos, seja em redes sociais na internet). Tais noções devem ser compreendidas a partir do modo como a pessoa considera a si mesma (o que o próprio indivíduo considera uma informação íntima, p.ex.) e o modo como a pessoa usa seus atributos no convívio social.

Semelhantemente é o que sucede com a proteção à imagem. Também aqui deve-se considerar como a pessoa construiu e usa a sua imagem, o que acabará por repercutir em seu âmbito de proteção. Parece difícil sustentar, por exemplo, que alguém que construiu sua persona publicamente considere inadmissível que as informações relacionadas a sua trajetória sejam objeto de uma obra biográfica.

Por isso que, embora não se deva admitir censura prévia, deverão ser consideradas, na aplicação do artigo 20 do Código Civil face às disposições constitucionais mencionadas, as peculiaridades do caso. Poderá haver situações em que, além de ser dispensável a autorização prévia, mesmo a recusa expressa deverá ser superada.

Penso, contudo, que não há que se falar em “ponderação” entre direitos fundamentais, no caso, mas, sim, da correta definição dos bens a serem protegidos. De um lado, a censura prévia é inadmissível, à luz do texto constitucional. Uma vez realizada a publicação de biografia não autorizada, excessos poderão ser podados e, para isso, será necessário precisar os limites da imagem a ser protegida. Será indispensável identificar, meticulosamente, os limites da imagem da pessoa de cuja biografia se está a tratar, para se saber o que deve ser protegido, e o que escapa do âmbito de proteção à imagem.

1 Escrevi sobre suporte fático e fato jurídico há mais de 20 anos, sob o ponto de vista do direito civil. Continuo seguindo aquele modo de pensar, a respeito do assunto (A importância do elemento volitivo na configuração do ato jurídico, Direito em ação, 1991, p. 5). Mais recentemente, tratei do tema, sob o prisma constitucional (CF Constituição Federal comentada, 2. ed., Ed. Revista dos Tribunais, comentário ao artigo 5.º). Em obra que se encontra no prelo, que escrevo em coautoria com Fábio Caldas de Araújo, volto a tratar da questão, mais uma vez com foco no direito civil (cf. CC Código Civil comentado, no prelo).

2 Diz o artigo 20 do Código Civil o seguinte: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”

3 V., mais amplamente, o que escrevi na CF Constituição Federal comentada, cit., com citação de ampla doutrina, a respeito do tema.

4 Sobre os “limites imanentes” ou “limites dos limites” (Schranken-Schranken), cf. doutrina e jurisprudência que citamos em CF Constituição Federal comentada, cit.

5 Cf., a respeito, STF, ADIn 4.451, rel. Min. Ayres Brito, j. 02.09.2010.

6 De acordo com o art. 220, § 2.º da Constituição, “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

7 Decidiu-se, por exemplo, que “o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra” (STF, HC 82424, rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, Pleno, j. 17.09.2003).

8 Cf. CC Código Civil comentado, em coautoria com Fábio Caldas de Araújo, cit.

9 Decidiu-se que “a redução do âmbito de proteção aos direitos de personalidade, no caso dos políticos, pode em tese ser aceitável quando a informação, ainda que de conteúdo familiar, diga algo sobre o caráter do homem público, pois existe interesse relevante na divulgação de dados que permitam a formação de juízo crítico, por parte dos eleitores, sobre os atributos morais daquele que se candidata a cargo eletivo” (STJ, REsp 1025047/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 26.06.2008).

 

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