Reforma constitucional

Não há vício de iniciativa no projeto que cria novos TRFs

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14 de outubro de 2013, 7h48

Após mais de dez anos de tramitação, de discussão e votação nas duas casas do Congresso Nacional e aprovada por mais de três quintos dos seus membros, democraticamente eleitos, em votações feitas em dois turnos em cada uma delas, uma decisão liminar monocrática feita, em um único dia e horas após o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (em prejuízo de diversos habeas corpus pendentes de análise), suspendeu os efeitos da emenda que criou quatro novos Tribunais Regionais Federais no Brasil.

Esta liminar decorreu de ADI ajuizada por associação que representa alguns procuradores federais, sob o fundamento de que seria inviável a criação dos novos TRFs sem a criação de correspondente quadro de procuradores federais.

Para se propor uma ADI, alguns órgãos e entidades necessitam demonstrar a pertinência temática entre seus propósitos institucionais e a ação ajuizada. Para a referida associação, e para o ministro Joaquim Barbosa, que deferiu a liminar, parece que existe pertinência temática entre a criação de novos tribunais e a eventual, futura e incerta necessidade de se aparelhar melhor a Procuradoria Federal.

Analisando-se de outro modo, o precedente indica que uma carreira vinculada ao Executivo poderá sempre pretender obstar a ampliação de uma carreira vinculada a outro poder, no caso, o Judiciário.

Não se pode esquecer, porém, que a alegada necessidade da estruturação de carreira é matéria afeta apenas ao poder a que está vinculado, ou seja, cabe exclusivamente à Administração Pública Federal a análise discricionária da necessidade ou não de sua ampliação, não tendo como se atribuir ao Judiciário tal prerrogativa.

Até porque, caso assim o fosse, todo e qualquer projeto visando alterar a estrutura do poder Judiciário necessitaria de prévia autorização da referida associação ou de prévia estruturação da Procuradoria Federal correspondente. Jamais se poderia, por exemplo, criar uma vara federal sem antes ter se criado um quadro de procuradores federais, com a tramitação que é peculiar, ou seja, promoção de concurso público, lotação e posse do procurador, para somente então poder ser instalada a vara federal.

Embora evidente a ausência de pertinência temática[1] da referida associação na ADI, este texto tem por objetivo a análise de outro tema constante da ADI, qual seja, o alegado vício de iniciativa.

Quanto a este, a decisão liminar da ADI afirma que: “A Constituição de 1988 (art. 96, II, a, b, c e d) manifestamente quis romper com o passado de dependência do poder Judiciário em relação aos poderes políticos, ao conferir aos tribunais superiores e aos tribunais de justiça o poder de iniciativa quanto à ‘criação ou a extinção de tribunais’ (art. 96, II, c da Constituição). Este é um aspecto crucial da independência do Judiciário em nosso país.”

A decisão não entra no mérito do que se deve entender por iniciativa, muito embora desde sempre se entende que diz respeito à iniciativa legislativa.

O equívoco reside no fato de que a emenda que criou os novos TRFs foi uma alteração constitucional decorrente do exercício do Poder Constituinte Derivado Reformador e não de simples atividade legislativa ordinária. Trata-se de reformar a própria Constituição e não apenas se aprovar uma lei comum.

O Poder Constituinte Derivado Reformador é o único poder legitimado a alterar a Constituição e está, apenas e tão somente, limitado às cláusulas pétreas constantes do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal (voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais), nenhuma das quais foi afetada pela Emenda Constitucional que criou os novos TRFs.

Com efeito, não houve ofensa alguma à separação dos poderes, mas, muito pelo contrário, referida emenda visou justamente reforçar a independência entre os poderes na medida que tem por objetivo fortalecer o poder Judiciário “ampliando a estrutura já existente, significando com isso respeito à função jurisdicional, atividade típica da autoridade judiciária, e, por isso mesmo, ao arranjo constitucional da separação de poderes”[2], permitindo que a Justiça Federal de segundo grau possa ter uma estrutura mínima compatível com o grau de importância das matérias que julga e da quantidade de processos em seu acervo.

É a Justiça Federal quem concede aos idosos, carentes, inválidos e trabalhadores os benefícios previdenciários negados indevidamente pelo INSS. É a Justiça Federal que julga os casos de improbidade administrativa (desvios de recursos públicos, o enriquecimento ilícito, etc) cometidos por agentes públicos federais (deputados federais, senadores, delegados, policiais, etc.), bem como é ela quem julga os crimes de tráfico internacional de drogas, os crimes políticos, as ações praticadas por organizações criminosas, os crimes ambientais, de tráfico de mulheres, de pornografia infantil, pedofilia, de lavagem de dinheiro, de corrupção praticados por agentes federais, desvios de verbas federais por prefeitos, etc.

Atualmente os recursos contra as decisões dos juízes federais de todo o país são encaminhados a apenas cinco tribunais regionais federais, sendo que estes “estão com um grau de congestionamento gigantesco, mais de três vezes superior aos demais segmentos do judiciário, com um índice de congestionamento de mais de 66% e que, de acordo com os dados extraídos do ‘Justiça em Números 2012’, estudo elaborado pelo CNJ para verificar as condições do Judiciário Brasileiro, é o mais sobrecarregado do Judiciário Nacional”[3].

Tal condição se dá em razão da atual estrutura deficitária da Justiça Federal que possui apenas 5 TRFs, diferente dos demais ramos do judiciário, como o eleitoral, que possui 27 TREs, o trabalhista, com 24 TRTs, e a justiça estadual, com 27 TJs.

O Poder Constituinte Derivado Reformador, ao pretender fortalecer a Justiça Federal, em momento algum visou abolir cláusula pétrea, mas apenas criar quatro novos TRFs para ampliar a vazão de julgamentos proferidos em sede recursal.

Trata-se de medida plenamente possível e compatível com o nosso sistema Constitucional, pois “o art. 60, §4º não garante propriamente a intocabilidade dos preceitos constitucionais concernentes à forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos poderes; direitos e garantias individuais, mas sim certos princípios ou regimes materiais. A Constituição não retira estas matérias do campo de atuação do poder constituinte derivado.”[4]

Em outras palavras, a Constituição não retira estas matérias do campo de atuação do poder constituinte derivado, apenas impede que as mesmas sejam abolidas, ou seja, a separação de poderes não impede que se possa fazer uma correção constitucional em alguma distorção existente em algum dos poderes, desde que mantida a tri-partição dos Poderes, como ocorre no caso.

Nesse sentido o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto assevera que as emendas de reforma “cumprem a mesma função de reformar para corrigir, e não de ‘reformar’ como procedimento juridicamente espúrio de descontinuidade ou ruptura constitucional”.[5]

Se a Emenda Constitucional não visou abolir, mas meramente reformar para corrigir uma distorção, como no caso em questão, então não há qualquer violação à separação de poderes. Até porque, caso assim não o fosse, seria impossível adequar a Constituição às exigências do tempo, ficando esta estagnada face aos fatos sociais que conduzem a mudanças na realidade normativa do ordenamento jurídico.

E tanto isto é possível que diversas Emendas Constitucionais já reformaram competências dos poderes constituídos como, por exemplo, a EC 32/2001 que aumentou os poderes do presidente da República para estruturação dos ministérios em detrimento do próprio Congresso (julgada constitucional na ADI 2564/DF) e que ainda restringiu a competência do presidente da República para editar atos normativos originários, as medidas provisórias (julgado constitucional nas ADIMC 2984/DF, 2734/ES, ADI 2150/DF).

Inclusive competências dos tribunais superiores e do próprio STF também foram alteradas por meio de Emendas Constitucionais analisadas e consideradas constitucionais pelo STF, como a EC 24/1999 que extinguiu a representação classista na Justiça do Trabalho (julgada constitucional na ADI 1878/DF e ADIMC 2149/DF), a EC 3/93 (que aumentou as espécies de ações aptas a discussão de constitucionalidade e ampliou os efeitos de suas decisões) e a EC 45/2004 que alterou prerrogativas da magistratura, modificou a composição de alguns tribunais superiores, alterou competências, criou o órgão (CNJ) e extinguiu outro (tribunais de alçada) (julgada constitucional na ADI 3367/DF).

Não se pode olvidar, ainda, que a EC 45/2004, ao alterar prerrogativas da magistratura (como a questão de promoção, remoção e subsídios), competência de tribunais superiores (114 CF) e modificar composição de alguns tribunais superiores (art 104, 111-A e 115 CF) e do próprio STF (art. 103-A), além de criar um novo órgão e extinguir outros, atingiu matérias afetas ao próprio Supremo (arts. 93 e 96, II, a), e mesmo assim foi considerada constitucional.

Ora, se uma emenda constitucional, como a EC 45/2004, pode alterar a competência e composição de tribunais superiores (matéria afeta ao STF), se pode extinguir órgãos do poder Judiciário (tribunais de alçada) e criar órgão do poder Judiciário de formação heterogênea com função censora do próprio Judiciário, por que não poderia a EC 73/2013 criar novos TRFs que são tão órgãos do poder Judiciário (art. 92, inciso III, da CF) quanto o próprio CNJ (art. 92, inciso I-A, da CF)?

Não há fundamento jurídico válido para que não possam ser criados os novos TRFs, a não ser a predisposição pessoal e metajurídica para que os mesmos não existam.

Chama a atenção, neste particular, o fato de que nem sequer foi citada a recente e importantíssima decisão proferida na ADI 3367/DF, que reconheceu a constitucionalidade da EC 45/2004, na qual o próprio STF admitiu a possibilidade de o poder constituinte derivado criar órgãos do poder Judiciário por meio de Emenda Constitucional, como são os novos TRFs.

Além disso, tanto na inicial da ADI quanto na liminar proferida, foram citados apenas julgados do STF em que se reconhece a iniciativa reservada de lei, e não de emenda constitucional, como limite do poder constituinte derivado.

Os julgados se referem à impossibilidade de criação de Tribunal por meio de reforma da Constituição ESTADUAL decorrente de Emenda Constitucional de iniciativa de Assembléia Legislativa. Vale dizer: os julgados cuidam do chamado “poder constituinte derivado decorrente: aquele que é dado, original e secundariamente, pela Constituição Federal aos estados para elaboração e mudança de suas constituições. Não, porém, do derivado reformador”[6], o qual, como já decidiu o STF em várias ocasiões, permite tal reforma.

E esta diferença se dá porque, nos termos do voto do ministro do STF Ilmar Galvão, relator da ADI-MC 2011/SP, “o Poder Constituinte Decorrente é um Poder juridicamente limitado” e entre estes limites se encontram “os princípios estabelecidos, que limitam a autonomia organizatória dos Estados, incluindo entre esses o da iniciativa exclusiva dos Tribunais de Justiça dos Estados para as leis de criação ou extinção dos tribunais inferiores (art. 96, II, c) e de alteração de organização Judiciária (art. 96, II, d).[7]

Assim sendo, conclui o ministro que “fora de dúvida, portanto, que se está diante de matéria cuja disciplina foi excluída pela Constituição Federal na esfera dos poderes estaduais, não podendo sobre ela deliberar apenas o Poder Constituinte Estadual, mas, também, as Assembléias Legislativas, seja por meio de elaboração de lei, seja por via da emenda constitucional.”

Como a Constituição estadual está submetida aos princípios estabelecidos e, portanto, sujeita às regras estabelecidas na Constituição Federal, a qual refere competir privativamente aos tribunais de justiça propor a criação ou extinção dos tribunais inferiores, se uma Assembléia Legislativa, por meio de uma Emenda à Constituição Estadual, tenta contornar esta regra, esta norma é inconstitucional, mas não por ofensa aos limites do poder de reforma (até porque um dstado não tem competência para alterar a Constituição Federal – da qual a regra em questão se origina – como o tem o Congresso Nacional), mas sim por ofensa a supremacia da Constituição Federal da qual tal norma é de reprodução obrigatória nas constituições estaduais.

Os julgados utilizados como fundamento na inicial da ADI e na decisão liminar se referem à impossibilidade de o poder constituinte derivado decorrente, por meio de Emenda Constitucional, alterar na Constituição Estadual a iniciativa de lei para criação de tribunal inferior, que é regra de reprodução compulsória da Constituição Federal decorrente da aplicação dos princípios estabelecidos.

Diferentemente é o caso da EC 73, que trata de poder constituinte derivado REFORMADOR, que não está submetido aos princípios estabelecidos, podendo criar, por meio de Emenda Constitucional órgão do Poder Judiciário, como inclusive já aconteceu quando da criação do CNJ por meio da EC 45/2004.

Quanto a esta diferenciação, de forma mais clara impossível, o ministro do STF Moreira Alves na ADI-MC 2011/SP, quando questionado se o Poder Constituinte Reformador também seria limitado como o decorrente afirmou que “Não. No âmbito federal há uma diferença: o constituinte derivado pode acabar até com a iniciativa exclusiva dos tribunais, porque aqui não há cláusula pétrea. O problema não é de separação de poderes.”

Até porque o art. 96, II, c, da Constituição Federal em momento algum impede a criação de tribunais inferiores por via de Emenda à Constituição Federal. Este apenas estabelece ser de competência privativa, mas não exclusiva, dos tribunais superiores a criação dos tribunais inferiores.

Assim, analisando-se a fundamentação e seus equívocos, percebe-se claramente não haver qualquer ofensa ao art. 96, II, c, da Constituição Federal, até porque, criados os tribunais por Emenda Constitucional, esta será norma de eficácia contida, sendo necessária lei de iniciativa privativa dos tribunais superiores, como determina o artigo o art. 96, II, c, da Constituição Federal, para que a criação dos tribunais tenha eficácia.

Não há que se falar, portanto, em qualquer vício de iniciativa no caso em questão, vez que se tratou de alteração promovida pelos legitimados a exercer o Poder Constituinte Derivado Reformador e a criação e estruturação dos referidos tribunais será feita por lei de iniciativa privativa de tribunal superior como determina o art. 96, II, c, da Constituição Federal (inclusive já está sendo feito, vez que existe anteprojeto de lei, de iniciativa do STJ, devidamente aprovado pelo Conselho da Justiça Federal em sessão de 28/06/2013).

Não obstante demonstrada a plena possibilidade de criação dos TRFs por meio de Emenda Constitucional, fato referendado pela jurisprudência do próprio STF, existe uma peculiaridade no caso dos TRFs que, mais do que permitido, é exigido que sua criação se dê por meio de Emenda Constitucional.

Isto porque os TRFs, diferentemente de todos os demais Tribunais, teve sua criação constitucionalmente limitada ao número de 5 no art 27 §6º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

O ADCT integra a Constituição Federal como parte dela, portanto, sua alteração somente pode ser feita pelos meios aptos a alterá-la, qual seja, por meio de Emenda Constitucional.

Assim, se o artigo 27, parágrafo 6º, do ADCT previu expressamente apenas cinco TRFs, para se poder mudar este número e criar outros tribunais, obrigatoriamente este artigo tem que ser alterado, e esta alteração, como se trata de ADCT, somente pode ser feita por meio de Emenda Constitucional, portanto, corretamente foram criados os novos TRFs por meio de Emenda Constitucional.


[1] "Cumprimento da exigência da pertinência temática, ante a existência de correlação entre o objeto pedido da declaração de inconstitucionalidade e os objetivos institucionais da associação" (ADI 3702/ES – Rel. Min. Dias Toffoli).

"Presença do requisito da pertinência temática entre as finalidades da agremiação e o objeto da causa". (ADI 3288/MG Rel. Min. Ayres Britto).

"(…) qualifica-se como entidade como entidade de classe se âmbito nacional investida de legitimidade ativa ad causam para a instauração, perante o Supremo Tribunal Federal, de processo de controle abstrato de constitucionalidade, desde que existente nexo de afinidade entre os seus objetivos institucionais e o conteúdo material dos textos normativos impugnados" (ADI 4190 MC-REF/RJ Rel. Min. Celso de Mello).

"Ausência de relação entre os objetivos institucionais da Autora e do conteúdo normativo dos dispositivos legais questionados". (ADI 1194/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa).

[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin. PARECER CRIAÇÃO DE TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS POR EMENDA CONSTITUCIONAL. POSSIBILIDADE. Publicado no site: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-jurista-clemerson-merli-cleve.pdf

[3] http://www.conjur.com.br/2013-jul-31/andre-duszczak-novos-tribunais-regionais-federais-sao-imprescindiveis

[4] CLÈVE, Clèmerson Merlin. PARECER CRIAÇÃO DE TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS POR EMENDA CONSTITUCIONAL. POSSIBILIDADE. Publicado no site: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-jurista-clemerson-merli-cleve.pdf

[5] BRITTO. Carlos Ayres. A Reforma Constitucional. Separata El Derecho Publico de Finales de Siglo: una perspectiva iberoamericana. Madrid: Civitas. p. 89.

[6] Texto de José Adércio Leite Sampaio publicado no site http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=3536

[7] Ministro do STF Ilmar Galvão na ADI-MC 2011/SP

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