Senso Incomum

O pamprincipiologismo e a flambagem do Direito

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10 de outubro de 2013, 8h08

Spacca
O pamprincipiologismo em terrae brasilis
Em 2010, junto com Ferrajoli, fiz a conferência de abertura do grande Congresso Bianual da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), em Curitiba. Lembro-me que Ferrajoli ficou impressionado com o tema que apresentei: o pamprincipiologismo em terrae brasilis. Disse ele ter dificuldade em acreditar que “fomos tão longe em nossa criatividade”. Na sequência, ele levou essa temática para um Congresso em Alicante, apresentando ponencia sobre a temática, no debate que promoveu sobre o positivismo e o pós-positivismo (registre-se minha diferença teórica em relação ao positivismo com o mestre fiorentino). Minha luta contra o pamprincipiologismo já vinha de antes dessa conferência, é claro. Havia feito uma longa lista de princípios que não passam de álibis teóricos, despidos de normatividade.

De todo modo, como deixo explicitado em Verdade e Consenso e no novo Jurisdição e Decisão Jurídica, não é a imperatividade da lei (juiz como “boca da lei”) ou a criatividade (sem limites) do intérprete que se constituem como “inimigos da autonomia do Direito” e da democracia, mas, sim, as condições pelas quais se dá a atribuição de sentido no ato interpretativo-aplicativo.

Essa temática dos princípios, aliás, é sedutora. Veja-se o que escreveu a respeito, há poucos dias, Mauricio Saliba Alves Branco. Não é necessário falar a respeito do que disse o referido articulista, que cai na armadilha do pamprincipiologismo e na esparrela dos “valores”. O leitor atento Sergio Niemayer matou a charada, com um certeiro comentário postado no mesmo dia do artigo (clique aqui para ler).

A angústia epistemológica
É evidente que em uma coluna não dá para explicar isso tudo. A função da coluna é levantar problemas e aguçar o senso crítico dos leitores. Se a coluna alcançar isso, já é sucesso. Ou seja, a função da coluna é provocar “angústias epistemológicas”. E, a partir do des-velamento da angústia, deixar que cada angustiado vá tratar dos gaps epistêmico-hermenêuticos resultantes dessa des-coberta.

Como venho referindo, o pamprincipiologismo tem origem complexa. Resumidamente, diria que vem da simplificação da tentativa de superação do velho positivismo. Expliquei isso na coluna passada, na parte das cinco recepções. Acrescento, apenas, ainda, que tudo isso tem origem na aposta na discricionariedade, cuja origem bem definida em Kelsen e Hart, tinha o objetivo, ao mesmo tempo, de “resolver” um problema considerado insolúvel, representado pela razão prática “eivada de solipsismo” (afinal, o sujeito da modernidade sempre se apresentou consciente-de-si-e-de-sua-certeza-pensante), e de reafirmar o modelo de regras do positivismo, no interior do qual os princípios (gerais do direito) — equiparados a “valores” — mostravam-se como instrumentos para a confirmação desse “fechamento”.

O ranço neokantiano e os discursos axiológicos do e no Direito
Aliás, a referência reiterada aos “valores” demonstra bem o ranço neokantiano que permeia o imaginário daqueles que lidam com a dogmática jurídica (com pretensões críticas ou não). De fato, não é exagero afirmar que, em termos teóricos, a maioria dos juristas brasileiros permanece, de algum modo, atrelada ao paradigma filosófico que se formou a partir do neokantismo oriundo da escola de Baden (e da noção de moral convencional).

Ou seja, ainda estamos reféns de um culturalismo ultrapassado que pretendia fundar o elemento transcendental do conhecimento na ideia sintética de valores, sendo que a união de todos esses valores, portanto, representaria o mundo cultural. Chega a ser intrigante o fato de que toda tradição constituída depois do linguistic turn — inclusive alguns setores da filosofia analítica — tenha criticado o objetivismo ingênuo dessa concepção do neokantismo valorativo, demonstrando que a questão dos valores não dava conta radicalmente dos fundamentos linguístico-culturais que determinam o processo de conhecimento.

A própria formação da cultura é algo muito mais propriamente ligado à linguagem e a constituição de contextos significativos do que propriamente ao problema da formação e transformação deste enigma chamado “valores”. Isso fica bem representado na formulação do “paradoxo de Humboldt”: nós possuímos linguagem porque temos cultura ou temos cultura porque possuímos linguagem? Portanto, o discurso axiológico no interior do Direito deveria ter sucumbido junto com o paradigma filosófico que o sustentava. A despeito disso, continua-se a falar — acriticamente, por certo — em “valores”, sem levar em conta a sua conhecida e problemática origem filosófica. Quando alguém fala em valores, tenho tremores. E vejo o direito esfarinhando.

O início da amostragem
“Positivaram-se os valores”: assim se costuma anunciar os princípios constitucionais, circunstância que facilita a “criação” (sic), em um segundo momento, de todo tipo de “princípio” (sic), como se o paradigma do Estado Democrático de Direito fosse a “pedra filosofal da legitimidade principiológica”, da qual pudessem ser retirados tantos princípios quantos necessários para solvermos os casos difíceis ou “corrigir” (sic) as incertezas da linguagem. Veja-se, nesse sentido, uma pequena lista de princípios utilizados largamente na cotidianidade dos tribunais e da doutrina — a maioria deles com nítida pretensão retórico-corretiva, além da tautologia que os conforma:

Princípio da humanidade: Pode-se fazer qualquer coisa com ele. Quem quer ser desumano? O que quero dizer — e esse me parece ser um bom exemplo pelo qual uma palavra pode ser absolutamente anêmica — se os princípios são apenas “valores” ou “mandados de otimização”, como querem, por exemplo, as teorias argumentativas, então, sim, tem sentido apostar em um catálogo infinito de slogans e standards aptos a servir de “capas de sentido” ao Direito. Caso contrário, partindo-se de uma concepção deontológica dos princípios (código lícito-ilícito), a invocação de um “princípio” desse quilate não passa de argumentação retórica.

Princípio da nulidade do ato inconstitucional: magnífico esse “princípio”, não? Sua inutilidade é autoexplicativa.

Princípio da não surpresa: segundo a doutrina e a jurisprudência, esse princípio garantiria a segurança do cidadão contra uma surpresa inesperada. Veja-se que há farta recepção do standard na jurisprudência. Mais uma vez, indago: por que a garantia da não surpresa seria um princípio? E seria um princípio constitucional? Derivado de que e de onde? Ou seria uma construção feita a partir dos velhos princípios gerais do direito? De todo modo, o paradoxo reside na seguinte questão: de que forma uma demanda é resolvida utilizando o princípio da não surpresa? Antes da “violação” do aludido princípio, não haveria a violação de uma determinada regra processual?

Princípio da absoluta prioridade dos direitos da Criança e do Adolescente: Ora, trata-se de um “princípio” que procura “corrigir” e/ou “otimizar” a própria Constituição, que já trata dessa prioridade. Em um universo jurídico calcado no protagonismo judicial e no sujeito solipsista, o referido “princípio” procura eleger, de acordo com a preferência do intérprete, quais políticas públicas, por exemplo, devem privilegiar a concretização dos direitos das crianças e adolescentes. Convalidar o referido princípio seria excluir a condição de deliberação democrática em benefício da centralização desses direitos nas escolhas dos juízes. No fundo, trata-se de um retorno à tópica-retórica, em que esse “princípio” seria um topos. Aliás, uma pergunta: como lidar com a palavra “absoluta”?

Princípio da afetividade: embora esse standard possa ser considerado “fofo” (quem não gosta de que sejamos afetivos?), na verdade apenas escancara a compreensão do Direito como subsidiário a juízos morais (sem levar em conta os problemas relacionados pelo “conceito” de afetividade no âmbito da psicanálise, para falar apenas desse campo do conhecimento). Isso para dizer o mínimo. Daí a perplexidade: se os princípios constitucionais são deontológicos, como retirar da “afetividade” essa dimensão normativa? Trata-se, na verdade, de mais um álibi para sustentar/justificar decisões pragmatistas. É evidente que a institucionalização das relações se dá por escolhas pela relevância delas na sociedade. Ocorre que as decisões devem ocorrer a partir de argumentos de princípio e não por preferências pessoais, morais, teleológicas, etc. No fundo, acreditar na existência deste “princípio” é fazer uma profissão de fé em discursos pelos quais a moral corrige as “insuficiências ônticas” (sic) das regras jurídicas. Ou seja, nada mais do que uma espécie de “terceiro turno” do processo constituinte: os juízes – apoiados em forte doutrina, “corrigem-no”. Aliás, a vingar a tese, por que razão não elevar ao status de princípio o amor, o companheirismo, a paz, a felicidade, a tristeza, enfim, todo o que pode ser derivado do respeito (ou não) do princípio da dignidade da pessoa humana, alçado, aliás, à categoria de “superprincípio”?

Princípio do processo tempestivo: que bom que o processo deva ser concluído dentro de um prazo razoável, não? Alvíssaras!

Princípio da ubiquidade: esse standard interpretativo considera o bem ambiental onipresente, de forma que a agressão ao Meio Ambiente, em determinada localidade, é capaz de trazer reflexos negativos a todo o planeta Terra e, consequentemente, a todos os povos; não só à espécie humana, mas também a todas as espécies de habitantes do planeta. Novamente, vale a indagação: e como se aplica o referido princípio em um caso concreto?

Princípio do fato consumado: na verdade, trata-se de uma variante da segurança jurídica, ínsita ao Estado Democrático de Direito. Não tem, evidentemente, status de princípio. Afinal, princípios obrigam. E no que esse enunciado performativo vincula? Novamente, se está diante da questão: princípios são valores, mandados de otimização ou são mais do que isso? Ora, ora. Se, por vezes, uma situação já consolidada deve ser mantida — fazendo soçobrar a “suficiência ôntica” de determina regra —, isso não transforma a “consumação” de um fato em padrão que deva ser utilizado “em princípio”. Fosse verdadeira a tese e estar-se-ia incentivando as pessoas a descumprirem a lei, apostando na passagem do tempo ou na ineficiência da justiça. Na verdade, é possível afirmar o contrário, isto é, o fato consumado é exceção na aplicação de uma regra.

Princípio do deduzido e do dedutível: segundo consta, esse instrumento retórico trata do reconhecimento do julgamento de causa anterior da qual se pode deduzir (sic) a existência da mesma causa de pedir por uma nova ação. O que não está explicitado pela doutrina e pela jurisprudência é: por que uma “dedução” seria um princípio jurídico? Cabe lembrar que, de há muito, a filosofia — inundada que foi pela linguagem — superou o “dedutivismo”. Numa palavra: admitida, ad argumentandum tantum, a “validade” do aludido princípio, ficaria ainda a pergunta — nos demais raciocínios/interpretações, não se faria “deduções”?

Princípio da instrumentalidade processual: por intermédio desse princípio, que trata do desprezo das formalidades desprovidas de efeitos prejudiciais, autoriza-se o juiz estabelecer os caminhos necessários para chegar a um determinado lugar, desde que não cause prejuízo as partes. Um exemplo é a fixação de multa com caráter inibitório por arbitramento do juiz. No fundo, é uma aposta na tradicional delegação processual em favor da prudência do juiz. O processo deixa de ser considerado um direito (“material”) para ser um mero instrumento para alcançar um fim maior. Pode-se dizer que, no espaço “aberto” por este princípio, localiza-se, por exemplo, a possibilidade do juiz julgar improcedente a demanda (artigo 285-A, do CPC) de plano, pois já teria julgado causa similar, alcançando o fim da celeridade eleito pelo sistema. Ou, com outras palavras, abreviando caminhos. Se o juiz já conhece o fim (resultado), não precisa transitar novamente pelo meio (compreensão/interpretação). A aposta é feita a partir de uma “verdade essencialista”. A instrumentalidade do processo é herança antiga do paradigma da filosofia da consciência (na verdade, de sua vulgata).

Princípio da delação impositiva: esse standard interpretativo tem base (sic) no artigo 6° da Lei n° 10.741/03, que “estabelece” a obrigação da comunicação de práticas que venham a violar garantias estabelecidas a idosos. Mas por que esse “princípio” teria normatividade mais eficaz que a própria lei (que, aliás, estabelece o próprio “princípio”)? Ainda, outra indagação: esse “princípio” se estende a outros crimes?

Princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais: por esse “princípio”, apesar da ocorrência de irregularidade processual (p.ex., inobservância do art. 552 do CPC), deve ser considerada a regra segundo a qual o ato não se repetirá, quando não prejudicar a parte. Ora, em que casos esse “princípio” é cabível? Aplicado “principiologicamente”, pode ser uma pedra filosofal para “salvar” atos nulos. Isso para dizer o mínimo.

Princípio da eventual ausência do plenário: A par de seu caráter inusitado, poderíamos dizer que, neste caso, o tal “princípio” poderia ser aplicado, sim, para dar falta a quem não compareceu, se me permitem a blague.

Princípio da cortesia: por ele, quer-se dizer que a prestação de serviço público demanda um bom tratamento do público. Pergunto: poderia ser diferente? E quem não atender bem? Esse “princípio” terá normatividade para demitir ou punir de alguma forma o funcionário? Não querendo ser descortês, mas, qual é a sua efetiva serventia?

Princípio da inalterabilidade ou da invariabilidade da sentença: este enunciado garantiria que a sentença, depois de publicada, não pode ser alterada pelo juiz. Alvíssaras! Um breve exame do Código de Processo Civil aponta claramente para essa garantia. Há regras que a estabelecem. Parece evidente que uma sentença, depois de publicada, não pode ser alterada. Por que esse princípio daria essa “segurança” ao utente? Não seria melhor escrever: está proibido alterar uma sentença depois de publicada? Hein?

Princípio da cooperação processual: esse prêt-à-porter “propicia” que juízes e mandatários cooperem entre si, de modo a alcançar-se, de uma feição ágil e eficaz, a justiça no caso concreto. Mas, afinal, quem deve “cooperar”? E se alguém não quiser cooperar? Será punido? Chicoteado? Convenhamos: em que condições um standard desse quilate pode ser efetivamente aplicado? Há sanções no caso de “não cooperação”? Qual será a ilegalidade ou inconstitucionalidade decorrente da sua não aplicação?

Por enquanto, paro por aqui. Breve haverá mais.

O manual de instruções e o kit “ponderação”
Ouço em palestras e em salas de aula e leio em artigos e livros comentários duros e enfáticos, do tipo: “o direito das regras, da subsunção, do juiz boca da lei, esse está morto, enterrado”. “Hoje estamos na era dos princípios. E o que são princípios? Ora, princípios são valores. O que vale hoje são os princípios”. E mais blás, blás e blás…

Os adeptos de tais teses transformaram a autonomia do direito em um território “fofo”, “dúctil”. Flambaram o Direito. O resultado? Isso tudo que está por aí.

Um dos mecanismos para esse desiderato é o verbo “pamprincipiologizar”. Cada um pode abrir uma fábrica de álibis e enunciados performativos, colocando a grife “princípio”. É um produto cuja venda está assegurada de antemão. No kit, o cliente recebe o manual de instruções, sendo um dos itens “a ponderação”. Na verdade, os princípios, no modo como são apresentados por parte considerável da doutrina e a totalidade da jurisprudência, não passam de topoi. Aliás, o grande problema do pamprincipiologismo é transformar os princípios em topoi. Quem trabalha com a tese de que princípios são valores, não faz sequer uma retórica. Faz apenas uma proto-tópica.

Vejam os leitores que, se substituirmos os aludidos princípios por qualquer palavra com caráter retórico (por exemplo, canglingon), nada mudará, por uma razão simples: onde está a normatividade dos aludidos standards? Onde está o caráter deontológico? Se princípios são normas (dever ser), a par da ausência desse requisito na referida listagem, restaria ainda uma pergunta fatal: qual é a legitimidade de sua constituição? Quem os elaborou? Em que condições? Se princípios são normas, então valem. Mas, e a lei e a Constituição, construídos democraticamente, o que fazer com esse material? Respostas para a coluna.

Encerro esta primeira parte, tudo com base no “princípio da economia de páginas” e no “princípio do máximo de espaço que pode ser ocupado por uma coluna”. E, invocando o “princípio da máxima expectativa dos leitores”, prometo a continuação desta saga “antipamprincipiológica”.

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