Devemos tornar de fato o que CF prevê de direito
7 de outubro de 2013, 8h00
Considerada uma das mais modernas do mundo, a Constituição de 1988 é, também, a que deu mais destaque à proteção de direitos humanos na história brasileira.
Ainda estamos aprendendo a interpretar e aplicar o texto constitucional. Se, há pouco mais de dez anos, raros acórdãos eram proferidos pelo Supremo Tribunal Federal com fundamento na dignidade da pessoa humana, mais recentemente, é abundante o número de julgados que nele se baseiam. Isso revela que, nesses anos, ainda estarmos “descobrindo” tudo o que pode ser extraído do texto constitucional.
Não faz mais sentido dizer, hoje, que a Constituição relaciona-se a apenas alguns aspectos da atuação do Estado. A Constituição incide em todas as esferas da vida das pessoas. Temas relativos a família, propriedade, início da vida humana etc., passaram a ocupar a pauta dos constitucionalistas.
Antes do reconhecimento da constitucionalização do direito privado, ou da “publicização” do privado — fenômeno recente, entre nós —, costumava-se encontrar, na doutrina tradicional, a afirmação de que o estudo da Constituição pertenceria ao ramo do Direito Público. Tal como a dicotomia público-privado, a alocação do Direito Constitucional como Direito exclusivamente público se enfraquece. Perde mesmo sentido falar, em cenários como o do Direito brasileiro (em especial a partir da segunda metade do século XX, mas, notadamente, após a edição da Constituição de 1988), em tal dicotomia, que pressupõe o reconhecimento de certa subordinação do indivíduo ao Estado e algum alheamento do Estado em relação aos assuntos da esfera privada dos indivíduos.
Considero que a norma constitucional interpenetra todas as demais normas do sistema jurídico, sendo ponto de partida para o estudo de qualquer das “disciplinas” do Direito — inclusive as do “Direito Privado” —, não podendo o estudo de temas como família, propriedade e contrato ser realizado senão a partir da norma constitucional.
A Constituição é repleta de textos que contém conceitos vagos, cláusulas gerais, normas que têm estrutura de princípio (cf. o que escrevemos aqui e aqui), e versa sobre os mais variados assuntos. Isso tudo exige um novo modo de fundamentar a decisão judicial. Por isso, hoje costuma-se dizer que existe um direito fundamental a uma decisão fundamentada de acordo com a Constituição.
Torna-se importante, nesse contexto, definir a correta metódica da criação da solução jurídica fundada em direitos fundamentais. O ambiente em que esse labor se desenvolve não é dos mais estáveis. Não restam muito claros, na prática jurisprudencial brasileira, os limites entre os poderes do Estado. Os órgãos jurisdicionais são frequentemente chamados a se manifestar a respeito de atitudes do Executivo ou do Legislativo ativa ou passivamente inadequadas à Constituição.
Considerando que os valores fundamentais da sociedade acabaram encontrando amparo na Constituição, e tendo em vista que os órgãos jurisdicionais — em especial o Supremo Tribunal Federal, cf. artigo 102 da Constituição — têm por missão tornar concretas as normas constitucionais, os atos ou omissões do Legislativo e do Executivo passaram, quase que naturalmente, a se sujeitar a um maior controle por parte do Judiciário.
Alçado à condição de intérprete final da Constituição, o Poder Judiciário controla, a posteriori, o ajuste dos atos realizados pelos demais Poderes à norma constitucional; a crescente (auto)afirmação do Poder Judiciário faz com que, não raro, este acabe fazendo — ou ordenando que se faça — aquilo que se esperaria que um dos outros Poderes fizesse: a interferência no âmbito de atuação dos demais Poderes, desse modo, é inevitável.
O Poder Judiciário acaba sendo o palco, assim, em que se decidem questões que antes eram consideradas essencialmente políticas, mas que, tendo em vista o espectro de abrangência da Constituição, acabaram sendo judicializadas. O exercício desse papel não pode ser recusado pelo Poder Judiciário (afinal, tais assuntos foram alçados ao nível de norma constitucional); o problema está em se definir o limite de tal atuação, pelos órgãos jurisdicionais. Este limite, como se disse, não está claro, no texto constitucional: de um lado, afirma que os poderes são independentes e harmônicos (artigo 2º); de outro, estabelece fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º) e direitos fundamentais que “têm aplicação imediata” (artigo 5º e parágrafo 1º); além disso, deixa clara a possibilidade de se recorrer ao Judiciário para se reparar lesão ou se impedir a ocorrência de lesão (artigo 5º, XXXV).
Afirma-se, na Constituição, que os poderes são independentes e harmônicos entre si (artigo 2º). No exercício de suas funções, têm os poderes boa dose de autonomia em relação à tomada de decisões. No entanto, todos os poderes são condicionados à ordem jurídica. Por isso que, não raro, a inobservância ao Direito acaba provocando a ocorrência de alguma interferência de um dos poderes na esfera de atuação do outro.
Como o Estado deve atuar plenamente, é natural que, havendo déficit no exercício de um dos Poderes, outro Poder estatal acabará forçando seu ingresso nessa outra esfera — o que não equivale a fazer-lhe as vezes, já que também esta interferência forçada tende a não suprir, plenamente, a situação deficitária que a justificou. A hipertrofia da atuação dos órgãos jurisdicionais em relação à disciplina normativa de direitos fundamentais (artigo 5º da Constituição) e a imposição de condutas ao Estado em relação à execução das leis (p.ex., em relação ao fornecimento de medicamentos) são exemplos disso.
Vê-se, pois, que tudo depende do arranjo que se opera entre os três Poderes: uma postura mais conforme à Constituição, se adotada pelos Poderes Executivo e Legislativo, tenderia a colocar o Poder Judiciário em posição menos ativa. Não é, contudo, o que demonstra a realidade brasileira, em que os órgãos jurisdicionais são frequentemente chamados a se manifestar a respeito de atitudes do Executivo ou do Legislativo ativa ou passivamente inadequadas à Constituição. Assim, p.ex., a mora legislativa acaba justificando a atuação do Judiciário para a resolução de casos concretos, a partir da previsão de direitos fundamentais na norma constitucional, mesmo que inexistente regra legal explícita sobre determinado tema (cf., p.ex., a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADIn 4.277 e da ADPF 132, ref. ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar). Nesse sentido, por exemplo, em julgamento do STJ em que se admitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consta, do voto condutor do acórdão, o seguinte: “A maioria, mediante seus representantes eleitos, não pode ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário — e não o Legislativo — que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista da proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias”.
Tudo isso revela quão importante é o papel a ser desempenhado pela doutrina, que tem a grave responsabilidade de examinar atentamente os atos estatais, para reafirmar os acertos e apontar os erros que praticam na interpretação e aplicação da Constituição.
Embora a doutrina estrangeira tenha muito a nos ensinar, merece atenção sobretudo a produção doutrinária brasileira, ou melhor, a doutrina brasileira que se dedica a analisar a Constituição brasileira à luz de problemas brasileiros. Entendo que a doutrina estrangeira não pode ser recebida como se fosse “fonte” do direito constitucional brasileiro, ou como se a Constituição brasileira não pudesse ser interpretada senão através da leitura de tal ou qual jurista estrangeiro (que certamente, ou na maioria das vezes, não escreveu meditando sobre o que se passa com a Constituição e a sociedade brasileiras).
O desafio, hoje, está em como formular soluções ajustadas ao nosso modelo de Constituição e ao tempo em que vivemos. Creio que Zigmunt Bauman está certo, quando diz que, “no momento, nós estamos em um interregno. Um interregno que significa, simplesmente, que a antiga maneira de agir não funciona mais, e novos modos de agir ainda não foram inventados. Esse é o interregno”.
Parece que isso vale também para o Direito.
Não podemos, porém, aguardar o término desse interregno para encontrar fórmulas que permitam resolver bem (e não apenas razoavelmente) os problemas relativos à interpretação e aplicação da norma constitucional. Um novo modo de pensar a norma constitucional depende de um diálogo com outras “ciências” (jurídicas, política, econômica…) e também com outros conhecimentos oriundos da dinâmica da vida (refiro-me, aqui, à experiência vivida pelas pessoas). A norma constitucional não deve ser interpretada apenas em si mesma, mas a partir do déficit identificado na vida das pessoas que reclamou a sua criação. Não sendo assim, a interpretação da norma constitucional será existente e válida no imaginário dos juristas, mas alheia à realidade.
Temos, pois, de nos ocupar em tornar de fato o que a Constituição prevê de direito.
Há muito a caminhar, nesse sentido.
Até a próxima semana!
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