Processo Novo

Devemos tornar de fato o que CF prevê de direito

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

7 de outubro de 2013, 8h00

Spacca
A Constituição Federal acaba de completar 25 anos. É, ainda, uma Constituição jovem. Muito ocorreu, neste curto período de sua história, que devemos festejar, mas há muito ainda que se fazer, para se concretizar tudo o que nela está previsto.

Considerada uma das mais modernas do mundo, a Constituição de 1988 é, também, a que deu mais destaque à proteção de direitos humanos na história brasileira.

Ainda estamos aprendendo a interpretar e aplicar o texto constitucional. Se, há pouco mais de dez anos, raros acórdãos eram proferidos pelo Supremo Tribunal Federal com fundamento na dignidade da pessoa humana, mais recentemente, é abundante o número de julgados que nele se baseiam. Isso revela que, nesses anos, ainda estarmos “descobrindo” tudo o que pode ser extraído do texto constitucional.

Não faz mais sentido dizer, hoje, que a Constituição relaciona-se a apenas alguns aspectos da atuação do Estado. A Constituição incide em todas as esferas da vida das pessoas. Temas relativos a família, propriedade, início da vida humana etc., passaram a ocupar a pauta dos constitucionalistas.

Antes do reconhecimento da constitucionalização do direito privado, ou da “publicização” do privado — fenômeno recente, entre nós —, costumava-se encontrar, na doutrina tradicional, a afirmação de que o estudo da Constituição pertenceria ao ramo do Direito Público. Tal como a dicotomia público-privado, a alocação do Direito Constitucional como Direito exclusivamente público se enfraquece. Perde mesmo sentido falar, em cenários como o do Direito brasileiro (em especial a partir da segunda metade do século XX, mas, notadamente, após a edição da Constituição de 1988), em tal dicotomia, que pressupõe o reconhecimento de certa subordinação do indivíduo ao Estado e algum alheamento do Estado em relação aos assuntos da esfera privada dos indivíduos.

Considero que a norma constitucional interpenetra todas as demais normas do sistema jurídico, sendo ponto de partida para o estudo de qualquer das “disciplinas” do Direito — inclusive as do “Direito Privado” —, não podendo o estudo de temas como família, propriedade e contrato ser realizado senão a partir da norma constitucional.

A Constituição é repleta de textos que contém conceitos vagos, cláusulas gerais, normas que têm estrutura de princípio (cf. o que escrevemos aqui e aqui), e versa sobre os mais variados assuntos. Isso tudo exige um novo modo de fundamentar a decisão judicial. Por isso, hoje costuma-se dizer que existe um direito fundamental a uma decisão fundamentada de acordo com a Constituição. 

Torna-se importante, nesse contexto, definir a correta metódica da criação da solução jurídica fundada em direitos fundamentais. O ambiente em que esse labor se desenvolve não é dos mais estáveis. Não restam muito claros, na prática jurisprudencial brasileira, os limites entre os poderes do Estado. Os órgãos jurisdicionais são frequentemente chamados a se manifestar a respeito de atitudes do Executivo ou do Legislativo ativa ou passivamente inadequadas à Constituição.

Considerando que os valores fundamentais da sociedade acabaram encontrando amparo na Constituição, e tendo em vista que os órgãos jurisdicionais — em especial o Supremo Tribunal Federal, cf. artigo 102 da Constituição — têm por missão tornar concretas as normas constitucionais, os atos ou omissões do Legislativo e do Executivo passaram, quase que naturalmente, a se sujeitar a um maior controle por parte do Judiciário.

Alçado à condição de intérprete final da Constituição, o Poder Judiciário controla, a posteriori, o ajuste dos atos realizados pelos demais Poderes à norma constitucional; a crescente (auto)afirmação do Poder Judiciário faz com que, não raro, este acabe fazendo — ou ordenando que se faça — aquilo que se esperaria que um dos outros Poderes fizesse: a interferência no âmbito de atuação dos demais Poderes, desse modo, é inevitável.

O Poder Judiciário acaba sendo o palco, assim, em que se decidem questões que antes eram consideradas essencialmente políticas, mas que, tendo em vista o espectro de abrangência da Constituição, acabaram sendo judicializadas. O exercício desse papel não pode ser recusado pelo Poder Judiciário (afinal, tais assuntos foram alçados ao nível de norma constitucional); o problema está em se definir o limite de tal atuação, pelos órgãos jurisdicionais. Este limite, como se disse, não está claro, no texto constitucional: de um lado, afirma que os poderes são independentes e harmônicos (artigo 2º); de outro, estabelece fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º) e direitos fundamentais que “têm aplicação imediata” (artigo 5º e parágrafo 1º); além disso, deixa clara a possibilidade de se recorrer ao Judiciário para se reparar lesão ou se impedir a ocorrência de lesão (artigo 5º, XXXV).

Afirma-se, na Constituição, que os poderes são independentes e harmônicos entre si (artigo 2º). No exercício de suas funções, têm os poderes boa dose de autonomia em relação à tomada de decisões. No entanto, todos os poderes são condicionados à ordem jurídica. Por isso que, não raro, a inobservância ao Direito acaba provocando a ocorrência de alguma interferência de um dos poderes na esfera de atuação do outro.

Como o Estado deve atuar plenamente, é natural que, havendo déficit no exercício de um dos Poderes, outro Poder estatal acabará forçando seu ingresso nessa outra esfera — o que não equivale a fazer-lhe as vezes, já que também esta interferência forçada tende a não suprir, plenamente, a situação deficitária que a justificou. A hipertrofia da atuação dos órgãos jurisdicionais em relação à disciplina normativa de direitos fundamentais (artigo 5º da Constituição) e a imposição de condutas ao Estado em relação à execução das leis (p.ex., em relação ao fornecimento de medicamentos) são exemplos disso.

Vê-se, pois, que tudo depende do arranjo que se opera entre os três Poderes: uma postura mais conforme à Constituição, se adotada pelos Poderes Executivo e Legislativo, tenderia a colocar o Poder Judiciário em posição menos ativa. Não é, contudo, o que demonstra a realidade brasileira, em que os órgãos jurisdicionais são frequentemente chamados a se manifestar a respeito de atitudes do Executivo ou do Legislativo ativa ou passivamente inadequadas à Constituição. Assim, p.ex., a mora legislativa acaba justificando a atuação do Judiciário para a resolução de casos concretos, a partir da previsão de direitos fundamentais na norma constitucional, mesmo que inexistente regra legal explícita sobre determinado tema (cf., p.ex., a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADIn 4.277 e da ADPF 132, ref. ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar). Nesse sentido, por exemplo, em julgamento do STJ em que se admitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consta, do voto condutor do acórdão, o seguinte: “A maioria, mediante seus representantes eleitos, não pode ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário — e não o Legislativo — que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista da proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias”.

Tudo isso revela quão importante é o papel a ser desempenhado pela doutrina, que tem a grave responsabilidade de examinar atentamente os atos estatais, para reafirmar os acertos e apontar os erros que praticam na interpretação e aplicação da Constituição.

Embora a doutrina estrangeira tenha muito a nos ensinar, merece atenção sobretudo a produção doutrinária brasileira, ou melhor, a doutrina brasileira que se dedica a analisar a Constituição brasileira à luz de problemas brasileiros. Entendo que a doutrina estrangeira não pode ser recebida como se fosse “fonte” do direito constitucional brasileiro, ou como se a Constituição brasileira não pudesse ser interpretada senão através da leitura de tal ou qual jurista estrangeiro (que certamente, ou na maioria das vezes, não escreveu meditando sobre o que se passa com a Constituição e a sociedade brasileiras).

O desafio, hoje, está em como formular soluções ajustadas ao nosso modelo de Constituição e ao tempo em que vivemos. Creio que Zigmunt Bauman está certo, quando diz que, “no momento, nós estamos em um interregno. Um interregno que significa, simplesmente, que a antiga maneira de agir não funciona mais, e novos modos de agir ainda não foram inventados. Esse é o interregno”.

Parece que isso vale também para o Direito.

Não podemos, porém, aguardar o término desse interregno para encontrar fórmulas que permitam resolver bem (e não apenas razoavelmente) os problemas relativos à interpretação e aplicação da norma constitucional. Um novo modo de pensar a norma constitucional depende de um diálogo com outras “ciências” (jurídicas, política, econômica…) e também com outros conhecimentos oriundos da dinâmica da vida (refiro-me, aqui, à experiência vivida pelas pessoas). A norma constitucional não deve ser interpretada apenas em si mesma, mas a partir do déficit identificado na vida das pessoas que reclamou a sua criação. Não sendo assim, a interpretação da norma constitucional será existente e válida no imaginário dos juristas, mas alheia à realidade.

Temos, pois, de nos ocupar em tornar de fato o que a Constituição prevê de direito.

Há muito a caminhar, nesse sentido. 

Até a próxima semana! 

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