Direito Comparado

Reforma do Senado divide forças políticas no Canadá

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

2 de outubro de 2013, 8h00

A Guerra de Independência dos Estados Unidos da América é considerada um dos mais importantes eventos históricos dos últimos 200 anos. Além de ter permitido o nascimento da hoje nação mais poderosa do planeta, esse conflito entre os habitantes das 13 colônias da América do Norte e a metrópole britânica causou indiretamente a ruína econômica do Reino da França, comprometido com o envio de tropas e com o apoio financeiro dos rebeldes, o que redundou na Revolução Francesa de 1789, com todas suas consequências para o mundo ocidental.

O apoio de Luís XVI na (também chamada) Revolução Americana, que terminou por lhe custar a cabeça após seu julgamento pela famigerada Convenção no final de 1792, deu-se a título de represália aos britânicos pela derrota francesa na Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Como resultado dos acordos de paz, os franceses cederam ao britânicos os territórios do Canadá, mais precisamente a região de Quebec, até hoje um enclave francófono naquele país. Na fase norte-americana dessa guerra, os britânicos lutaram com o apoio de milhares de milicianos oriundos das 13 colônias. Um dos efeitos colaterais foi o involuntário treinamento em combate desses homens, o que se mostrou determinante para seu sucesso, quase 20 anos depois, em sua luta pela independência contra os britânicos.

O Canadá, de certo modo, foi um “campo de treinamento” para os colonos norte-americanos, além de lhes ter fornecido seu principal líder político e militar, o fazendeiro virginiano George Washington, um dos oficiais das forças auxiliares britânico-americanas na fase canadense da Guerra dos Sete Anos, também conhecida como Guerra Franco-Indígena.

Com o fim da Guerra de Independência, em 1783, e o reconhecimento da soberania nacional no Tratado de Paris, milhares de norte-americanos deslocaram-se, em uma impressionante onda migratória, para os territórios do Canadá, em busca da proteção britânica. Esses norte-americanos conservaram-se fiéis ao rei George III e decidiram manter-se vinculados à Coroa britânica. Os números são impressionantes: servindo ao monarca britânico, lutaram 56 mil britânicos, 50 mil americanos realistas e 30 mil mercenários do Reino do Hesse, enquanto que, do lado dos rebeldes, havia 84 mil colonos, 15 mil franceses e 8 mil espanhóis. Tais dados são reveladores não somente do caráter fratricida que marcou a Revolução Americana e do quão inábeis foram os britânicos em contornar a crise político-tributária em suas colônias.

Sobre esses mercenários alemães, um fato curioso: muitos deles ficaram nos Estados Unidos e, por pouco, os americanos não adotaram o alemão como idioma oficial, como forma de romper qualquer laço com a antiga metrópole. Talvez tenha pesado na decisão desses alemães do Hesse o fato de que a principal fonte de divisas daquele pequeno Estado germânico era a comissão paga ao rei pelos mercenários, a qual era convertida em seguro em caso de morte, cujo prêmio não era pago aos familiares do soldado, mas ao caixa real. Há registros históricos dos reiterados memorandos do rei do Hesse ao encarregado de suas tropas na América indagando o porquê de tão poucos mortos e salientando que isso gerava um efeito negativo nas finanças reais.

Os imigrantes das ex-colônias uniram-se aos canadenses deram início à construção de um novo país. Com o (triste) aprendizado dos administradores britânicos na Revolução Americana, eles mudaram de postura e deram aos canadenses um elevado nível de autonomia política e fiscal. Por outro lado, os canadenses passaram a temer, com evidentes razões, o expansionismo de seus vizinhos norte-americanos, que tentaram ao longo do século XIX expandir suas fronteiras para o Norte. Muitos políticos norte-americanos defenderam, de modo explícito ou dissimulado, a ocupação do território canadense e a duplicação da área dos Estados Unidos. A presença britânica, para além de um histórico de lealdade à Coroa, tornou-se um imperativo de segurança nacional para os canadenses.

Esse peculiar contexto histórico determinou o nascimento de uma nação com instituições jurídico-políticas das mais singulares em todo o mundo. Com orgulho de suas raízes britânicas e monárquicas, os canadenses desenvolveram um sistema político original, aclimatando o modelo britânico à realidade da América do Norte, em um delicado processo de acomodação de interesses e de objetivos históricos. Em 1867, a Coroa promulgou o British North America Act, um autêntico documento constitucional, que instituiu o dominium do Canadá, com representação parlamentar, Poder Judiciário autônomo e sistema tributário independente. O Executivo era atribuído a um governador-geral, lugar-tenente do monarca britânico no Canadá, mas que, com o tempo, passou a exercer funções de chefe de Estado, enquanto o poder efetivo era assumido pelo primeiro-ministro canadense. Esse documento constitucional foi devolvido ao Canadá em 1982 (um processo jurídico-político conhecido como patriation), após sua aprovação pelos Parlamentos britânico e canadense, com o placet da rainha Elizabeth II. Com a patriation, esse texto constitucional foi renomeado para Canada Act, de 1982. A leitura de seu artigo 2º permite entender o alcance do ato de patriation: nenhuma lei aprovada pelo Parlamento do Reino Unido, promulgada após o Ato Constitucional de 1982, terá vigência automática no Canadá e não fará parte de seu direito interno.[1]

Como resultado desse modo inteiramente original de constituição jurídico-política do Canadá, diversos elementos da tradição britânica remanescem em sua vida institucional. Uma delas é o Senado, cuja reforma é causa de acesa polêmica entre as forças partidárias canadenses nos últimos anos.

O Poder Legislativo do Canadá é formado pela Câmara dos Comuns, o Senado e o monarca, representado pelo governador-geral. O Senado está constitucionalmente organizado à semelhança da britânica House of Lords, com 105 membros indicados pelo governador-geral, ouvido o primeiro-ministro. Até 1965, os senadores, como os lords, eram vitalícios. Desde então, estabeleceu-se o limite de 75 anos, após o qual o senador não poderá mais continuar em funções. A composição da câmara alta do Parlamento dá-se em obediência a critérios federativos, de molde a que se combinem a obrigatoriedade de representação de cada uma das províncias ou dos territórios nacionais, com elementos populacionais. Assim, exempli gratia, Ontário e Quebec possuem, cada qual, 24 senadores. Ao passo em que a Nova Escócia pode indicar 10 senadores e a Ilha do Príncipe Eduardo terá 4 senadores. O total de senadores é de 105 membros, mas não há correspondência exata entre o critério populacional e o número de representantes senatoriais. O objetivo é exatamente esse: evitar a preeminência de uma unidade federativa mais populosa sobre outra com menor densidade demográfica.

Como o critério de indicação dos senadores não é propriamente democrático, até por guardar fidelidade ao modelo aristodemocrático ainda em vigor no Reino Unido, grande parte dos representantes federativos é formada por ex-ministros nacionais e provinciais, além de personalidades eminentes no cenário político, jurídico, universitário e militar. São requisitos formais para ocupar o cargo: a) a nacionalidade canadense; b) a idade superior a 30 anos; c) o domicílio na respectiva unidade federada de sua representação parlamentar.

O ciclo histórico do Senado canadense como um espelho do modelo bicameral britânico parece que se aproxima do fim. Desde a década de 1970, apresentaram-se mais de duas dezenas de projetos de reforma do Senado, sem, contudo, algum deles obter sucesso. As duas principais aspirações dos reformistas são a mudança dos critérios para eleições dos senadores e o estabelecimento de um limite a sua permanência no cargo.

O projeto de reforma do Senado, que ora está em debate no Canadá, prevê: a) a escolha dos senadores por meio de consultas provinciais (ou territoriais), mas com a participação do primeiro-ministro, que recomendaria ao governador-geral uma lista de nomeáveis; b) a criação de limite de tempo para os mandatos, que poderá ser de nove anos, sem recondução.

Essas propostas têm dividido o cenário político canadense. A mais importante força de oposição, o Novo Partido Democrático, uma agremiação socialdemocrata, põe-se de modo mais radical em favor da pura e simples extinção do Senado.

A polêmica sobre como será essa mudança de status do Senado teve seu último desdobramento, este ano, com a decisão do governo conservador do primeiro-ministro Stephen Harper de apresentar seis perguntas sobre os limites formais da reforma à Suprema Corte do Canadá. Uma delas é se realmente será necessária uma alteração constitucional ampla, que envolva a manifestação do Governo central e das províncias. Além disso, indagou-se à Suprema Corte sobre a) a possibilidade de abolição do Senado; b) a validade de uma emenda que suprima os requisitos mínimos para alguém se tornar senador; c) quais os limites temporais dos mandatos de senador; d) o modo de se consultar os eleitores sobre a escolha dos membros do Senado.

A iniciativa do primeiro-ministro foi um modo de destravar o processo de reforma do Senado, que estagnou ante tantas e tão vivas divergências sobre a continuidade institucional da câmara alta ou sobre como se poderiam introduzir mecanismos total ou parcialmente democráticos na seleção dos legisladores.

O cenário canadense não pode ser descrito como uma crise constitucional. No entanto, ele se insere em um debate relativamente difundido em alguns países sobre a utilidade de se manter o senado nas estruturas parlamentares das nações democráticas nos tempos atuais.

A República da Irlanda, segundo noticiou o jornal The Irish Times, está prestes a extinguir seu Senado. A própria câmara alta irlandesa decretou sua sentença de morte em julho de 2013, ao aprovar o projeto de abolição, com 33 senadores a favor e 25 contra.[2] O projeto deverá ir a referendo popular, por iniciativa do Governo, no próximo dia 4 de outubro de 2013, fato que divide a população. A crise econômica de 2009, que quase levou a Irlanda à falência, é apontada como causa direta desse projeto de alteração constitucional.

No Brasil, a tese da extinção do Senado é quase sempre retomada em períodos de grande desgaste público da câmara alta ou por quem defende uma profunda e radical revisão do processo legislativo. Essa hipótese, considerada a função histórica do Senado e as profundas assimetrias na federação, é bastante remota. O problema mais sério está na perda de legitimidade popular das instituições parlamentares, um fenômeno que não é privilégio brasileiro, e o comprometimento da função nomogenética das casas parlamentares.

A reforma do Senado canadense põe em perspectiva todas essas questões. Mas, não se pode esquecer de que essa mudança conecta-se com a maneira absolutamente peculiar de formação desse grande país americano, que lentamente se afasta de sua matriz constitucional victoriana.

Para concluir, uma pequena nota histórica. Em 1901, um jovem herói da Guerra dos Bôeres, de nome Winston Spencer Churchill, percorreu os Estados Unidos e o Canadá realizando conferências sobre sua já atribulada e famosa vida de soldado na África do Sul, no Egito e na Índia Britânica. Ele seria eleito retumbantemente para o Parlamento, após ter sido preso pelos sul-africanos, mantido em um campo de segurança máxima e haver fugido, atravessado o país, sob perseguição cerrada de todo o Exército bôer, e conseguido escapar ileso em uma estação ferroviária de Moçambique.

Seu último estágio no circuito de palestras norte-americanas foi no oeste do Canadá. A notícia da morte da rainha Victoria, em janeiro de 1901, coincidiu com sua conferência na fronteira canadense. Churchill, em suas memórias, não deixou de anotar a emoção que sentiu ao perceber nos habitantes daquela região tão longínqua e fria da América do Norte o verdadeiro pesar pelo falecimento da soberana, traduzido pelo luto nas fachadas e pelas manifestações públicas. Naquelas pessoas elevava-se o senso de pertencimento à comunidade político-jurídica que ela simbolizava. O Direito e as instituições por ele criadas, muita vez, têm uma função metajurídica das mais nobres, para além de estabilizar as relações sociais, a qual vem a ser a formação nas pessoas da consciência de integrar uma comunidade pautada por valores mínimos, por consensos básicos, que permite um Estado e uma nação serem algo mais do que um aglomerado de indivíduos submetidos a um governo despótico. O Canadá é um belo exemplo disso. Até hoje.


[1] O inteiro teor do Canada Act de 1982 está disponível neste link. Acesso em 29/9/2013.
[2] Informação publicada na edição de 24 de julho de 2013 do jornal The Irish Times, disponível neste link . Acesso em 30/9/2013.

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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