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Instrução Normativa da Receita abala segurança jurídica

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2 de outubro de 2013, 8h01

“O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade” — Tancredo Neves

De 25 a 27 de setembro realizou-se em Belo Horizonte o XVII Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário (“ABRADT”). Este ano o tema do Congresso foi Tributação e Federalismo, sendo homenageado o ,ministro Teori Zavascki do Supremo Tribunal Federal.

Foram dias inesquecíveis, profundamente marcantes e verdadeiramente históricos. Aqueles que lá estiveram saberão do que estamos falando. Aqueles que não estiveram, poderão buscar no Youtube as filmagens das mesas de debate e compreenderão o que estamos falando.

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“O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade”. Não poderia ser mais apropriada a citação dessa frase de Tancredo Neves, dita ao povo da sacada do Palácio da Liberdade, e repetida por Eduardo Maneira, Presidente da ABRADT, no salão de jantar daquele mesmo histórico prédio, em suas palavras de agradecimento ao governador Antonio Anastasia pela recepção oferecida por ocasião do Congresso..

Em Minas Gerais ouviu-se um grito de liberdade, o clamor da comunidade jurídica, representada por 600 congressistas de 20 Estados, por uma urgente revisão do pacto federativo que se impõe ante uma União Federal cada vez mais centralizadora, arrecadadora voraz de tributos de todas as espécies, que para fazer valer seus desígnios tem sistematicamente desrespeitado direitos e garantias fundamentais, notadamente o direito fundamental à segurança jurídica.

Sem segurança jurídica não há liberdade. Liberdade é autonomia de escolha com previsibilidade. É o poder decidir sabendo quais serão as consequências dessa decisão. Só é livre aquele que pode escolher com previsibilidade. A escolha sem previsibilidade é o domínio do arbítrio. Um verdadeiro Estado Democrático de Direito não tolera arbitrariedades.

Essa foi a tônica da aula magna do professor Humberto Ávila. Sim, a palestra sobre o tema Irretroatividade e Direitos Fundamentais foi uma verdadeira aula magna. A audiência assistiu embevecida a uma fala escorreita, articulada, precisa, profundamente erudita, perfeitamente assimilável em todos os seus aspectos. Ávila debruçou-se sobre as relações entre Direito e tempo, recordou-nos do mito de Cronos devorando os filhos para assegurar sua própria existência, passou pelos percalços da introdução do calendário gregoriano que exigiu a supressão de alguns dias do ano do calendário anterior, tudo isso para demonstrar que por apenas conhecermos o passado, o Direito há de conceber soluções seguras para o desconhecido futuro. O princípio da legalidade é a primeira delas. As leis gerais e impessoais aplicam-se a todos e não se podem manipular suas consequências jurídicas.

O princípio da irretroatividade é a garantia de que a lei nova não aplicará ao passado, que permanecerá regido por aquilo que se conhecia. Nesse sentido, Humberto Ávila propõe uma interpretação mais garantística da cláusula da irretroatividade da lei tributária (artigo 150, inciso III, alínea “a” da CF/88), estendendo-a aos fatos geradores em curso de formação, mais ainda não concluídos no exercício de edição da lei mais gravosa. Com efeito, a cláusula da irretroatividade da lei tributária é uma garantia constitucional assegurada aos contribuintes, na dicção do caput do artigo 150, sem prejuízo de outras (garantias asseguradas ao contribuinte), dentre elas as da segurança jurídica e da previsibilidade da ação estatal.

É muito bem vinda essa lufada de ar fresco, de pensamento moderno e libertário, para arejar o pensamento dos Tribunais nesse domínio.

Com efeito, no passado recente vivenciamos inúmeras situações em que tribunais admitiram que fatos geradores em curso de aperfeiçoamento fossem colhidos por novas leis de tributação. Exemplo paradigmático é o caso do imposto de renda na fonte sobre operações de hedge instituído pelo artigo 5º da Lei 9.779/1999, que os tribunais consideraram aplicável mesmo a operações contratadas antes da entrada em vigor da nova lei, apenas porque o fato gerador — pagamento dos rendimentos — estaria ocorrendo já sob a sua égide[1], esquecendo que os parâmetros de sofisticadas operações financeiras contratadas entre as partes foram estipulados levando em conta a não incidência de tributação na fonte, mas apenas do IRPJ sobre o lucro real.

Não nos parece compatível com as garantias da segurança jurídica e da previsibilidade da ação estatal se permitir a aplicação da nova lei a pagamentos oriundos de contratos firmados sob a égide da lei anterior.

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No Congresso da ABRADT tive a honra de participar de uma mesa dedicada ao tema Impostos federais, cabendo a mim uma exposição crítica do Parecer CAT/PGFN 202/2013, tema tratado na coluna Parecer da PGFN representa risco de extorsão tributária.

Infelizmente, dias antes do Congresso, o que ainda era risco se materializou. No dia 16 de setembro de 2013 foi editada a Instrução Normativa RFB 1.397 que teve a ousadia de afirmar ser tributável a parcela de dividendos recebidos por pessoas físicas, jurídicas, residentes no Brasil ou no exterior, distribuída com base em resultados apurados de acordo com os padrões contábeis da Lei 11.638/2007, mas ajustados pelo Regime Tributário de Transição (RTT) de que trata o artigo 15 da Lei n.º 11.941/2009.

Muito embora não esclareça expressamente em seu texto, já houve manifestações de autoridades da Receita Federal na imprensa especializada no sentido de que pretende aplicar as regras de tributação de forma retroativa[2]. Ou seja, as novas normas seriam aplicadas a fatos geradores ocorridos (e concluídos!) desde 2008 até 2013.

Trata-se de algo da maior gravidade. Uma nódoa indelével sobre a administração fiscal brasileira, que jamais havia ousado perpetrar tamanha violação de direitos e garantias individuais.

A Receita Federal quer tributar sem base legal — não há lei que disponha no sentido da tributação de qualquer parcela de lucros ou dividendos — e retroativamente, isto é, atingindo remunerações recebidas pelos contribuintes a tal título desde 2008 até os dias de hoje, com a incidência, pasmem, de juros e multa. Isso porque, pasmem duplamente, os contribuintes teriam descumprido não uma norma legal previamente conhecida (porque inexistente), mas a interpretação proclamada em um parecer interno da PGFN, urdido na sombra das repartições.

A extensão do estrago provocado pela IN 1.397/2013 é incalculável, porque além dos dividendos que passaram a ser parcialmente tributados sem que ninguém antes soubesse (art. 28), os parâmetros para a dedução dos juros sobre capital próprio (JCP) também foram inovadoramente alterados (artigo 14), bem como foram os de contabilização do custo contábil das participações avaliadas segundo o método da equivalência patrimonial (artigo 16).

Uma arbitrariedade impensável. Nunca, jamais, os particulares foram tão achincalhados. A manutenção dessa abjeta IN 1.397/2013 significa a morte da segurança jurídica, do próprio Estado Democrático de Direito. Esperamos sinceramente que à data da publicação dessa coluna alguma medida tenha sido tomada para corrigir tão incomensurável dano à cidadania.

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No Congresso da ABRADT foi senso comum que vivemos uma crise do federalismo. É urgente que questões fundamentais como a repartição dos poderes de tributar e a simplificação e racionalização dos tributos sejam revisitadas, pois são os alicerces de uma Federação cada dia mais claudicante.

Não há dúvidas que a Constituição impôs um dever de harmonia fiscal entre os Estados, repudiando a concessão unilateral de benefícios em matéria de ICMS. Leis que desrespeitaram esse dever, porque não se submeteram ao crivo da unanimidade do Confaz, são inconstitucionais. Assim já decidiu reiteradamente o STF[3]. Mas será que esse regramento constitucional é adequado à realidade? É inegável a desigualdade econômica entre estados da federação, é inegável que certos estados necessitam oferecer condições mais vantajosas para atrair investimentos. É razoável tolher esse direito de atração de investimentos pela imposição de uma regra de unanimidade? [4]

Fenômeno análogo se vivencia no plano municipal. São inúmeros os conflitos de competência entre municípios e entre estados e municípios.[5] Tramita açodadamente no Congresso Nacional um projeto de lei complementar em matéria de ISS[6] que pretende engessar, ainda mais, a liberdade dos municípios de concederem vantagens tributárias para atrair empresas. Será razoável tal regramento? Parece-nos que também não.

E o excesso de contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico? Temos sido ferrenhos críticos da proliferação dessas espécies tributárias que apenas concentram mais e mais recursos nas mãos da União Federal[7]. Não deveria o Congresso Nacional centrar sua atenção em limitar o poder de tributar federal, antes de limitar o poder-dever de sobrevivência dos demais entes da federação de desonerar para atrair investimentos?

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A Constituição Federal de 1988 comemora 25 anos no próximo dia 5 de outubro. É mais do que chegada a hora de promover os ajustes de racionalização tributária e de reforço do pacto federativo. Há muitos profissionais qualificados, tanto do setor privado, quanto do setor público capazes de contribuir com suas experiências. Muitos estavam em Minas Gerais nos dias 25 a 27 de setembro. Essa, aliás, foi a maior alegria que trouxemos de Belo Horizonte: o sentimento de que há esperança em dias melhores nesse país, porque ainda há profissionais competentes que, de boa-fé, honestamente, têm contribuído em alto nível para construção de um Estado Democrático de Direito.


[1] Cfr. REsp 671.278/RJ e REsp 591.357/RJ.
[2] Valor Econômico de 19/9/2013, “Instrução sobre RTT retroage a 2008”.
[3] Cfr., entre muitas, ADI 2.435/SC, ADI 3.674/RJ, ADI 3.794/PR, ADI 2.548/PR, ADI 1.247/PA e ADI 3.664/RJ.
[4] Cfr. As reflexões do Ministro Teori Zavascki sobre o tema em sua palestra Sistema constitucional tributário e pacto federativo.
[5] Matérias debatidas em diversos painéis no Congresso da ABRADT, cabendo destacar os painéis Disputas federativas por competências e por receitas, Reflexões sobre federalismo fiscal, Impostos municipais, Impostos estaduais e Processo tributário.
[6] PLC 386/2012
[7] Matéria amplamente debatida no painel Contribuições. Cfr. entre outras, a coluna de 7/8/2013, “Multiplicação das CIDES tem consequências nefastas”; e a coluna de 20/3/2013 “Só uma reforma tributária salvaria o pacto federativo.”

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