Acordo de leniência

Manutenção do sigilo é dever da autoridade antitruste

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24 de novembro de 2013, 6h00

Em meados de agosto deste ano o Conselho Administrativo de Defesa Econômica assumiu ter celebrado acordo de leniência com a empresa Siemens Ltda. A notícia do acordo feito – a fim de auxiliar na investigação de suposta formação de cartel entre a Simens e outras empresas especializadas em transporte – já havia sido veiculada pelo jornal Folha de São Paulo de 15 de julho.

Essa manobra do Conselho Administrativo de Defesa Econômica reafirma o cenário de insegurança jurídica a que o instituto se encontra exposto, pois o seu pilar definitivo é, efetivamente, a garantia de anonimato ao delator. O presente artigo se presta, portanto, a ressaltar a ilicitude da ação do Cade em renunciar ao sigilo, bem como as consequências nocivas aos direitos e garantias fundamentais dos sujeitos que ocupam ou ocuparam cargos de chefia na empresa signatária.

O acordo de leniência, modelo de delação premiada específica à tutela antitruste, foi concebido originalmente nos países anglo-saxões, que adotam como modelo a Common Law, cuja característica é, efetivamente, a maior flexibilidade que se dá à norma, dispensando maior atenção à produção dos tribunais como fonte primária de direito, do que propriamente à lei.

O Departamento de Justiça norte-americano, em agosto de 1993, passou a regulamentar o que chamou de Corporate Leniency Program, traduzido para o português como Programa de Leniência Corporativa, medida que tinha finalidade de preservar o mercado e assegurar a livre iniciativa, buscando progressivamente a erradicação dos crimes de cartel.

O delito de cartel consiste em colusão organizada entre empresários de um mesmo ramo com a finalidade de dominar mercado. Para tanto, fixam preços, consequentemente anulando a possibilidade de concorrência, e prejudicando a tutela estatal à ordem econômica pelas mãos do Estado.

De certo modo, é possível afirmar que o cartel transfere o poder de tutela das forças econômicas das mãos do Estado para a dos cartelizadores; afinal, são eles que efetivamente passam a regular como será feita a compra, a venda e a distribuição do produto objeto do cartel.

Daí se depreende porque o crime de cartel é merecedor de tamanha atenção do Poder Público. Ele se traduz em efetivo golpe na soberania nacional, ao deslocar o controle da ordem econômica – cujo titular é o Estado, por força do artigo 170 da Constituição da República de 1988 – para as mãos dos empresários que compõem a organização anticoncorrencial.

Por conta disso, a Lei 8.137 de 1990 tipificou em seu artigo 4º a conduta cartelizadora, prevendo pena corporal de dois a cinco anos, cumulada com multa.

Sendo o crime de cartel de difícil descoberta, por ter na clandestinidade elemento constitutivo, em 1994, com o advento da Lei 8.884, o legislador brasileiro entendeu por bem importar o instituto da leniência do sistema norte-americano para o brasileiro. Nessa oportunidade outros países de modelo de Civil Law, como Portugal, já haviam implementado o instituto com sucesso, obtendo bons resultado na busca pelo desmanche de organizações monopolizadoras de mercado.

Valendo-se da leniência como instrumento persecutório, o Estado assegura que a atividade anticoncorrencial seja delatada pelos seus próprios membros. O contrato firmado com o Ministério da Justiça, portanto, acontece em uma via de mão dupla: ao leniente (delator) cabe o auxílio ao desmanche da atividade anticoncorrencial e à produção de provas da sua consumação; em contrapartida, o Estado garante um “prêmio” àquele que fornece as informações e cumpre os requisitos impostos: a concessão de imunidade penal e administrativa.

Em outros termos, o delator estaria isento de sofrer processo administrativo e penal, já que as provas que precisou produzir para obter o prêmio acabam por comprometê-lo; bem como por ter se prestado a auxiliar o Poder Público no desmanche da atividade anticoncorrencial. Trata-se, portanto, o acordo de leniência de um contrato colaborativo feito entre delator – membro do cartel – e Ministério da Justiça.

Para reforçar a utilidade e legitimar o acordo como medida oficial de combate a cartéis, em 2009, já com certo amadurecimento do instituto, o Ministério da Justiça lançou a Cartilha de Combate a Cartéis e Acordo de Leniência, que também serviu à finalidade de divulgar o procedimento a empresas que pudessem estar interessadas em aderir ao acordo.

A consolidação definitiva da leniência veio em 2011, quando passou a ter vigência Lei 12.529/11, após anos de trâmite no Congresso Nacional. A Nova Lei Antitruste – como é convencionalmente chamada no âmbito do Direito Concorrencial – obteve vigor em maio de 2012, após seis meses de vacatio legis, trazendo, em seu artigo 86, a previsão definitiva do acordo de leniência, de seus requisitos, e do prêmio conferido àquele membro do cartel que primeiro se prontificar em auxiliar na investigação.

Após breve elucidação a respeito do instituto, importante destacar que no mesmo diploma legal, ao tratar das funções da Superintendência-Geral – órgão do Cade a quem é endereçada a proposta de acordo – afirma a possibilidade de ela requisitar informações necessárias ao interesse dos procedimentos previstos pela lei. Contudo, ao exercer esse direito deve atentar à manutenção do sigilo legal, com a justa finalidade de proteger a pessoa física ou jurídica que auxiliar nas suas atribuições.

É justamente aí que encontramos o problema de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica renunciar ao sigilo e revelar a identidade da empresa com quem celebrou o acordo.

Em primeiro lugar, a interpretação da Lei 12.529/2011 não dá azo a outra conclusão senão a de que a manutenção do sigilo não é uma faculdade, mas, antes um dever da autoridade antitruste. Em segundo lugar, o acordo de leniência perde completamente sua legitimidade quando é revelada a identidade do delator, porque não fica clara a garantia da contraprestação prometida.

Merece também atenção o fato de que a Portaria 456/2010 – que regulamenta as diversas espécies de procedimentos administrativos – prevê expressamente em seu artigo 74 que: “A identidade do signatário do Acordo de Leniência será mantida confidencial em relação ao público em geral até o julgamento do processo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica”, o que reforça a afirmação de que a confidencialidade não é uma opção, mas uma exigência à lisura do procedimento.

Já foi dito que o maior problema à adequada implementação da leniência encontra-se no fato de que, ao fornecer provas decisivas à instauração das ações penais em face dos demais membros do cartel, o leniente encontra-se instado a revelar informações que também o comprometem. Assim, acompanhada da delação, vem a confissão da participação na coalizão.

Como a confissão acaba sendo resultado da celebração do acordo, o sigilo a respeito da identidade do leniente deve ser levado a cabo com o maior rigor possível. Obviamente que a veiculação de matéria jornalística não pode dar ensejo à renúncia do Cade ao sigilo, mesmo porque, repita-se, ele não tem liberalidade para exercitar o dever de sigilo como lhe convier.

E a dificuldade que resulta dessa imprópria interpretação da legislação antitruste em vigor é que os diretores, ex-diretores e demais funcionários da Siemens Ltda. estão sendo chamados a depor em ações penais paralelas que visam à condenação de membros de cartel.

Assim aconteceu com Adilson Primo, ex-presidente da Siemens no Brasil, que em agosto de 2013 foi chamado à Sede do Ministério Público do Estado de São Paulo para prestar esclarecimentos acerca da existência de cartel e do suposto envolvimento do PSDB na atividade anticoncorrencial.

Primo não poderia ter sido chamado justamente porque sua identidade, assim como a da Siemens, deveria ter sido preservada no mais absoluto sigilo pelo Cade, até o encerramento do processo perante o Tribunal Administrativo.

No entanto, com a ampla revelação das identidades dos sujeitos envolvidos no acordo, retira-se vigor do instituto, já que, sabendo da relativização do sigilo, outras empresas envolvidas em cartéis deixarão de apresentar propostas de acordo, porque a segurança jurídica que deve ser devidamente observada pelo Poder Público encontra-se em xeque em função da manobra ilegal do Cade.

A irregularidade já está consumada. Em um exercício equivocado de interpretação da legislação antitruste vigente no país, o Cade abriu mão de algo que não poderia ter aberto. No entanto, o fato de ele ter tomado essa medida ilegítima não obriga os funcionários da Siemens a depor perante o Ministério Público.

Cabe, portanto, aos diretores da empresa blindar-se para que não sejam coagidos a produzir mais provas comprometedoras. Já basta estarem prestando um serviço ao Poder Público pro meio do acordo, não podem em face disso se autoincriminar.

O direito a não autoincriminação é desdobramento do direito ao silêncio – previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Ele pressupõe que ninguém pode se ver instado a produzir provas contra si mesmo, ou dar informações que tenham a mesma consequência. Com fundamento no Nemo tenetur se detegere é direito dos funcionários que estão sendo intimados a se apresentarem ao Ministério Público manter silêncio, já que todas as informações a respeito dos fatos investigados já foram devidamente fornecidas ao Cade quando da assinatura do acordo.

Uma boa solução é a impetração de habeas corpus requerendo o seu não comparecimento na audiência. Segundo a dicção do artigo 654, qualquer pessoa é legitimada ativo à propositura da ação constitucional, seja em nome próprio ou de terceiro, quando se vir diante da iminência de sofrer alguma modalidade de constrangimento ilegal.

No caso em apreço, perfeitamente plausível a impetração da medida, visto que os ex-funcionários que se deparam com a exigência de prestar depoimento a respeito da organização do cartel têm nisso verdadeiro quadro de constrangimento ilegal, porquanto – falando como testemunhas, e não como parte – não podem, sequer, mentir ou omitir a verdade, sob pena de ser processado pelo crime de falso testemunho.

Trata-se de uma manobra fraudulenta do Cade, legitimada pelo Ministério Público, eis que tendo prestado as informações requeridas em âmbito administrativo seria, supostamente, direito do leniente (delator) ser poupado de qualquer exposição ao vexame de participação em ação penal.

Assim, conclui-se que, munidos do princípio constitucional do Nemo tenetur se detegere podem os diretores da Siemens evitar sua oitiva, apontando como autoridade coatora o Ministério Público Estadual – o qual exige sua oitiva. Essa seria a solução mais válida a evitar a hipertrofia do problema causado pelo Cade quando renunciou ao sigilo e revelou a identidade da empresa delatora do cartel dos metrôs.

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