Direito Penal

Trabalho escravo exige garantia de efetividade da tutela

Autores

  • Leonardo Palazzi

    é advogado. Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra/Instituto Brasileiro de Ciência Criminais (IBCCrim).

  • Leonardo Leal Peret Antunes

    é advogado criminalista sócio do escritório MCP|advogados – Machado Castro e Peret.

23 de novembro de 2013, 7h40

Não é de hoje que a dogmática busca estabelecer limites para a atuação e incidência da tutela penal. Como se sabe, atribuir com exatidão quais condutas devem ou não ser penalmente relevantes não é tarefa fácil. Nesse contexto, tem a dogmática se esforçado em adaptar o direito penal buscando atender a crescente demanda social por segurança e, no campo das relações do trabalho, a tutela quanto a precarização que atinja direitos fundamentais do trabalhador.

Em um cenário de conformação do direito aos novos tempos, notamos um crescente empenho estatal, ainda não muito efetivo, na tentativa de coibir, no âmbito empresarial, a exploração econômica do trabalho forçado, exaustivo, degradante e em condições de “semi-escravidão”. O Governo do Estado de São Paulo, nesse sentido, editou a Lei 14.946/2013 que impõe a cassação da inscrição do cadastro de contribuinte do ICMS das empresas que comercializem produtos em cuja a fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem o crime de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal), impondo aos seus sócios, ainda, o impedimento, pelo prazo de 10 anos, do exercício da mesma atividade empresarial. Note-se que as sanções (administrativas) previstas na lei paulista não atingem apenas os responsáveis diretos pelo crime do artigo 149 do Código Penal, mas, também, se estendem àquelas empresas que lhes fazem habitualmente encomendas e não podem, em vista dos preços cobrados (muito abaixo do valor de mercado), ignorar ou desconhecer as condições em que os produtos são fabricados.

A preocupação do estado de São Paulo tem origem em recentes ações que desbarataram oficinas de costura, localizadas na região central da capital paulista, que utilizavam como mão-de-obra trabalhadores estrangeiros (em geral, bolivianos, paraguaios e peruanos), vivendo em situação irregular no país, sendo que em tais locais foi detectada condição degradante de trabalho e, em alguns casos, verificou-se, ainda, a restrição da liberdade desses trabalhadores estrangeiros. Nesse toada, a referida Lei 14.946/2013 busca estender a sanção (no caso, administrativa) às empresas que são economicamente beneficiadas com a perniciosa prática atentatória à dignidade do trabalhador, na medida em que adquirem, por preço vil, produtos destas oficinas e os revendem no mercado, auferindo admirável lucro.

A preocupação demonstrada pelas autoridades paulistas, por certo, transcende o âmbito estadual, atingindo nível nacional (também internacional, tendo como marco legal sobre o tema a Convenção 29 da OIT) e refletindo verdadeiro anseio de toda a sociedade, que já há muito tempo manifesta o absoluto repúdio a qualquer forma de redução da dignidade do trabalhador e de sua liberdade, inclusive aquelas nas quais existe manifestação espontânea ou consentimento do próprio trabalhador. A iniciativa do governo paulista, por sua vez, decorre da ineficácia do direito penal, mais precisamente do artigo 149 do Código Penal, em cumprir sua função de prevenção geral na tutela da dignidade do trabalhador, desde os problemas do conceito dogmático levado a cabo pela Lei 10.803/2003, com quatro situações amplas e de indefinido conteúdo, até sua efetiva persecução. Aliás, raras são as condenações pela prática do aludido delito, o que demonstra que no caso específico, o direito penal tem falhado, também, em suas funções retributiva e de prevenção especial.

E aqui surge a questão: existiria alguma maneira do direito penal garantir maior efetividade na tutela da dignidade e liberdade do trabalhador diante da figura do trabalho escravo contemporâneo?

Para tentar responder o questionamento, buscaremos harmonizar duas figuras jurídicas, muito discutidas no julgamento da Ação Penal 470, à imputação do crime do artigo 149 do Código Penal: o domínio funcional do fato e a cegueira deliberada.

É certo que ambas as ficções jurídicas, utilizadas para fixar a responsabilidade penal, são mais facilmente associadas à criminalidade econômica moderna, em geral nos crimes como quadrilha, corrupção e lavagem de capitais. Todavia, não se pode esquecer que a exploração do trabalho possui inegável viés econômico, em casos recentes veiculados na mídia com eminente caráter concorrencial, em que pese o bem jurídico primordialmente tutelado ser a dignidade e liberdade do trabalhador. Assim, os valores tutelados pela norma penal incriminadora, bem como os astronômicos lucros auferidos com a nefasta conduta, autorizam construções dogmáticas alinhadas à realidade, no sentido de imputação do delito, para garantir a necessária concretude da tutela penal.

A teoria do domínio funcional do fato surgiu em 1939 com o finalismo de Welzel, mas foi desenvolvida e ganhou maior notoriedade através de Claus Roxin, em justificativa à responsabilização dos crimes cometidos pelo nacionalsocialismo, por meio da figura do autor mediato ou crimes praticados no âmbito de uma organização, a princípio nos sistemas totalitários[1]. Partindo do conceito restritivo de autor, a teoria do domínio do fato busca sintetizar aspectos objetivos e subjetivos, e, embora o domínio do fato suponha um controle final (aspecto subjetivo), não requer somente a finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio do fato (aspecto objetivo). Sob esse prisma, o autor é visto como a pessoa que tem o poder de decisão sobre a realização do fato, sendo necessária, ainda, a demonstração de que aquele que detém posição de comando concorreu para a prática criminosa. Desta forma, não só a pessoa que executa a ação típica é autor, mas também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal. Todavia, é importante que se diga que não basta para imputação da autoria a mera posição hierárquica superior, divorciada da comprovação de que a pessoa ocupante deste posto determinou a prática delitiva, sob pena de ingressarmos na responsabilidade objetiva na esfera penal, o que é absolutamente incompatível com um direito penal contemporâneo[2].

A teoria da cegueira deliberada (willfull blindness), por sua vez, tem origem em precedentes do direito anglo-saxão e visa responsabilizar criminalmente aquele que deliberadamente se coloca em situação de ignorância, tendo ciência, entretanto, das decorrências desse estado. Assim, a conduta deste agente que tem o conhecimento da alta probabilidade da ocorrência típica e “fecha os olhos” para essa possibilidade real e iminente é punida na modalidade dolosa. Em outras palavras, há a probabilidade real de um resultado criminoso e o agente nada faz, aliás, finge não perceber determinada situação de ilicitude, sendo beneficiado pela vantagem pretendida[3].

Sem adentrar na questão atinente ao preenchimento da tipicidade, que foge ao objeto da presente análise e que passa pelo conteúdo material dos elementos normativos do tipo, acreditamos, no que tange à responsabilização criminal, ser plenamente possível a utilização das figuras do domínio funcional do fato e da cegueira deliberada, também em relação ao crime previsto no artigo 149 do Código Penal, com o fito de garantir a necessária efetividade da normal penal incriminadora em questão. Importante esclarecer, nesse ponto, que não preconizamos a utilização desarrazoada das duas ficções jurídicas mencionadas, mas admitimos, sim, sua aplicação, desde que respeitados todos os pressupostos que lhes são inerentes.

Desta forma, de acordo com a teoria do domínio funcional do fato é imprescindível para a fixação da autoria a comprovação inequívoca de que o agente tinha conhecimento dos fatos e contribuiu como figura central para a sua prática. Quanto ao reconhecimento da willful blindness, é necessária a demonstração de que o agente se colocou em situação de ignorância, por ter plena ciência das decorrências desse estado e com o intuito de obter determinada vantagem. A utilização de tais figuras jurídicas divorciadas destes pressupostos básicos é absolutamente inaceitável diante da necessária observância do princípio da culpabilidade.

As nefastas consequências do trabalho escravo contemporâneo, relacionadas à ordem econômica e concorrencial, mas, principalmente, à dignidade do trabalhador, exigem da dogmática penal instrumentos aptos a garantir a efetividade da tutela. Portanto, uma vez respeitados os pressupostos apontados, admissível o uso das teorias do domínio funcional do fato e da cegueira deliberada na aplicação da norma prevista no artigo 149 do Código Penal, para coibir, no âmbito empresarial, a exploração econômica do trabalho forçado, exaustivo, degradante e em condições de “semi-escravidão”.

[1] OLIVÉ, Juan Carlos Ferré… [et. al.] Direito penal brasileiro: parte geral: princípios fundamentais e sistema. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 547.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. A teoria do domínio do fato e a autoria colateral. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-nov-18/cezar-bitencourt-teoria-dominio-fato-autoria-colateral>

 [3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. Boletim do IBCCRIM nº 246 – maio/2013.

Autores

  • é advogado. Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra/Instituto Brasileiro de Ciência Criminais (IBCCrim).

  • é advogado. Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Assistente de Direito Processual Penal na PUC-SP.

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