Paradoxo da Corte

Eficácia retroativa de pronunciamentos judiciais é desleal

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19 de novembro de 2013, 7h00

Retorno ao tema atinente aos malefícios produzidos pela desleal eficácia retroativa dos pronunciamentos judiciais.

Preconizava um velho advogado que a maior de todas as conspirações contra a segurança jurídica é o costume de alguns magistrados de proferir “decisão-surpresa” com base em seu próprio código. Ironizava ele: “o Dr. Theotonio exclusivo do ilustre juiz!

A ciência processual de época contemporânea, norteada pela Constituição Federal, não mais admite, em hipótese alguma, a surpresa aos litigantes, decorrente de ato decisório judicial escudado em questão fundamental não suscitada nos autos. O tribunal, portanto, tem o dever de dar conhecimento prévio às partes sobre eventual ponto não debatido e que poderá ser objeto de decisão. Dessa forma, os litigantes estarão mais bem aparelhados para defender o seu direito e, assim, influir no pronunciamento judicial.

A liberdade outorgada ao julgador na escolha da norma a aplicar, quando não invocada pela parte interessada (iura novit curia), jamais dispensa a oitiva dos litigantes acerca dos novos rumos a serem imprimidos à causa, em atenção à inarredável garantia do contraditório.

Esclareça-se que o art. 10 do nosso futuro CPC, veda, com todas as letras, o “fundamento surpresa”, ao estabelecer que: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício” (PLC 8.046/2010).

Pois bem, acompanhando a evolução da moderna tecnologia digital, a Lei n. 11.419/2006, que disciplinou a informatização do processo judicial, inspirou-se, por certo, no princípio fundamental da duração razoável do processo. No âmbito da justiça estadual de São Paulo, secundando as diretrizes daquele texto legal, mais recentemente, foi baixada, pela Presidência do TJ, a Resolução 551/2011, para regulamentar o processo eletrônico.

Toda legislação nova (e, no caso, revolucionária) demanda, num primeiro momento, redobrado cuidado em sua aplicação, devendo ser interpretada, em especial, pelo julgador, com muita serenidade, sobretudo para evitar prejuízo aos litigantes e, consequentemente, aos advogados, que continuam a conviver diariamente, no âmbito da justiça estadual de São Paulo, com um sem número de dificuldades práticas provenientes da implementação do processo eletrônico. Até aí tudo bem, os obstáculos de um modo ou de outro acabam sendo superados!

Todavia, inúmeros problemas bem mais graves emergem quando os juízes, a pretexto de acelerar a marcha do processo, violam, de forma ex abrupto e ex novo, as regras processuais pré-estabelecidas, pouco se importando com o direito material das partes e muito menos com a responsabilidade profissional dos advogados. Para perplexidade da comunidade jurídica, durante o mês de maio passado, a 3ª Turma do TRF da 4ª Região, em duas sucessivas ocasiões, nos julgamentos dos agravos de instrumento 5003563-11.2013.404/0000 e 5001481-41.2012.404/0000, de relatoria, respectivamente, dos desembargadores Fernando Quadros da Silva e Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, entenderam, sem a menor sinalização e depois de já consumado o ato processual, que nos domínios do processo eletrônico, havendo litisconsórcio passivo, não se aplica a regra do artigo 191 do CPC, ou seja, o prazo para contestar é simples. Observa-se que nos dois votos condutores prevaleceu, de forma declarada, a interpretação teleológica, atendendo-se à finalidade do processo eletrônico, “no qual não se fazem mais presentes as restrições para vista dos autos” (sic).

Posteriormente, no âmbito daquela mesma corte gaúcha, a 4ª Turma, em senso diametralmente oposto, decidiu, por maioria, que, na esfera do processo eletrônico, quando os réus estiverem representados por diferentes procuradores, “aplica-se, com relação aos prazos, a regra inserta no art. 191 do CPC” (Agr. Instr. n. 5013337-65.2013.404.0000, rel. Des. Vivian Josete Pantaleão Caminha – 14/08/2013).

A despeito da flagrante divergência que passou a reinar sobre esta questão no TRF da 4ª Região, a inusitada exegese acabou contagiando o TJ-SP. A prestigiosa 30ª Câmara de Direito Privado do tribunal bandeirante, por paradoxal que possa parecer, sem aduzir qualquer novo fundamento, mínimo que fosse, ao julgar o Agravo de Instrumento 0084668-50.2013.8.26.0000, relatado pelo desembargador Marcos Ramos, cingiu-se a reproduzir a ementa do leading case, acima apontado, no sentido de que: “a regra no art. 191 do CPC é inaplicável ao processo eletrônico, posto que não se fazem mais presentes as restrições para vista dos autos”.

Ainda que esta orientação possa ter alguma consistência lógica, uma vez que o processo eletrônico, de forma virtual, encontra-se a todo tempo à disposição dos advogados, o certo que a regra do artigo 191 do CPC não foi revogada e tampouco alterada pela legislação específica, fazendo incidir, como é curial, o aforismo: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. A previsibilidade da jurisprudência e a segurança jurídica partem do pressuposto de que todo magistrado, em sua nobre função judicante, subordina-se exclusivamente à lei (“e não ao seu próprio código!”). A incerteza gerada pelo advento de um novo precedente contra legem acarreta um custo social e econômico elevadíssimo, ainda que aquele não ostente eficácia vinculante.

Ademais, mesmo que fosse jurídica e eticamente admissível a referida interpretação, diante do princípio do devido processo legal, os litisconsortes passivos deveriam ser advertidos no primeiro despacho proferido no processo, a evitar indesejável surpresa, que não seria considerado, na tramitação do respectivo procedimento, o benefício ditado pelo art. 191 do CPC.

Volto a enfatizar: estipulada de logo a “regra do jogo” — ainda que arbitrária — evita-se, com efeito, a perversa retroatividade do insólito posicionamento pretoriano, circunstância que impede a perpetração de qualquer emboscada aos advogados, preservando-se, como precípuo escopo da jurisdição, o direito material dos litigantes.

Decorre desse importante comportamento a consciência de lealdade que deve fluir da função judicante, ao infundir confiança e segurança jurídica à sociedade e, em particular, aos jurisdicionados.

Afinal, consoante a perspicaz e inquietante indagação de Lenio Streck: “Qual é o sentido se, em uma democracia, uma vez construída a legislação, no dia seguinte o Judiciário decida simplesmente não cumpri-la?” (Senso incomum, Consultor Jurídico — 14/11/13).

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