Pergunta complicada

Censo do CNJ questiona qual a minha raça, mas juiz tem cor?

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18 de novembro de 2013, 15h21

Depois de mais de dez anos como juiz, fui convidado a participar do Censo do Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. O propósito anunciado é obter informações para aprimorar as políticas públicas do Poder Judiciário brasileiro.

De pronto, passei a preencher o formulário. E eis que me deparo com a seguinte questão: “Qual a sua cor ou raça?” Não fiquei surpreso porque, recentemente, deparei-me com semelhante questionamento em pesquisa realizada pela UFAL, onde leciono. Todavia, a pesquisa do CNJ é diferente, porque não me possibilita como resposta a recusa em pres-tar essa declaração.

Senti-me, então, num dilema. De um lado, quero colaborar com o Censo. De outro, me incomoda essa pergunta. Quer dizer que devo me categorizar como branco, preto, ama-relo (de origem oriental: japonês, chinês, coreano etc.) pardo ou indígena, como questi-ona o formulário do Censo?

O problema não é simples como parece à primeira vista d’olhos. Sei como fato que tenho que tenho sangue de brancos, negros, pardos e índios. Só não conheço nenhum an-tepassado “amarelo”. Então, como devo me classificar?

Sei que a genética já comprovou o equívoco de distinguir os seres humanos em raças. Raça só existe uma: a raça humana. Seria então o caso de me categorizar pela cor da pele, tipo de cabelo e outros traços físicos. Mas aí também me vejo com um problema, porque não sei dizer ao certo qual é minha cor.

Veja bem. Não estou querendo me fazer de rogado. Não é também uma questão de me-lindre. É que a cor muda; varia mesmo. Querem saber minha a cor antes ou depois da praia? Garanto que não é teimosia.

Berlinda
Meus pais têm pele branca. Os dois eram aloirados quando criança e passaram a ter cabelos castanhos claros depois que cresceram. Eu também tenho cabelos lisos, e minha pele está mais para branca do que para negra. Por isso, sempre achei que era branco.

Mas isso mudou quando namorei uma menina linda, de cabelos loiros e olhos claros. Certa vez aconteceu uma cena engraçada; quando eu falei que era branco, ela começou a rir e respondeu: “Você deve estar brincando. É claro que você não é branco, branca sou eu: você é morenão!”

Fiquei desconfiado. Então não sou branco?

Depois da reação inicial de surpresa, pensei um pouco e achei que ela tinha razão. Afinal, não sou tão branco assim, principalmente depois de um fim de semana no Francês. E depois, diante de um juízo tão espontâneo e seguro da minha namorada, não tive dú-vida: convenci-me de que era moreno. Não nego que tive certo orgulho nisso. Afinal, na Bahia (e acho que no Brasil todo) os morenos são cantados e decantados.

O tempo passou. O namoro não vingou, mas guardei dele boas lembranças, e também a adquirida consciência  de minha “morenidade”. Mas então aconteceu outra situação que me deixou intrigado.

Nessa época estava namorando outra menina linda, mas essa era como eu, morena tam-bém, de cabelos cacheados e olhos negros. Contei a ela o episódio e disse como descobri que era moreno. Outra surpresa. Minha namorada olhou incrédula e disparou: “Como assim moreno? De jeito nenhum. Morena sou eu, você é branco mesmo!” E desatou a rir.

Fiquei na berlinda. Para minha namorada branca eu era moreno. Para minha namorada morena eu era branco. E eu já não sabia de mais nada.

Algum tempo depois finalmente descobri qual era minha cor “oficial”. Foi na seleção para o serviço militar. O sargento que estava preenchendo minha ficha tachou-me com a seguinte distinção: pardo. Mas como assim? E pardo é cor de gente? Lembra mais os nomes dos cavalos lá de Maracás, interior da Bahia, de onde veio meu avô Alírio: tem o baio, o pampa, o castanho e o pardo. Não gostei nem um pouco; afinal, alguém já ouviu falar do “orgulho pardo”?

Achei o documento do Exército tão estranho que não dei maior importância. Afinal, depois de fazer papel de bobo por duas vezes, eu já sabia que essas categorizações são muito subjetivas; eu mesmo desisti de me classificar. Não sou branco, não sou moreno, sou só eu mesmo e a cor não importa. Foi por isso que, na pesquisa da UFAL, respondi que preferia não declarar minha raça ou minha cor.

Agora, tanto tempo depois, o CNJ quer que eu assuma minha condição de pardo, que quer dizer mestiço. Mas por que se dizer pardo? Isso soa tão mal. Não me sinto pardo, preferia me declarar mestiço ou mulato. Fico só pensando como se sente o colega que tem de se declarar “amarelo”. Gente, isso é de um mau gosto terrível!

Mas há outra pergunta que me desassossega. Qual o uso dessa informação? Para que serve a qualificação? Só pode servir de subsídio às políticas raciais que a mim desagra-dam profundamente. Penso que somos todos humanos e, por isso, as distinções com base na raça ou na cor da pele são, por definição, odiosas e segregacionistas. Não quero participar disto.

Afinal de contas, para quem isso é importante? É para o jurisdicionado? Para o governo? Será que devemos começar a perguntar às partes e aos advogados do processo qual a sua cor ou raça? O patrão deve perguntar isso a seu empregado? O professor deve perguntar a seu aluno?

Em minha opinião, numa democracia igualitária a cor da pele não tem importância. Mas para o CNJ tem. Então que fique o Conselho com sua pesquisa. Essa pergunta eu não respondo.

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