Consultor Tributário

Mineradora tem crédito de ICMS por energia elétrica

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

13 de novembro de 2013, 7h01

Os Fiscos brasileiros desprezam a não cumulatividade, seja no ICMS, no IPI ou no PIS/Cofins. Tratamos do tema de forma abrangente em coluna anterior (União e estados desacreditam a não cumulatividade), e desta vez exploraremos um sintoma recente deste mal crônico.

Cuida-se da Instrução Normativa 3/2013 da Superintendência de Tributação da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais, proibindo — ademais, em caráter retroativo — o aproveitamento de créditos de ICMS quanto à energia elétrica empregada no beneficiamento de minerais.

O seu núcleo está no artigo 2º, que erige raciocínio às avessas[1]: se o produto não se sujeita ao IPI (como se minerais pudessem ser atingidos pelo imposto, com abstração do artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição[2]) ou não sofreu descaracterização mineralógica (como se este fosse o resultado necessário de todo processo industrial sobre minerais), não é industrializado.

E, não o sendo, não atrai a regra do artigo 33, inciso II, alínea b, da Lei Complementar 87/96, que autoriza o crédito de ICMS pela energia elétrica “consumida no processo de industrialização”.

O diploma estadual não resiste ao cotejo com o Código Tributário Nacional, norma geral que vincula todos os entes políticos, ou com a legislação federal, cujos conceitos prevalecem no caso, por ser da União a competência para instituir o IPI (Constituição Federal, artigo 153, inciso IV). A premissa, auto evidente, é respaldada pela observação do ministro Herman Benjamin no Recurso Especial 842.270/MG, a lembrar que “a Primeira Seção teve oportunidade de, recentemente, ratificar o entendimento de que a definição do que seja industrialização, para fins de creditamento do ICMS incidente sobre energia elétrica, é dada pelo Regulamento do IPI, à luz do art. 46 do CTN” [3].

Pois bem: nos termos do artigo 46, parágrafo único, do CTN, “considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”.

Ainda mais direto é o artigo 4º, inciso II, do Decreto 7.212/2010 (Regulamento do IPI): “caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (…) a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento)”.

Embora isso fosse desnecessário, o comando é reiterado de modo literal no artigo 222, inciso II, alínea b, do Regulamento do ICMS de Minas Gerais (Decreto 43.080/2002).

Não há dúvida de que o beneficiamento de minerais é atividade industrial, dado que altera a sua apresentação e os aperfeiçoa para o consumo. Mera interpretação gramatical o atesta.

Reitere-se que o fato de os produtos resultantes não sofrerem a incidência do IPI não interfere com o caráter industrial do processo, o qual é antes confirmado pela imunidade enunciada no artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição e reproduzida no artigo 18, inciso IV, do Regulamento do IPI[4] — sem a qual o imposto federal seria normalmente devido.

Tampouco afasta o cariz industrial da atividade a circunstância de os produtos finais terem a mesma classificação mineralógica (minério de ferro, por exemplo) dos insumos iniciais.

De fato, pela sua própria definição legal, a industrialização pode ou não acarretar a alteração da natureza química da substância sobre a qual incide — a primeira hipótese, em rigor, ocorre apenas em uma das cinco modalidades listadas no artigo 4º do Regulamento do IPI: a transformação[5].

Assim, para mantermos o exemplo, tanto é industrial (a) o beneficiamento de minério de ferro quanto o (b) processo siderúrgico, que o transubstancia em espécies novas (gusa e, depois, aço).

A distinção entre ambos os processos, baseada no conceito de descaracterização mineralógica e na incidência do IPI[6], tem relevância para a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral — Leis 7.990/1989 e 8.001/1990), exação não tributária que onera o produto mineral na última etapa de sua circulação enquanto tal, mas não grava os produtos fabricados a partir de minerais (aço, cimento, etc.).

Com efeito, se houve descaracterização mineralógica, não se tem mais o minério originalmente extraído. Se há espaço para a incidência do IPI, não se trata mais de mineral do país (pois estes são imunes), mas de bem produzido a partir dele, o que também deixa claro ter-se encerrado a cadeia de circulação do produto primário.

A distinção em tela (industrialização que origina ou não espécie nova) não tem, porém, nenhuma utilidade no âmbito do ICMS, em que tudo o que importa é saber se houve ou não um tipo qualquer de processo industrial, para que se possa cogitar de creditamento quanto à energia elétrica.

A industrialização que não desnatura o produto é admitida noutro contexto pelo próprio Fisco mineiro, como se verifica da Instrução Normativa 1/2003 da Superintendência de Legislação Tributária, que estabelece os requisitos para o gozo da imunidade ao ICMS das operações interestaduais com energia elétrica ou petróleo e seus derivados (Constituição Federal, artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea b).

Na conformidade do artigo 1º, parágrafo 1º, do diploma, “entende-se por industrialização a operação em que os mencionados produtos sejam empregados como matéria-prima e da qual resulte petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados ou energia elétrica”.

É dizer: ainda que seja criticável por não admitir a imunidade da energia ou do petróleo e derivados empregados na industrialização de outros bens — tema que não versaremos aqui —, a regra acerta ao atestar a existência de industrialização cujo produto final guarda a mesma natureza do insumo inicial (industrialização de petróleo em petróleo, de combustível em combustível, de lubrificante em lubrificante ou de energia elétrica em energia elétrica).

Por todas as razões acima expostas, o Conselho de Contribuintes daquela unidade federada tem declarado o direito aos créditos da energia elétrica empregada no beneficiamento de minerais (1ª Câmara de Julgamento, Acórdão 16.668/04, Relatora Conselheira Luciana Mundim de Mattos Paixão, DOE 23.09.2004)

Foi para suplantar essa jurisprudência, fundada diretamente na lei complementar e na legislação federal constitucionalmente habilitada ao trato da matéria, que se editou o diploma infralegal aqui analisado, cuja subalternidade impede a produção do efeito colimado.

A bem dizer, a vedação em causa não seria válida mesmo que fosse veiculada em lei ordinária ou complementar.

Deveras, ao formular o princípio da não cumulatividade (ainda que este seja interpretado em sua forma mais restritiva, que só admite o crédito físico), o artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição garante o aproveitamento dos créditos pela aquisição de insumos integrados ao produto final ou ao resultado material do serviço ou consumidos na produção do primeiro ou na prestação do segundo, sendo inválida toda redução deste núcleo mínimo.

De notar, para concluir, que o direito ao creditamento do ICMS incidente sobre a energia elétrica aplica-se inclusive a atividades que tidas por industriais por mera equiparação legal (as telecomunicações, como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no já referido Recurso Especial 842.270/RS), o que reforça a existência do direito em relação às que o são pela sua própria natureza.

Merece punição o contribuinte que recorre a artifícios para furtar-se a pagar o que deve. Nada mais justo. Mas só poderemos dizer-nos sérios quando dermos igual tratamento a autoridades fiscais que exigem o que sabem ser descabido. Por ora, até a restituição do indébito é uma quimera…


[1] Eis os principais artigos da Instrução Normativa:
“Art. 1º. Considera-se produto primário aquele resultante da agricultura, pecuária, produção florestal, pesca, aquicultura, extração e de atividades complementares a estes processos, desde que tal produto resultante não esteja compreendido no campo de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados.
§ 1º. Os produtos não compreendidos no campo de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados são os relacionados na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI com a notação ‘NT’ (não tributado), nos termos do art. 6º da Lei Federal nº 10.451 de 10 de maio de 2002.
§ 2º. Compreendem-se entre as atividades complementares à extração, não industriais, a fragmentação, pulverização, classificação, concentração, separação magnética, flotação, homogeneização, aglomeração ou aglutinação, briquetagem, nodulação, sinterização, pelotização, ativação, coqueificação, calcinação, desaguamento, inclusive secagem, desidratação, filtragem, levigação, bem como qualquer outro processo, ainda que exija adição ou retirada de outras substâncias, desde que não resulte na descaracterização mineralógica das substâncias minerais processadas ou que não impliquem a sua inclusão no campo de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
(…)
Art. 3º. Nas atividades de produção e de extração de produtos primários, principais e complementares, é vedado o aproveitamento de créditos de ICMS relativo à aquisição de energia elétrica, exceto na hipótese de seu emprego como insumo energético na produção de mercadorias destinadas ao exterior, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento.
(…)
Art. 7º. Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos em virtude de seu caráter interpretativo.”
[2] “Art. 155, § 3º. À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo [ICMS] e o art. 153, I e II [impostos aduaneiros], nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.”
[3] STJ, 1ª Seção, Relator para o acórdão Min. Castro Meira, DJe 26.06.2012. O fato de tratar-se de voto vencido não desautoriza a conclusão ali exposta, pois tudo o que o Ministro Benjamin negava – sem a concordância de seus pares – era o creditamento de energia em relação a atividade não-industrial equiparada a industrial por força de lei.
[4] “Art. 18. São imunes da incidência do imposto:
(…)
IV – a energia elétrica, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.”
[5] Veja-se a íntegra do dispositivo:
“Art. 4º. Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (Lei nº 5.172, de 1966, art. 46, parágrafo único, e Lei nº 4.502, de 1964, art. 3º, parágrafo único):
I – a que, exercida sobre matérias-primas ou produtos intermediários, importe na obtenção de espécie nova (transformação);
II – a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento);
III – a que consista na reunião de produtos, peças ou partes e de que resulte um novo produto ou unidade autônoma, ainda que sob a mesma classificação fiscal (montagem);
IV – a que importe em alterar a apresentação do produto, pela colocação da embalagem, ainda que em substituição da original, salvo quando a embalagem colocada se destine apenas ao transporte da mercadoria (acondicionamento ou reacondicionamento); ou
V – a que, exercida sobre produto usado ou parte remanescente de produto deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização (renovação ou recondicionamento).
Parágrafo único.  São irrelevantes, para caracterizar a operação como industrialização, o processo utilizado para obtenção do produto e a localização e condições das instalações ou equipamentos empregados.”
[6] Introduzido pelo art. 14, III, do Decreto federal nº 1/91:
“Art. 14. Para efeito do disposto no artigo anterior, considera-se:
(…)
III – processo de beneficiamento, aquele realizado por fragmentação, pulverização, classificação, concentração, separação magnética, flotação, homogeneização, aglomeração ou aglutinação, briquetagem, nodulação, sinterização, pelotização, ativação, coqueificação, calcinação, desaguamento, inclusive secagem, desidratação, filtragem, levigação, bem como qualquer outro processo de beneficiamento, ainda que exija adição ou retirada de outras substâncias, desde que não resulte na descaracterização mineralógica das substâncias minerais processadas ou que não implique a sua inclusão no campo de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).”
 

Autores

  • Brave

    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!