Segurança jurídica

Há um impasse constitucional no ISS sobre o leasing

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10 de novembro de 2013, 5h58

Está na obra de Hans Kelsen (Praga, 11/10/1881; Berkeley, 19/04/1973), jusfilósofo dos mais importantes e influentes do século XX, a tese segundo a qual todo tribunal constitucional tão-somente pode atuar como legislador negativo, já que, pelo princípio da separação dos poderes, não é casa legislativa, ou seja, que não tem a faculdade de criar leis nem de emendá-las. Todavia, por outro lado, se entender que alguma das normas promulgadas pelos legisladores naturais vulnera algum dispositivo da constituição que lhe cabe zelar, defende o renomado autor da Teoria Pura do Direito que o mesmo princípio republicano o autoriza a retirá-la do ordenamento jurídico, revogando-a total ou parcialmente.

No Brasil, o Estatuto Magno que passou a viger em 1988, em termos de direito tributário, dividiu a prerrogativa de legislar negativamente entre os dois sodalícios de Brasília: o Superior Tribunal de Justiça, em termos, para a legislação federal e o Supremo Tribunal Federal, de forma plena, para a legislação constitucional. Isto implica dizer que, em caso de violação de regra existente no Texto Maior por parte do STJ, o supino guardião do sistema posto poderá/deverá intervir para resguardar a segurança jurídica da nação, a qual, apesar de ser regra não escrita, inquestionavelmente é o maior suporte de vigência e eficácia do Estado Democrático de Direito.

Neste preciso momento, vivemos uma dessas especialíssimas circunstâncias em que o denominado Pretório Excelso está sendo provocado a se manifestar, em sede de recursos extraordinários com timbre de repercussão geral, ultimamente interpostos aos magotes pelos representantes dos entes municipais prejudicados, para que convalide ou não uma inquietante questão de direito tributário que foi julgada, em novembro de 2012, sob a qualidade de recurso repetitivo representativo de controvérsia, porém ainda sem trânsito em julgado (REsp 1.060.120/SC), portanto provisória, mas que surpreendentemente passou a ser utilizada de forma apressada e injusta como referência para detonar as valiosas execuções fiscais dos municípios promovidas contra as instituições financeiras que não recolheram o ISS gerado pelas operações de leasing — ao escopo de jurisprudência defensiva e com a visível pretensão de cumprimento das metas de produtividade pretendidas pelo CNJ, por repartições inferiores do Judiciário —, a respeito do local da operação para fins de incidência do imposto sobre serviços.

Pois essa respeitável deliberação do STJ, inserida no recurso especial mencionado e que está a provocar desastrosa e cruel repercussão nas finanças municipais, alterou positivamente o artigo 4° da Lei Complementar 116/2003, que originalmente dizia:

Art. 4º Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas

Para esta outra (os acréscimos destacados não existiam no dispositivo original):

Art. 4º Nas operações de arrendamento mercantil, considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, ou seja, com poderes decisórios suficientes à concessão e aprovação do financiamento, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.

Com tal inconstitucional enxerto no dispositivo da Lei Complementar do ISS, um ano atrás, os eméritos julgadores conseguiram deslocar o recolhimento do tributo dos locais onde efetivamente acontecem os negócios de arrendamento mercantil para os paraísos fiscais, onde as alíquotas são ínfimas (0,2% contra 5%), destruindo a jurisprudência vintenária do mesmo Superior Tribunal que até então dizia o contrário.

Sucede, no entanto, que o artigo 3º da LC 116/2003, também redigido pelos legisladores naturais (deputados e senadores), afirma de modo expresso que todo serviço considera-se prestado e o ISS devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, no local do domicílio do prestador, "exceto" nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local do estabelecimento do tomador (que é a previsão do inciso I).

Ora, não precisa ser exegeta ou hermeneuta para enxergar que tomador do serviço na operação de leasing é o arrendatário e não a arrendadora mercantil. Sendo assim, segundo a regra inserida no mencionado dispositivo, deve o imposto sobre serviços ser recolhido ao município em cujo território foi o mesmo prestado, qual seja, naquele em que materialmente se localizou o estabelecimento do tomador, pois raciocínio em favor do estabelecimento do prestador desprestigia a lógica e o bom-senso.

Resplandece inequívoco, por conseguinte, que, ao decidirem, provisoriamente (graças a Deus!), a relevantíssima questão jurídica que interessa aos 5.570 municípios brasileiros, os integrantes da 1ª Turma da Alta Corte que interpreta a legislação infraconstitucional desbordaram dos trilhos da competência que lhe destinaram os construtores do sistema constitucional inaugurado há 25 anos e agiram como também integrantes do Congresso Nacional, legislando em molde positivo para acrescentar texto teratológico na norma original. Em outras palavras: não interpretaram a lei, simplesmente a emendaram. E emendaram mal, porquanto violaram de modo frontal e inequívoco os dois artigos da LC 116/2003.

Diante dessa interessante situação presente que afeta a todas as municipalidades cada vez mais carentes de recursos, os especialistas na matéria tributária e os infelizes prefeitos dos milhares de municípios que não abrigam as sedes virtuais dos grandes conglomerados financeiros (paraísos fiscais) acompanham com inusitado interesse o desfecho que terá no Supremo Tribunal Federal — se lá conseguir chegar, vencendo o lobby da vigilante plutocracia — esse tormentoso impasse constitucional que envolve a segurança jurídica do sistema.

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