Segunda Leitura

As bibliotecas jurídicas na visão dos livros

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

31 de março de 2013, 8h00

Spacca
Livros são coisas e não pessoas. Mas, à moda de Monteiro Lobato, que no Sítio do Picapau Amarelo deu vida e fala a uma espiga de milho, uma boneca e vários animais, façamos o mesmo com livros. Em uma viagem onírica, imaginemos que eles pensassem e nos dessem sua particular visão sobre as bibliotecas jurídicas. Neste caso, escolhido o bom acervo de um velho advogado. Guardado em uma casa antiga, volumes separados cuidadosamente por matéria, mais de 3 mil livros ocupando três quartos e avançando pelo corredor em direção à sala de visitas.

O diálogo começou com uma observação do clássico A Lógica das Provas, de Malatesta, por todos respeitado, pois era italiano e escrito em 1911, comprado pelo advogado quando ainda era estudante de Direito. Assim falou: “Meus amigos, estou preocupado, nosso dono completará 86 anos de idade e se ele morrer não sei o que será de nós". Na prateleira de cima, um exemplar do Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, de Espínola Filho, 1941, complementou: “Ele tem dois filhos, uma médica e um técnico de natação, isto me preocupa.” 

Da área do Direito Privado levantou-se uma voz rouca, típica dos que estão na terceira idade. Era o volume 2 do Curso de Direito Civil, de Washington de Barros Monteiro, 23ª edição, 1984: “Ouvi dizer que as bibliotecas das universidades não aceitam mais doações de livros jurídicos, porque não possuem espaço para colocá-los. Será verdade?”. Ao lado, o volume 1 das Instituições de Caio Mário da Silva Pereira, 6ª edição, 1982,  tentou ser otimista: “Lá em Minas Gerais há muitas faculdades de Direito precisando de livros, quem sabe vamos para uma cidade histórica.”

Neste instante, do quarto ao lado veio uma voz que transmitia uma serena nostalgia. Era um antigo exemplar das Lições Preliminares de Direito, de Miguel Reale, que observou: “Vocês lembram dos sábados de manhã, quando advogados, promotores, juízes, reuniam-se nas livrarias jurídicas  próximas dos tribunais para conversar e discutir as novidades, sempre comprando um livro e pagando em prestações?”. Parou por alguns segundos, parecendo tomado por certa emoção, e complementou: “Aquele quadro, natureza morta,  da sala de jantar,  foi dado pelo livreiro ao nosso dono quando ele se formou”.

Nisto, um exemplar cuja capa demonstrava ter sido muito usado, Hermenêutica e Aplicação do Direito, de Carlos Maximiliano, ponderou: “Calma meus amigos, é preciso interpretarmos este momento histórico, talvez seja uma fase apenas e logo passe”. Menos otimista, da mesa do escritório veio a voz da obra Do Usucapião, de Pedro Nunes, 1964, que disse: “Vejam que barbaridade, eu ensinei gerações a estudar usucapião e agora, face à mudança da legislação, colocaram-me para segurar papel. E mudaram até o sexo do usucapião, agora tratado por a usucapião. É demais”. Da cozinha um CPC comentado, edição de 1999 disse: “Isso não é nada, colocaram-me na porta para evitar que bata.” O volume 4 do Direito Penal de Nelson Hungria, laconicamente arrematou: “Meu medo são as traças”.

Mas nem todos demonstravam o mesmo pessimismo. O volume 4 do Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda, obra com 61 volumes, falou: “Não é bem assim amigos, vejam que fui reeditado em 2012, sinal de que continuamos tendo valor”. Enciumados, mas sem coragem para peitar obra tão consagrada, dois livros que preferiram guardar o anonimato teceram críticas ao autor da frase, atribuindo-lhe alguns adjetivos impublicáveis.

Do alto do corredor que leva à sala de visitas, o Curso de Direito Penal, parte geral, de René Ariel Dotti, 2001, observou: “Temos que nos habituar às mudanças, o futuro mostra, inclusive, que os livros serão eletrônicos”.  A frase criou visível comoção. A obra de Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário perguntou: “O quê? Livro eletrônico? Acho que estou ficando surdo, preciso ir a um médico”.  O seu vizinho, Direito Administrativo Brasileiro, de Hely Lopes Meirelles, respondeu: “É isso mesmo. Parece-me um absurdo, como fica aquele prazer de folhear um bom livro?”.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo e uma obra que analisava o Código Penal Militar propôs união de forças para combater esse inimigo astucioso, que nem podia ser visto. Obras antigas, escritas em francês, atribuíram esta novidade ao diabo.  Depois de muitos debates prevaleceu a razão e um exemplar de Paulo Bonavides, Direito Constitucional, conseguiu convencer a maioria de que deveriam, pelo menos, ouvir um representante do tal livro eletrônico, em obediência ao devido processo legal. 

O ambiente serenou, mas fluidos de tristeza permaneceram no ar. Os livros mais sensíveis mal puderam esconder sua emoção. Um exemplar da Revista Forense, na sua feminilidade, extravasou, sem se envergonhar, seus sentimentos, soluçando copiosamente. Um volume novo da Revista dos Tribunais, mesmo tendo se adaptado aos novos tempos, passou o lenço para enxugar as lágrimas que corriam pelo lado direito da capa.  

Lá do alto de uma prateleira do terceiro quarto, um exemplar da obra de Eliasar Rosa, Os erros mais comuns nas petições, 1972, perguntou timidamente: “Por acaso alguém sabe se entre nós há um livro de auto-ajuda?”.

Em meio à generalizada exteriorização de conflituosos sentimentos, levantou-se uma voz procurando serenar os ânimos. Tinha a vantagem de estar na meia idade, naquela em que se compreendem os ímpetos da juventude, mas se valorizam os mais velhos. Era o livro de Wiliam Douglas, Como passar em provas e concursos. Em tom conciliador, falou: “Pessoal, estamos vivendo uma fase de mudanças no mundo e o Direito e seus livros não escapam disto. Não ficaremos só em livros eletrônicos, mas também em audio-livros  e outras novidades. Mas nenhum dos que aqui estão perderá seu valor. Terão seu lugar nas melhores bibliotecas, ainda que possa ser na forma digital. Tal qual os humanos, o corpo se desintegrará um dia, mas a alma continuará”. Nem todos compreenderam, mas todos gostaram.

Horas depois o velho advogado voltou a sua casa. Entrou lentamente, obrigado por aquelas pernas que não obedeciam mais suas ordens, passou pelo corredor, acariciou alguns livros e disse: “Meus companheiros de caminhada, como eu gostaria de levá-los comigo quando da partida. Mas fiquem tranquilos, vou deixá-los em local seguro para que sejam úteis a muitos estudiosos do Direito. Consegui com a prefeitura a criação de um centro cultural e vocês ficarão à disposição dos estudantes de Direito de toda a região”.  Dito isto, recolheu-se ao quarto para mais uma noite de sono. E a  paz voltou à biblioteca jurídica.

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