Prisões alternativas

Detenções privadas viram alternativa a presídios

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30 de março de 2013, 8h53

Divulgação/TJMG
Seds inaugura Apac - 28/03/2013 [Divulgação/TJMG]Uma cadeia em que os presos têm as chaves das próprias celas. A ideia, a princípio inusitada, existe no Brasil há quatro décadas. O modelo de Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) é uma possibilidade para a execução penal fora de presídios tradicionais. O maior benefício, segundo defensores da proposta, é recuperar os detentos com tratamento mais humano. Há no país quase 150 Apacs em 17 estados.

As associações são unidades externas aos presídios, onde os condenados podem estudar, desenvolver trabalhos e participar de grupos de apoio. Não há policiais ou agentes penitenciários e os locais são mantidos por organizações privadas sem fins lucrativos, geralmente com ajuda do estado e do Judiciário local. A chance de tortura ou maus tratos também diminui bastante. O modelo já é adotado nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, América Latina e na Europa Oriental.

No Brasil, a primeira Apac foi instalada em novembro de 1972, em São José dos Campos, no interior paulista. “Éramos um grupo de quinze pessoas. Foi um projeto ousado e bem sucedido, que sofreu muita desconfiança do Judiciário”, conta o advogado Mario Ottoboni, idealizador da proposta. Hoje, Minas Gerais é onde as Apacs têm mais força — estão presentes em 33 comarcas do estado. Elas são apoiadas pelo Programa Novos Rumos, do Tribunal de Justiça do estado em parceria com a Secretaria de Defesa Social. Integram a iniciativa movimentos religiosos, entidades de serviço social, prefeituras, faculdades e grupos voluntários.

“É importante o envolvimento da comunidade na implantação das Apacs. Exige um trabalho de convencimento e não de imposição”, afirma o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, coordenador executivo do programa. A cooperação da sociedade é prevista pelo 4º artigo da Lei de Execução Penal (7.210/1984). A baixa reincidência dos presos é apontada como vantagem do sistema. Segundo dados do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade, cerca de 70% dos ex-detentos de Minas cometem novos crimes enquanto que, para egressos das Apacs, o índice cai para 15%. 

Outro ponto positivo do modelo é a economia de verba pública. De acordo com o TJ-MG, o gasto para manter um detento dentro da Apac é até um terço menor que a despesa per capita nos presídios tradicionais. “O custo médio mensal é de R$ 2,5 mil por preso e, nas Apacs, é sempre inferior a R$ 1 mil”, calcula o juiz Luiz Carlos. As despesas do governo mineiro em 2012 foram de aproximadamente R$ 828 milhões com a custódia de presos comuns e de R$ 1,6 milhão com a humanização do sistema e implantação de Apacs.

Os trabalhos nas associações são regidos por 12 preceitos fundamentais, entre eles família; assistência jurídica e à saúde; contribuição voluntária; e participação da comunidade. O diretor executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (Fbac), Valdeci Ferreira, defende que os critérios sejam bem definidos para levar detentos com segurança às unidades, onde eles são chamados de recuperandos.

“O primeiro critério é limitar às pessoas com situação jurídica definida. Não deve haver presos provisórios nas Apacs”, diz. Também são levados em conta o tempo de reclusão do condenado, a manifestação escrita de interesse em ir para a Apac e se a família do preso mora na mesma comarca onde fica a unidade. Os recuperandos estão sujeitos às mesmas normas em relação ao abatimento de pena: é descontado um dia a cada 12 horas de estudo ou três dias de trabalho.

Modelo arriscado
O coordenador do Centro de Pesquisa em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas, Luiz Carlos Sapori, explica que a fórmula tem inspiração cristã, sobretudo católica. “Essa é uma grande virtude, mas também o maior problema das Apacs. Como o estado é laico, o modelo não pode ser universalizado”, avalia. A população carcerária em Minas é de aproximadamente 52 mil pessoas. Para ele, outros riscos são a baixa profissionalização das associações, formada principalmente por voluntários, e o critério de recrutamento de presos.

Segundo o promotor do Ministério Público de Minas André Luís Alves de Melo, o modelo é desconhecido dentro dos cursos de Direito. Ele ainda questiona os dados divulgados sobre menor reincidência entre egressos de Apacs. “É difícil o levantamento porque as comarcas não são integradas”, afirma. Das 296 comarcas do estado, as Apacs estão presentes em pouco mais de 10%. Há 12 anos, quando começou o Programa Novos Rumos, havia 100 presos nas associações. Hoje são quase 2,1 mil.

Para ele, o acompanhamento das Associações também é uma tarefa complicada. Com milhares de processos na mesa, os juízes de Execução Penal não teriam tempo para visitar cada unidade regularmente. “Critica-se a privatização do sistema prisional, mas o trabalho é transferido para organizações não governamentais”, argumenta.

Experiência de São Paulo
Com a segurança menos rígida, a facilidade de fuga ou envolvimento com organizações criminosas é maior. A primeira Apac brasileira, de São José dos Campos, foi alvo, em 1999, de investigação da Polícia, da Corregedoria de Justiça de São Paulo e do Ministério Público estadual, por suspeita de esquema de venda de vagas na unidade, como descreveram matérias da revista Istoé e do jornal Folha de S.Paulo à época. Passeios e uso de celulares, segundo as denúncias, também eram trocados por dinheiro. A presença de condenados que deveriam estar em regime fechado era outra situação irregular.

“Um juiz de Execução Penal realmente vendia vagas, mas não tínhamos nada a ver com o esquema. Ele foi afastado”, conta Mario Ottoboni. O Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo ordenou que a associação fechasse as portas no segundo semestre de 1999. Hoje na cidade funciona um dos 22 Centros de Ressocialização do estado de São Paulo. “Esses centros usam outro método. Aliás, a denominação é incorreta. Não dá para falar em ressocialização de quem não foi socializado”, critica Ottoboni. Agora, a unidade de São José dos Campos é voltada ao público feminino.

Nos anos seguintes, a relação entre ONGs e o governo do estado de São Paulo foi alvo de investigações do Tribunal de Contas do Estado e da Justiça. Em 2006, um relatório elaborado pela Secretaria de Administração Penitenciária apontou irregularidades na atuação de dez ONGs conveniadas com o próprio órgão. Uma delas, a Associação de Proteção e Assistência Carcerária – Sumaré, foi absolvida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo das acusações de corrupção feitas pelo Ministério Público em outubro de 2012.

De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Administração Penitenciária do estado, atualmente três Centros de Ressocialização são mantidos em parceria com associações sem fins lucrativos: Birigui, Araçatuba e Ourinhos. As demais unidades são administradas diretamente pelo órgão. Nos centros, os detentos têm direito a cursos profissionalizantes, alfabetização e atividades culturais como aulas de dança e de teatro.

Múltiplas iniciativas
Prisões no Brasil e em outros países têm incorporado a justiça recuperativa de várias maneiras, como o diálogo entre criminosos e vítimas, a mediação para reduzir conflitos dentro das cadeias e a preparação dos detentos para regressar à comunidade. Para o diretor executivo do Centro pela Justiça e Reconciliação da Prison Fellowship International (PFI), Dan Van Ness, a experiência das Apacs brasileiras é uma das mais eficazes e ambiciosas que existe. “Sempre recomendamos a grupos de governo que queiram usar o método para visitar a Apac de Itaúna, em Minas Gerais”, conta. A PFI é uma organização não governamental que atua como consultora das Nações Unidas em assuntos penitenciários.

A Apac de Itaúna, na região central de Minas, já foi objeto de vários estudos e é a principal referência do país. A unidade recebe presos do regime fechado, semiaberto e aberto. Além dos presos serem responsáveis pela cozinha, limpeza e manutenção da casa, são desenvolvidas atividades laboterápicas: desde oficinas de trabalho manuais, como pinturas, costura e confecção de velas decorativas, até profissionalização dos recuperandos. Em eventos especiais, os detentos são presenteados com apresentação musicais. Também funciona na cidade uma Apac feminina.

Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Maranhão e Pará são outros estados em que o modelo está mais consolidado. Geralmente baseados na experiência de Minas, representantes do poder público de várias regiões têm se interessado pelo sistema. “Nossa expectativa é que até o fim do ano esteja funcionando uma Apac piloto na região metropolitana de Porto Alegre”, prevê o procurador de Fundações do Ministério Público do Rio Grande do Sul Antônio Carlos de Avelar Bastos. Além do MP gaúcho, órgãos do Executivo, do Judiciário e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa participam da discussão da proposta no estado.

“Em dez anos, queremos Apacs em todos os estados brasileiros”, afirma Valdeci Ferreira, diretor executuvo da Fbac. A expansão, para ele, é boa para discutir e aprimorar o método. De acordo com o Centro Internacional de Estudos Prisionais, ligado à Universidade de Essex, na Inglaterra, o Brasil é o quarto lugar em números absolutos de pessoas na cadeia — atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia.

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