Prerrogativas de função

Advocacia de Estado é exclusiva dos advogados públicos

Autor

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

26 de março de 2013, 13h47

O Título IV da Constituição regulamentou e disciplinou a organização dos poderes entre o Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário e Funções Essenciais à Justiça. Entre as Funções Essenciais à Justiça, a Carta Magna não fez qualquer menção à prevalência de uma instituição ou órgão, colocando no mesmo patamar o Ministério Público, a advocacia pública, a Defensoria Pública e a advocacia stricto senso, cabendo a todos esses órgãos/instituições exercerem a preservação da “Justiça” entre seus deveres mediatos. Essa sistematização foi observada para atender os preceitos modernos do Estado Democrático de Direito.

Montesquieu, ao descrever sua teoria sobre a tripartição dos poderes, já alertava sobre a possibilidade de, em determinada época, haver prevalência de um poder em relação aos demais. Os freios e contrapesos seriam a forma de manter a harmonia. Ocorre que sua teoria teve como parâmetro o absolutismo europeu, sendo necessário adaptá-la ao surgimento do Estado Democrático de Direito. Assim, o poder constituinte originário, atento às lições de Montesquieu, positivou, no artigo 2º da Constituição Federal de 1988, entre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a separação entre os poderes, que é cláusula pétrea, ante o que preceitua o artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, da CF de 88.

Entretanto, o constituinte não estava satisfeito apenas com essa garantia e, necessitando dar maior efetividade a esse equilíbrio, incluiu na organização dos poderes um novo capítulo, Das Funções Essenciais à Justiça. Nesse novo capítulo, o constituinte incluiu órgãos e instituições que possuem atribuições de defender a sociedade, o Estado, os hipossuficientes e o cidadão, dentro de um mesmo patamar hierárquico, exigindo um entrelaçamento dessas funções.

Logo, no cenário político nacional após a Constituição de 1988, o equilíbrio e a harmonia entre os poderes, dentro de uma perspectiva do Estado Democrático de Direito, serão concretizados, em parte, por meio das Funções Essenciais à Justiça.

Ressalta-se, nesse pormenor, que o papel incumbido à Advocacia Pública não está atrelado ao capítulo referente ao Poder Executivo, tendo em vista que a intenção do constituinte ao incluir a Advocacia Pública entre as Funções Essenciais à Justiça foi criar um órgão técnico capaz de prestar auxílio ao governante e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses sociais.

Nas palavras de Cláudio Grande Júnior[1], a Advocacia Pública deve ser assim entendida: “Advocacia pública é o conjunto de funções permanentes, constitucionalmente essenciais à Justiça e ao Estado Democrático de Direito, atinentes à representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público e judicial dos órgãos, conselhos e fundos administrativos excepcionalmente dotados de personalidade judiciária, bem como à prestação de consultoria, assessoramento e controle jurídico interno a todos as desconcentrações e descentralizações, verificáveis nos diferentes Poderes que juntos constituem a entidade federada”.

O constituinte promoveu, assim, a concentração da atividade contenciosa e de consultoria da administração pública em uma única instituição. No âmbito da União, esse papel é exercido pela Advocacia-Geral da União, e nos estados e municípios[2], por suas respectivas procuradorias, privilegiando uma racionalidade administrativa no exercício de tão relevantes funções. Assim, atribui-se à Advocacia Pública o mister de representar judicial e extrajudicialmente os entes federados e prestar assessoria e consultoria jurídica ao Poder Executivo.

Representar judicial e extrajudicialmente importa exercer a função de representação do ente nas instâncias administrativas e judiciais. Importa, ainda, fazer a defesa judicial dos três poderes, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, bem como os tribunais de contas, Ministério Público e os demais órgãos que componham o ente.

Prestar assessoria e consultoria ao Poder Executivo é exercer a missão de formatação jurídico-constitucional das políticas públicas desenvolvidas pelo citado poder constitucional, com vistas a assegurar e atender os direitos e garantias fundamentais constitucionais dos cidadãos. Mais concretamente, consiste na orientação jurídica a todas as autoridades administrativas responsáveis pela prática de atos administrativos, pela contratação, pela elaboração de atos normativos, em suma, autoridades incumbidas da materialização de políticas públicas.

Do texto constitucional exsurgem o destacado papel e a relevância das funções de representação judicial e extrajudicial e de assessoramento e consultoria, sobretudo em relação à análise prévia da conformidade dos atos administrativos com os interesses públicos insculpidos na Constituição Federal e nas leis.

Não é outro o motivo pelo qual o desempenho dessas atividades traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos membros da advocacia pública: o exame de legalidade no âmbito da administração pública deve ser resguardado da simples vontade do administrador e se vincular efetivamente a lei. As manifestações dos procuradores junto ao Judiciário são a verdadeira “voz do Estado”, uma vez que estão encarregados de atuar em nome dele.

Nesse pormenor, vale destacar excerto do artigo de Mário Bernardo Sesta[3]: “Mas a característica especial da Advocacia do Estado sobressai, evidentemente, no que diz respeito ao Patrocínio Judicial do interesse Público porque nessa atividade, os agentes dela encarregados atuam em nome do Estado. É secundário o fato de que o administrador manifesta sua preferência por determinada argumentação ou determinada postura em juízo; é irrelevante tal manifestação porque essa argumentação só chega em juízo através do Advogado do Estado e se ele a perfilhar. Em outras palavras: chega porque ele a perfilhou. O Advogado do Estado, no exercício de sua função básica, não fala ao administrador para assessorá-lo: fala pelo Estado no processo em que este for parte, vinculando-o”.

O Advogado Público exerce uma função de controle de legalidade da administração pública, na medida em que defende o interesse público (do Estado), e não o interesse do governo. Essa função de controle, como dito, é incompatível com formas de investidura marcadas pela precariedade, tais como o comissionamento, a contratação e qualquer outra modalidade de admissão de advogados que os submeta à vontade de quem os tenha contratado ou nomeado.

É de precisão capilar a lição do professor Marcos Juruena[4] acerca da matéria: Em síntese, a ninguém – salvo a governos totalitários e/ou corruptos – pode interessar uma Advocacia Pública enfraquecida ou esvaziada.

A democracia e o Estado de Direito só se fortalecem se houver sólidas e não fragmentadas instituições voltadas para o controle da legalidade, o que exige a garantia constitucional de um corpo permanente, profissionalizado, bem preparado, protegido e remunerado, sem riscos de interferências políticas indevidas no exercício de funções técnicas e despolitizadas.

Para tanto, a reforma do Judiciário deve considerar a autonomia da Advocacia-Geral da União e das procuradorias dos estados, o provimento dos cargos de sua estrutura por profissionais cujo mérito seja atestado em concurso público e sua chefia seja exercida por integrantes da carreira, dotados de mandato fixo e escolhidos por meio de lista tríplice (dando-se o mesmo tratamento já previsto no artigo 129, parágrafo 1º a 4º).

Dessa forma, não se pode olvidar a importância das atribuições conferidas pelo constituinte à Advocacia Pública. A atividade de análise de legalidade dos atos da administração, sobretudo no tocante ao assessoramento e consultoria jurídica prestados às autoridades administrativas, devem ser exercidas por servidores efetivos, isto é, advogados públicos efetivos, não só em virtude da capacidade técnica atestada por meio de concurso público, como também em razão da garantia à administração oferecida pela não precariedade de investidura desses profissionais.

A estabilidade no cargo dos advogados públicos efetivos contribuiu também sobremaneira para que a análise de legalidade dos atos da administração seja feita com isenção e independência funcional[5]. Não parece que o exercício por servidores demissíveis ad nutum se coadune com o desenho institucional erigido pelo constituinte, nem que o exercício da função por advogados terceirizados ou sem vínculo possa ser compatibilizado com o status e a dignidade de Função Essencial à Justiça.

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, já rechaçou vários tipos de manobras utilizadas pela administração para ocupar cargos típicos de advocacia pública com cidadãos alheios à carreira efetiva. Nesse sentido, são sábias as advertências do eminente ministro Celso de Mello quando alerta que “os procuradores do Estado são, na realidade, os Advogados do Estado. Essa expressiva condição funcional decorre de um título jurídico fundado na própria Constituição Federal” (Voto na ADI 881)

Sobejamente evidenciado, portanto, que o exercício das funções típicas da Advocacia Pública por elementos alienígenas aos seus quadros efetivos corrompe o modelo institucional de representação judicial e extrajudicial e de assessoramento e consultoria jurídica desenhado pelo constituinte originário, constante dispõe os artigos 131 e 132 da Constituição Federal.

Por todo o exposto, e dadas as tentativas, ainda hoje, de subjugar o texto constitucional, entre elas o Projeto de Lei 205/12, em trâmite na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, o qual altera a Lei Orgânica da AGU, há uma proposta de súmula vinculante (PSV 18) no STF que trata da matéria.

Vale também destacar que a Súmula 1 da Comissão Nacional da Advocacia Pública da OAB Federal positivou a exclusividade das funções. Diz a súmula: “O exercício das funções da Advocacia Pública, na União, nos Estados, nos Municípios e no Distrito Federal, constitui atividade exclusiva dos advogados públicos efetivos a teor dos artigos 131 e 132 da Constituição Federal de 1988”.

Em face de todas essas premissas, e das garantias consagradas no artigo 131 e 132 da Constituição Federal de 88, precipuamente o ingresso nos quadros da advocacia pública por meio de concurso público, verifica-se que a atividade exercida pela advocacia pública é tipicamente estatal, devendo, portanto, suas atividades estarem restritas aos integrantes das carreiras, restando vedada a contratação ou o exercício dessas atividades por pessoas externas a seus quadros.


[1] GRANDE JÚNIOR. Cláudio. A Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito. Direito e Justiça. ParanáOnline. Disponível em:

[2] Alguns municípios, em virtude da pequena capacidade financeira, não instituíram órgãos oficiais de representação e defesa judicial.

[3] SESTA, Mário Bernardo, Advocacia de Estado: Posição Institucional, Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal jan/mar 1993, p. 197.

[4] SOUTO, Marcos Juruena Villela. O papel da advocacia pública no controle da legalidade da Administração. Disponível em:

[5] Referência ao Ministro Neri da Silveira, voto na ADI 881, confira o seguinte trecho: “O grande objetivo foi o exame da legalidade dos atos do Governo, da Administração Estadual, a ser feito por um órgão cujos ocupantes, concursados, detenham as garantias funcionais. Isso conduz à independência funcional, para o bom controle da legalidade interna, da orientação da Administração quanto a seus atos, em ordem a que esses não se pratiquem tão-só de acordo com a vontade do administrador, mas também conforme a lei”.

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