Embargos Culturais

Tradição e ideal de Esparta são criações de nossa cultura

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

24 de março de 2013, 8h01

Espécie de obra aberta, a tradição espartana (que remonta a Plutarco) pode ser usada para todos os propósitos. Exemplifico. Nos anos 1970, no Brasil, Chico Buarque de Holanda compôs e gravou “Mulheres de Atenas”, com propósitos  oposicionistas[1]. Referia-se a mulheres espartanas, esposas de militares, valendo-se de Atenas apenas por uma questão de rima. A oposição brasileira de então utilizou-se, algumas vezes, de termos da cultura grega. A origem do AI-5 vincula-se a discurso feito no Congresso pelo então deputado do MDB, Márcio Moreira Alves. Lembrando-se da peça “A Revolta das Mulheres”, de Aristófanes, Moreira Alves incitava as mulheres de militares a não se aproximarem de seus maridos. Como o governo não conseguia licença do Congresso para processar Moreira Alves, o Congresso foi fechado e editou-se o AI-5[2]. O governo militar pregava obediência, patriotismo e valores afins, de cunho de algum modo espartano.Elizabeth Rawson, historiadora inglesa, que morreu na China em 1988, onde lecionava latim, grego e história antiga, publicou vasto estudo sobre a tradição espartana no pensamento europeu[3]. Segundo esta estudiosa, a tradição judaica admira Esparta[4], como de resto a historiografia israelita respeitava o helenismo[5]. Ainda segundo ela, os romanos admiravam os espartanos, que assimilavam aos sabinos[6]. Admiração que chegara ao cume no início do Império Romano, de forma ambígua e contraditória:

“Sob o império tornou-se difícil a suposição de que Roma era uma Esparta melhorada, embora devesse ser dito, especialmente num sentido moral, que os Espartanos aproximavam-se da gravitas dos primeiros romanos.” [7]

Na Renascença a admiração por Esparta voltara a crescer, e mais uma vez a leitura de Plutarco tinha alguma responsabilidade:

“É óbvio que a Renascença estava destinada a admirar Esparta. (…) Essa admiração fora alimentada principalmente em Plutarco. As ‘Vidas’ foram traduzidas (…)” [8]

Esparta fora também admirada por Maquiavel[9] que aprovava totalmente seu modelo,[10] prescrevendo-o para as repúblicas italianas:

“Feliz é a república à qual o destino outorga um legislador prudente, cujas leis se combinam de modo a assegurar a tranqüilidade de todos, sem que seja necessário reformá-las. É o que se viu em Esparta, onde as leis foram respeitadas durante oito séculos, sem alteração e sem desordens perigosas.” [11]

O ideal espartano contaminara também Lutero e Calvino[12]. A trajetória de Lutero, sua obstinação, seu apelo pelo respeito à autoridade, têm um fundo espartano[13]. O calvinismo, como força cultural, propagado na Suíça, na França, nos Países Baixos, na Alemanha, na Hungria, na Inglaterra, na Escócia, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e na África do Sul[14] promove comportamento radical e espartano, que já fora noticiado por Max Weber[15]. Plutarco é a referência, dada sua imputação, a Licurgo, da fabulização de Platão:

“(…) Plutarco explicitamente elogiara Licurgo por obter, através de sua legislação, o que Platão e outros filósofos apenas sonhavam.” [16]

Jean Bodin também admirava a Esparta de Plutarco, através de Licurgo:

“A Esparta de Licurgo, lembramos, fora para Bodin uma democracia; de fato esses estados que igualam deuses assim como honras e direitos são para ele [Bodin] as verdadeiras democracias.” [17]

Milton, autor inglês (Paraíso Perdido) também considerava Esparta uma cidade-estado admirável[18]. Rousseau fora ainda mais enfático e é de Elizabeth Rawson a seguinte passagem:

“Poucas dúvidas há de que alguma laconiomania real existente no fim do século XVIII devia muito de sua força a Rousseau. O que ele sentia por Esparta era mais do que mera admiração; era uma profunda relação emocional.” [19]

É a mesma autora quem vincula a admiração rousseauniana por Esparta às leituras que o autor do “Contrato Social” fizera de Plutarco:

“As ‘Confissões’ sugerem que foram primariamente os heróis atenienses e romanos de Plutarco que encheram a imaginação da infância de Rousseau.” [20]

Em seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes”, Rousseau declara sua admiração por Esparta, sentimento que recebera de Plutarco:

“Esquecer-me-ia de que foi no próprio seio da Grécia que se viu surgir essa cidade tão célebre pela sua feliz ignorância quanto pela sabedoria das leis, essa república antes de quase-deuses do que de homens, tanto suas virtudes pareciam superiores à humanidade. Oh! Esparta, eterno opróbrio de uma doutrina vã!” [21]

Com Maquiavel a admiração para com Esparta vive dimensão superlativa. Embora hoje se opere revisão na ideia despótica no pensador florentino[22], persiste, ainda, lugar comum que acena para posturas políticas autoritárias, ensejadoras da criação do adjetivo “maquiavélico”. E Maquiavel, como os humanistas italianos em geral[23], nutrira-se da tradição insuflada por Plutarco. Lê-se em Maquiavel:

“Entre os legisladores que elaboraram constituições semelhantes, o mais digno de encômios é Licurgo. Nas leis que deu à Esparta, soube de tal modo contrabalançar o poder do rei, da aristocracia e do povo que o Estado se manteve em paz durante mais de oitocentos anos, por sua grande glória.” [24]

A admiração por Esparta e por Licurgo é evidente em Maquiavel:

“Esparta, como já disse, governada por um rei e Senado pouco numeroso, subsistiu também durante vários séculos. Sua pequena população, a sua recusa de receber estrangeiros, a submissão às leis de Licurgo, tudo isto havia afastado as desordens, e permitido por muito tempo uma existência unida. Com suas instituições, Licurgo tinha estabelecido em Esparta mais igualdade de substância do que de grau, havia ali uma pobreza generalizada e igualitária. Quanto ao povo, este não era ambicioso, porque as honrarias do Estado beneficiavam poucos cidadãos e a conduta destes não era de molde a despertar a inveja dos populares.” [25]

E continua o florentino, ovacionando as instituições de Licurgo:

“A seus reis Esparta devia esta vantagem. Do trono, no meio da nobreza, só tinham um meio para conservar toda força da sua dignidade: defender o povo de qualquer insulto. Por isto o povo não temia nem almejava o poder — pelo que desapareciam os germes do tumulto, e todos os pretextos de discórdia entre ele e a nobreza; puderam assim viver por muito tempo na união mais perfeita. Esta concórdia teve duas causas principais: a reduzida população de Esparta, que tornava possível o governo por poucos magistrados; e a rejeição dos estrangeiros, o que afastava do povo toda causa de corrupção, e impedia a população de aumentar além do limite imposto pelos governantes.” [26]

Esparta e Veneza eram os modelos prediletos de Maquiavel, assim:

“Acredito que, para estabelecer uma república cuja existência se possa prolongar por muito tempo, o melhor seria organizá-la como Esparta ou Veneza, num local protegido, tornando-a forte o bastante para que ninguém pensasse poder vencê-la.” [27]

O historiador A.H.M. Jones descreveu a disciplina espartana com base em Xenofonte e Plutarco, aceitando que a mesma era atribuída a Licurgo:

“A famosa disciplina dos espartanos fora atribuída a Licurgo. Indubitavelmente é muito antiga e tem pontos de contato e analogias com costumes de muitas tribos primitivas. A disciplina é descrita por Xenofonte e Plutarco.” [28]

W.G. Forrest, historiador inglês, pensou do mesmo modo, ainda que um pouco mais eufórico:

“A Esparta clássica era renomada pela habilidade e coragem de seu exército e pela estabilidade e excelência de sua Constituição. Ambos, pensava-se, devia-se ao gênio de um homem, Licurgo, que, na aurora da história, criara todas as instituições que fizeram Esparta e espartanos o que foram.” [29] 

Essa mesma visão é compartilhada por Eugène Cavaignac que reconheceu a fixação com Esparta da época clássica[30]. Oliver Taplin, entusiasta da cultura grega, acentuou diferença de perenidade entre Atenas e Esparta. De fato, persistem muitos monumentos que comprovam que a Atenas imaginária de fato existiu. Mas em Esparta não há o que se ver hoje. Justifica-se, assim, a perspectiva de Cavaignac, que procura em vão uma Esparta pretérita. Simplesmente, não há o que se ver na Esparta moderna:

“Os grandes monumentos de Atenas estão reunidos à volta da majestosa Acrópole: o local da antiga Esparta, que de facto consistia num grupo de povoações sem uma muralha defensiva, é agora um grupo de outeiros coberto por oliveiras, rodeado pelo fértil vale do rio Eurotas.” [31] 

Pensa-se num modelo espartano, numa miragem, que radica na obra de Plutarco. É o mesmo Oliver Taplin quem confirma:

“Por muito repulsivo que isso possa parecer, foi construído ao longo dos séculos um mito de Esparta enquanto modelo de uma sociedade estável e patriótica — a “miragem espartana”, como é por vezes conhecido. A admiração de Platão foi significativa, mas a idealização mais importante pertenceu ao biógrafo Plutarco (cerca de 100 d.C.) especialmente em Vida de Licurgo Plutarco foi levado muito a sério durante o Renascimento e da obra anterior há uma excelente tradução quinhentista para o francês de Amyot. No século XIX, Mary Garth (…) escreveu um pequeno livro para seus rapazes, chamado História dos Grandes Homens extraída de Plutarco. É assim que muitas das cidades dos Estados Unidos se chamam Esparta; e esta é a razão por que em 1834, logo após a independência da Grécia, uma nova Sparti foi projectada junto do antigo local.” [32] 

O elogio de Esparta é recorrente. Monteiro Lobato, em livro para crianças, faz Dona Benta dizer:

“[Esparta] era uma cidade da Grécia, de costumes bastante especiais. Escutem. Novecentos anos antes de Cristo, por lá apareceu um homem de nome Licurgo, que sonhou fazer de Esparta a mais poderosa do mundo. Para isso saiu a viajar, correndo os países que pôde para ver as causas da força de uns e da fraqueza dos outros. Viu que os povos que só davam importância aos prazeres da vida eram fracos, ao passo que os que punham o trabalho acima de tudo e cumpriam seus deveres, fossem agradáveis ou não, eram fortes. Voltando a Esparta, começou Licurgo a organizar a vida dos espartanos conforme as lições que aprendeu. Fez um código de leis severíssimas, que pregava o espartaninho ao nascer e ia até o fim da vida, a governá-lo com toda a dureza. ‘É de cedo que se torce o pepino’, devia ser a divisa desse código. Se os recém nascidos eram fracos, ou possuíam qualquer defeito físico, a lei mandava abandoná-los numa montanha, para que morressem. Licurgo não queria que houvesse um só aleijado de nascença em Esparta.” [33]

A concepção da grandeza espartana pode ser mais uma invenção de nossa cultura, mais um mito que nos remete a uma leitura imaginária de nós mesmos. Pode ser mais um exemplo de que a fabulização do passado seja um antídoto e um reforço para as nossas frustrações e lutas presentes.


[1]  Para se averiguar o papel de Chico Buarque como cantor e compositor de protesto, consulte-se Nélson Motta, Noites Tropicais, pág. 184 e ss. Para se verificar a presença de músicas oposicionistas ao regime de 64, consulte-se Caetano Veloso, Verdade Tropical, pág. 413 e s.
[2]  Exaustivo estudo de ambiente político que ensejou o AI-5 é feito por Ronaldo Costa, em tese de doutorado na Sorbonne, publicada no Brasil com o título História Indiscreta da Ditadura e da Abertura, pág. 94 e ss.
[3]  Elizabeth Rawson, The Spartan Tradition in European Thought.
[4]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 95.
[5]  Flávio Josefo, História dos Hebreus, pág. 251.
[6]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 99.
[7]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 107. Tradução livre do autor. Under the empire it became hard to suppose that Rome was exactly like Sparta only better, though it might still be said of the past, especially in a moral sense: the Spartans came closer than other to the ‘gravitas’ of early Romans.
[8]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 130. Tradução livre do autor. It is obvious that the Renaissance was fated to admire Sparta. (…) this admiration was nourished above all on Plutarch. The Lives were translated (…).
[9]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 142.
[10]  Oliver Taplin, op. cit., pág. 212.
[11]  Machiavel, Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, pág. 23.
[12]  Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 158.
[13]  A trajetória de Lutero pode ser conferida na obra do Pastor Vicente Themudo Lessa, Lutero.
[14] Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, W. Stanford Reid.
[15] Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
[16] Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 170. Tradução livre do autor. (…) Plutarch had explicitly praised Lycurgus for achieving, through his legislation, what Plato and the other philosophers had only dreamt of.
[17] Elizabeth Rawson, op. cit.,  pág. 176. Tradução livre do autor. Lycurgan Sparta, as we remember, was for Bodin a democracy; indeed these states that equalize goods as well as honours and rights are for him the only real democracies.
[18] Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 190.
[19] Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 231. Tradução livre do autor.  There can be little doubt that any real laconomania existing in the later eighteenth century owed much of its strengh to Rousseau. What he felt for Sparta was more than mere admiration; it was a deep emotional attachment.
[20] Elizabeth Rawson, op. cit., pág. 231. Tradução livre do autor. The confessions suggest that it was primarily the Roman and Athenian heroes of Plutarch who filled Rousseau’s boyhood imagination. Confira-se também Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, vol. 1, pág. 11
[21] Jean-Jacques Rousseau, Discurso Sobre as Ciências e as Artes, in Os Pensadores, pág. 339.
[22] Consulte-se Newton Bignotto que em Maquiavel Republicano estudou a dimensão da liberdade na obra do diplomata florentino.
[23] Eugênio Garin, L’umanesimo Italiano.
[24] Maquiavel, Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, pág. 26.
[25] Maquiavel, op. cit., pág. 38.
[26] Maquiavel, op. cit., pág. 38.
[27] Maquiavel, op. cit., pág. 39.
[28]  A.H.M. Jones, Sparta, pág. 34. Tradução livre do autor. The famous discipline of the Spartans was attributed to Lycurgus. It is undoubtedly very ancient fundamentally and has close analogies with the customs of many primitive warrior tribes throughout the world. The discipline is described by Xenophon and Plutarch.
[29]  W.G.Forrest, A History of Sparta, pág. 40. Tradução livre do autor. Classical Sparta was renowned for the skill and courage of her army and for the stability and excellence of her constitution. Both, it was thought, she owed to the genius of one man, Lykourgos, who, far back in her history, had created all those institutions which made Sparta and the Spartans what they were.
[30]  Eugène Cavaignac, Sparte, pág. 8. Tradução livre do autor. Lousque j´ai en le plaisir de visiter Sparte, j´avoue que c´est surtout pour y chercher les Spartiates de l´epoque classique.
[31]  Oliver Taplin, Fogo Grego, pág. 208.
[32] Oliver Taplin, op. cit., pág. 211.
[33] Monteiro Lobato, História do Mundo para as Crianças, pág. 51. 

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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