Diário de Classe

STF entre concretização da Constituição e juristocracia

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23 de março de 2013, 8h00

Spacca
Escrever é sempre arriscado. Não fosse por nada, ao menos pelo fato de que — no momento em que o texto se desprende da esfera privada e invade o espaço público — sempre existe a possibilidade do mal entendido, da incompreensão. Nesse aspecto, a hermenêutica mais contemporânea nos conforta: o autor não é proprietário do sentido do texto. O intérprete tem a sua autonomia e o resultado da interpretação é sempre derivado de uma fusão de horizontes entre texto e intérprete.

Certamente, depois da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, fica difícil tentar repristinar as teses psicologistas predominantes ao tempo do romantismo alemão que suprimiam os efeitos positivos da distância temporal entre texto e intérprete resumindo a tarefa interpretativa como um empreendimento ligado à reconstrução de uma subjetividade específica: a do autor. Interpretar corretamente um texto era compreender o autor — e não o texto — melhor do que ele mesmo foi capaz de se compreender.

Hoje, temos condições teóricas para afirmar o contrário: quando compreendemos e interpretamos textos somos aplacados pelos efeitos de nossa finitude, de nossa condição histórica e a distância temporal é sempre uma aliada em nossa empresa interpretativa. Tentar reproduzir o sentido original do texto não é apenas uma tarefa fadada ao fracasso como também inútil: quando se interpreta, manifesta-se ali a produção de um sentido novo.

Todavia, a coluna desta semana tem sua origem em um mal entendido. Em uma interpretação que considero equivocada sobre um texto que escrevi recentemente aqui mesmo nesta ConJur (clique aqui para ler).

De fato, se é certo que o intérprete produz um sentido novo no momento em que funde seus horizontes com texto, também o é que esse sentido produzido deve permanecer atrelado a projetos interpretativos legitimados/autorizados pelo texto que se interpreta.

Em artigo publicado recentemente, Bruno Vinícius da Rós Bodart faz a seguinte admoestação: “A quem interessa um Supremo omisso?” (clique aqui para ler). Seu texto dirige criticas ao artigo que publiquei neste mesmo Diário de Classe. Argumenta Bodart que o meu texto — bem como o texto do colega Rodrigo de Oliveira Kaufmann, da coluna Observatório Constitucional — não teria se preocupado em apontar “nenhum problema substancial, mas apenas em ressaltar a importância política do Legislativo” (permito-me, desde já, levantar uma pergunta: se fosse esse mesmo o caso — o que, de minha parte definitivamente não o é — a “importância política do Legislativo”, em um Estado de Direito Democrático, já não seria, por si só, um problema de substância?).

Bodart lembra-nos, ainda, que o equívoco muito comum que existe nesse tipo de posição — que defende a importância política do Legislativo — está em pensar a democracia como o “regime da maioria” (sic). Na sequência, o autor afirma que “nenhum Poder da República pode rotular-se como o ‘órgão central da democracia’, porque todos eles têm um compromisso inexorável com a razão”.

É interessante notar que a minha análise é vista por Bodart como algo que tira a discussão de sua melhor rota, pregando uma espécie de guerra entre os poderes democráticos.

Todavia, é preciso deixar claro que, em nenhum momento, meu texto afirma uma espécie de “preponderância” do Poder Legislativo sobre os demais, tampouco quer retratar uma situação de beligerância entre os poderes da República. A relação entre eles deve ser equilibrada. Evidentemente! Algo, aliás, que não se apresenta como nenhuma novidade uma vez que é fruto do constitucionalismo moderno e de seu ideal de Constituição equilibrada.[1]

O texto escrito naquela ocasião tinha um objetivo muito específico e não era exortar o Congresso. Ao contrário, era mostrar a sua relação perene de vassalagem com relação aos demais poderes (principalmente, mas não tão somente, ao Poder Executivo).

O texto conclamava o Congresso, no final, a assumir legitimamente a sua autonomia com relação aos demais poderes. É certo que nesta quadra da história, em que vivemos uma democracia constitucional que procura conciliar governo da maioria com o respeito aos direitos fundamentais, não seria eu uma das vozes a defender um Judiciário amesquinhado, refém de maiorias eventuais.

Todos sabemos muito bem que a independência do Poder Judiciário é um elemento essencial para a própria ideia de Estado de Direito. Esse dado não é objeto de discussão. Todavia, reproduzindo um jargão comum, se o Judiciário assume um papel estratégico no contexto das democracias constitucionais, isso traz para aqueles que exercem essa função estatal uma enorme responsabilidade política.

Não me interessa um Judiciário omisso. Interessa-me um Judiciário responsável, diante do tamanho de suas atribuições. Nesse sentido, um Judiciário que aja nos limites da concretização da Constituição e dos direitos fundamentais é algo não apenas legítimo como fundamental para um democracia constitucional. Mas a atividade do Judiciário deve ser pensada de forma responsável. Nesse aspecto, tenho enorme relutância em admitir como legítima alguma decisão do Judiciário que esteja baseadas em deduções arbitrárias que não possuem respaldo algum no texto da Constituição. Volto a frisar: o interpretação é um ato produtivo. Mas essa produção não pode ser arbitrária. O sentido é projetado a partir de textos. Há projetos de sentidos que são legítimos/autênticos com relação ao texto e há, igualmente, projetos de sentido que são ilegítimos/inautênticos com relação ao texto. Esses últimos devem ser descartados. Continuo achando difícil sustentar que uma ordem cronológica possa determinar a pauta de votação do Congresso Nacional. Ou que seja possível dizer que o interregno para a votação do segundo turno das emendas constitucionais tem previsão no texto constitucional. E isso tudo não porque vejo algum tipo de “superioridade no Poder Legislativo, mas, sim, porque não há autorização constitucional para a interpretação que se pretende realizar. Simples assim.

Em suma, meu texto tinha dois objetivos:

1) demarcar a situação de vassalagem em que se encontra o Congresso Nacional. Posso ser mais claro em relação a isso: estamos aqui discutindo sobre o excesso de poder atribuído ao Judiciário e aos perigos de uma juristocracia. Mas, há que se perguntar, de quem é a culpa? Há algum culpado nisso? Tendo a responder que sim, há. E o culpado é o próprio Congresso. Afinal, quem aprovou as reformas processuais que levaram à abstratalização das decisões do Supremo Tribunal em sede de controle difuso (vide, nesse sentido, o parágrafo único do artigo 481 do CPC, alterado pela Lei 9.756/1998)? Quem aprovou as leis de controle concentrado (Leis 9.868/99 e 9.882/99)? Quem aprovou a Emenda Constitucional 45/2004 recheada de instrumentos autoritários como é o caso da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral? Ora, todas essas reformas — que colocam o nosso Judiciário em uma posição sui generis com relação a qualquer democracia constitucional do direito comparado — foram aprovadas pelo próprio Congresso.

Ou seja, o próprio Congresso é responsável pelo agigantamento do Poder Judiciário. E mais do que isso, no contexto atual, o Congresso atinge um grau de ilegitimidade extremamente preocupante porque está posto às claras a sua inoperância em cumprir burocracias mínimas, que envolvem a sua atuação cotidiana, como no caso do descumprimento do prazo para a apreciação dos vetos presidenciais.

2) Afirmar que a função contramajoritária do Poder Judiciário — vital, repito, para uma democracia constitucional — não se apresenta como um “cheque em branco” para que o judiciário, mormente o Supremo Tribunal Federal, faça o que bem entender com a interpretação da Constituição. Há limites para a atuação do Judiciário, assim como há limites para a atuação do legislativo e do executivo. Nossa Constituição incorpora o ideal constitucionalista de equilíbrio entre os poderes constituídos. E isso significa que exageros do Judiciário na interpretação da Constituição devem ser coibidos. Do mesmo modo que concretizações efetuadas a partir de interpretações adequadas à Constituição federal devem ser aplaudidas.

Uma outra passagem do texto de Bodart, que retrata exatamente essa questão, chamou-me a atenção. Afirma ele o seguinte: “Bem por isso, em todas as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal de certa relevância política, é difícil encontrar, dentre as pessoas devidamente informadas dos argumentos envolvidos, quem discorde das razões que levaram a corte a decidir em tal ou qual sentido, principalmente quando opta pela inconstitucionalidade. Em artigo publicado em 9 de março de 2012, observei que a nossa corte constitucional raramente decide em desacordo com a opinião pública (grifei), expliquei os motivos que levam a esse fenômeno e defendi a sua absoluta legitimidade. Se assim é, também corresponde à verdade dizer que o Congresso atua, em inúmeras situações, em desarmonia com o entendimento da maioria do povo, e nem sempre com o intuito de prestigiar os direitos fundamentais das minorias (grifei)”.

Pois bem. Acho interessantíssimo. Por certo, Bodart é muito bem informado a respeito dos argumentos envolvidos nas recentes decisões do Supremo Tribunal. E interpreta de forma excelente os textos que lê por aí. Mas, é instigante o modo como ele articula contramajoritarismo e opinião pública.[2]

Afinal, a função da corte é tomar decisões contramajoritárias ou decisões majoritárias? Está certo medir o acerto das decisões de uma corte judiciária pelo termômetro da opinião pública?

Vou continuar nutrindo minha dúvida e exercendo a minha desconfiança para com o Judiciário. Não que isso implique — é bom deixar claro — exaltar a função legislativa como se eu acreditasse que a democracia representa simplesmente o governo da maioria. Também não quero ferir a independência e a autonomia do Poder Judiciário. Mas não tenho o mínimo interesse de ser cidadão de uma juristocracia. Equilíbrio, essa é a palavra de ordem.


[1] Cf. Matteucci, Nicola. Organización del Poder y Libertad. Madrid: Trotta, 1998, passim.
[2] A discussão merece ser aprofundada, mas não cabe no espaço de uma coluna. Para tanto remeto ao artigo minucioso de Georges Abboud. STF VS. VONTADE DA MAIORIA: As Razões Pelas Quais a Existência do STF somente se justifica se ele for contramajoritário, RT 921 /191, em Julho de 2012.

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