Insegurança jurídica

Súmulas vinculantes não podem ser produto do açodamento

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22 de março de 2013, 8h34

A doutrina brasileira travou um incessante debate acerca da introdução das súmulas vinculantes no Brasil. Os contrários à sua edição apontavam-na a pecha de medida antidemocrática, violadora da independência do juiz e que ensejaria a usurpação pelo Supremo Tribunal Federal das funções legislativas, com restrição ao direito constitucional da ação. Para a corrente favorável, a súmula vinculante reduziria os processos das Cortes Superiores, tornaria a justiça mais rápida, econômica e eficiente, pondo fim a recursos protelatórios, eliminaria a possibilidade de decisões conflitantes e prestigiaria a isonomia e a segurança jurídica. A questão se tornou superada, ou no mínimo atenuada, em face da Emenda Constitucional 45/2004 que introduziu a súmula vinculante no Direito Brasileiro.

A Constituição de 1988, com a redação dada pela supramencionada Emenda, regulamentada pela 11.417/2006, dispõe que a súmula vinculante “terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” (parágrafo 1o do artigo 103-A).

Numa análise geral sobre as 32 súmulas editadas até agora se pode apontar, a priori, que a maioria dos enunciados foi produzida cumprindo induvidosamente todas as exigências constitucionais para edição e as condições de clareza e objetividade como se pretende que sejam tais pronunciamentos. Uma pequena parte, porém, gerou polêmica e dúvida quanto ao cumprimento dos objetivos pretendidos pelos defensores da vinculação.

Além do aspecto do mérito, da Justiça propriamente dita, a redação da súmula não pode deixar margem para interpretações ambíguas, nem pode ser obscura ou de difícil cumprimento. Nas palavras de Roberto Rosas, “a súmula pode ser perigosa, se elaborada com defeito”[1].

É possível localizar muitas Súmulas vinculantes editadas de acordo com o rigor gramatical, forma imperativa e direta da linguagem, clareza e brevidade, como se constata da maior parte dos enunciados, podendo ser citados os que utilizam expressões imperativas: “é inconstitucional” (Súmulas 2; 21; 31 entre outras); “é constitucional” (Súmula 29); “não pode” (Súmula 4); “viola” (Súmula 10); “não viola” (Súmula 19); “não incide” (Súmula 15; 32); “não lhe aplica” (Súmula 9); “é competente” (Súmula 22, 23 e 27).

Quanto às exigências constitucionais, ainda a priori, a grande maioria dos enunciados feriu matérias de intensa discussão na jurisprudência sobre as quais as instâncias, desde tribunais superiores até juízos de primeiro grau, não se entendiam, e outra parte delas foi editada como forma de consagrar os precedentes do próprio STF.

A propósito, a súmula vinculante 1, resolveu a vacilação jurisprudencial relacionada aos honorários advocatícios, quando o fundista do FGTS após ter aderido e recebido valores da Caixa Econômica Federal, promovia ação, e eram milhares, contra o termo de adesão que firmara administrativamente[2]. Igualmente, o enunciado sumular 7 acabou com a polêmica dos tribunais sobre a aplicabilidade dos juros: “a norma do parágrafo 3 do artigo 192 da Constituição, revogada pela Emenda Constitucional 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição de lei complementar” (Súmula Vinculante 7). Considerando que a jurisprudência vacilava na matéria, a referida Súmula pacificou e evitou o ingresso de novas demandas e guiou os juízes nas suas decisões sobre a matéria.

De igual modo, a Súmula 12, que considerou violada o disposto no artigo 206, IV, da Constituição Federal, além de merecer os aplausos da comunidade jurídica e da sociedade, foi feita em linguagem direta e teve o condão de eliminar a discussão nos tribunais quanto à cobrança de taxa de matrícula nas universidades, cuja posição majoritária era no mesmo sentido da que afinal ficou manifestada na súmula[3].

Embora contenha redação detalhada, é exemplo positivo de edição de súmula a que proíbe o nepotismo, constante do enunciado sumular 13: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na Administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”. Apesar de extenso, este enunciado é imperativo, claro e centrado nos valores sociais contemporâneos e atende ao princípio do acesso universal aos cargos públicos e à preservação da moralidade pública, inclusive porque obteve ótima recepção popular.

Pondo fim à discussão quanto ao cabimento ou não prisão do depositário infiel, ainda que judicial[4], a Súmula 25 está em conformidade com a proteção dos direitos humanos no plano internacional. Seu enunciado — “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito” — reitera a impossibilidade da prisão por dívidas, a não ser na hipótese de pensão alimentícia. Também parece ser irretocável a Súmula Vinculante 14, em razão de ter servido para a retirada das dúvidas e dos problemas diários gerados no âmbito policial e judiciário quanto ao direito de vista do advogado em inquéritos ou processos sigilosos, inclusive por ter-se optado pelas expressões “elementos de prova” “documentados”[5].

Nota-se, todavia, que parece ser desnecessária, confusa e de difícil aplicabilidade a denominada súmula das algemas, cujo enunciado é do seguinte teor: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (Súmula Vinculante 11). Tal súmula deixa margem a diversas interpretações, cria dificuldades práticas de execução, principalmente pela polícia e põe a espada de Dâmocles sobre a cabeça dos juízes, promotores e agentes policiais; enfim, é desarrazoada e é uma daquelas súmulas que poderiam ser revogadas.[6] Igualmente, a súmula Vinculante 5 não deu uma interpretação extensiva à garantia constitucional da ampla defesa nos processos judiciais e administrativos. “A falta de defesa técnica por advogado no processo disciplinar administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Apesar de ter um enunciado claro, direto tal súmula foi casuística, em razão de que, se o resultado fosse contrário poderia atingir milhares de processos administrativos disciplinares existentes com a possível decretação de nulidade, em favor do servidor público que não se defendeu por meio de advogado nos processos administrativos e foi, por exemplo, demitido do serviço público. Conquanto bem fundamentada, a Súmula 5 ignorou os precedentes assentados na Súmula (não Vinculante) 343, do próprio STF, ignorou a jurisprudência consolidada do STJ e não deu a extensão devida à garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, a ser assegurada tanto no processo judicial quanto no administrativo[7].

Outra Súmula polêmica é a Súmula Vinculante 24, que cria problema na aplicação da lei penal, pela possibilidade de se poder fazer um parcelamento perante o Fisco por mais de 90 meses e enquanto pende a moratória não há crime, além do fato de restringir a atuação do Ministério Público e criar dificuldades na atuação da Polícia: “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. Tal súmula pode estimular a impunidade, sobretudo porque quem pode defender-se até o fim no âmbito administrativo leva vantagem, sem contar o fato de que aquele que faz um parcelamento de noventa meses não comete crime tributário, ao passo que quem não tem condições de parcelar longamente a dívida é atingido, sem qualquer condicionante, pela esfera penal. Ademais, tal súmula não considera que as instâncias administrativas e judiciais são independentes.

Como todas as decisões judiciais, as súmulas vinculantes também são passíveis de crítica, sobretudo quando não são razoáveis ou não são exaustivamente discutidas ou redigidas com boa técnica. Para Teresa Arruda Alvim Wambier: “as súmulas só podem dizer respeito a situações capazes de se repetirem ao longo do tempo de modo absolutamente idêntico, mas, vale mencionar que somente as teses jurídicas serão objeto de súmulas; (…) não é demais observar que as súmulas, passando a ter efeito vinculante, devem passar a ser elaboradas com muito mais critérios e de forma a não gerar, na medida do possível, problemas interpretativos mais complexos do que gerados pela própria lei”[8].

Apesar de até agora o Supremo ter produzido apenas 32 Súmulas Vinculantes, espera-se que as próximas sigam o mesmo padrão da maioria delas, isto é, que tenham uma linguagem escorreita, cujo conteúdo siga restritamente os escopos constitucionais, a fim de se debelar o mal da insegurança jurídica e da intensa, longa e massificada discussão de direito nos tribunais pátrios. Mesmo porque, as súmulas vinculantes, como são lei para todo o Judiciário e para a Administração Pública, não podem ser produto do açodamento, nem do casuísmo, mas de apuramento e sensibilidade jurídica.

[1] ROSAS, Roberto. Da súmula à Súmula vinculante. Revista dos Tribunais, on line, v. 879, p. 41, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan, 2009. DTR2009141

[2] Eis o enunciado: “Ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar n. 110/2001” (Súmula Vinculante n. 1).

[3] “A cobrança de taxa de matrícula nas Universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal”.

[4] “A prisão do depositário judicial infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito” (§ 3º do ar6. 666 do CPC – redação dada pela Lei n. 11.382/2006).

[5] “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de Polícia Judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa” (Súmula Vinculante n. 14).

[6] Nesse ponto, Rodrigo de Abreu Fudoli anotou que: “debate prévio sob a forma de admissão de interessados no processo de aprovação da súmula poderia ter redundado na edição de enunciado que contemplasse as preocupações dos policiais, juízes e promotores de justiça na execução de prisões e condução de audiência com réus presos; vislumbra-se grave quadro de insegurança jurídica a partir da incerteza quanto à interpretação futura das cortes a respeito de expressões como ‘fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física’, constante da súmula, o que poderá acarretar anulações em série de processos” (Uso de algemas: a Súmula Vinculante n. 11, do STF. Revista JusNavigandi, Teresina, ano 13, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/11625. Acesso em: 7 fev. 2013).

[7] “O STF, ao interpretar a dispensabilidade do advogado no processo administrativo disciplinar, restringiu a ampla defesa com as técnicas reducionista e utilitarista próprias de argumentos de política” (ROSA NETO, Raimundo Cardoso, Súmula 5 restringiu a ampla defesa garantida pela CF. Revista consultor jurídico, Seção Artigos. www.conjur.com.br, acesso em 08.11.2012).

[8] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Súmula vinculante: desastre ou solução. Revista de Processo v. 98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, abr.-jun., 2000, p. 302.

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